Extremos
 
REVISTA AVENTURA & AÇÃO
 
Serra do Ibitiraquire
 
texto e fotos: Ricardo Contel
Aventura & Ação: edição 145
15 de fevereiro de 2008 - 18:40
 
Pico do Paraná. Foto: Nyck Maftum
 

"Olha as vacas, elas ocuparam o lugar dos bugios”, disse George Volpão, 30, guia da região que conduziria nosso grupo ao longo dos dois dias de travessia. “Mas elas não têm culpa, colocaram elas aí”, concluiu, olhando para as vacas com um semblante saudoso e conformado. Estávamos chegando de carro à Fazenda da Bolinha e George se referia a uma questão recorrente quando o assunto é preservação ambiental em tudo quanto é canto desse imenso e rico Brasil. Seja no Estado de São Paulo, na região Amazônica ou nos rincões da Serra do Ibitiraquire - uma cadeia de montanhas situada na porção da Serra do Mar que ladeia a leste a capital paranaense, Curitiba - a pecuária está invadindo e dizimando áreas do mais puro verde do nosso país.

Há pouco menos de dois anos, nessa mesma região, avistava-se com certa facilidade macacos bugios pelas redondezas, explica George. Entretanto, o desmatamento em terras que cobriam largas extensões de florestas intocadas, geralmente pelas queimadas, dão hoje lugar a enormes pastagens para criação de gado. Um cenário triste em um país (ainda) privilegiado por riquezas naturais.

Paramos o carro na sede da Fazenda da Bolinha (940 m) e logo apareceu seu Bento, o proprietário, com um sorriso no rosto e trocando uma idéia com George, enquanto eu, Alisson Miqueletto, 18, e Patrícia Miqueletto, 17 (dois primos que trabalham juntos em uma loja de equipamentos de aventura), arrumávamos nossas mochilas preparando-nos para a caminhada. Dílson Seriguelli, proprietário da Fazenda Pico Paraná (960 m), amigo de George, já estava em contato por rádio para pegar nosso carro e levar até sua propriedade, por onde retornaríamos.

Detalhes acertados, partimos para nossa travessia às 17h de uma tarde ensolarada de verão, com céu limpo e forte calor, que seria amainado pela densa vegetação da Serra do Mar que nos acompanharia em boa parte da caminhada.

Logo percebi que teríamos uma travessia com muito verde e muito perrengue, pois logo no começo, enfrentamos uma forte subida.

 
 
Serra do Ibitiraquire. A pouco mais de 40 km de Curitiba, uma travessia de dois dias a três cumes de uma região repleta de mata atlântica intocada e beleza cênica de arrepiar o fundo da alma.
Foto: Ricardo Contel
   
 
 
Nascer do sol visto do cume do Tucum, com o pico Paraná ao fundo.
Foto: Ricardo Contel
   
 
 
A conquista do pico Paraná devese aos estudos e espírito aventureiro de Reinhardt Maack e do auxílio dos experientes escaladores marumbinitas Alfredo Mysing e Rudolfo Stamm. Para saber mais sobre essa história da conquista, visite: www.altamontanha. com/iviturui/ibitiraquire01.html
Foto: Ricardo Contel
   
 
 
Mapa da Travessia da Serra do Ibitiraquire.
Arte: Fernando Falcoski
   
 
 
O autor em seu bivaque. Dormiu em companhia das estrelas e acordou no meio da madrugada com uma lua minguante no céu.
Foto: Divulgação

Início da travessia

A trilha começa com uma mata densa, atravessando a todo instante o Rio São Vicente, o que nos garantiria abundância de água cristalina para matar a sede. Mas as paradas são raras. Nosso ritmo manteve-se constante por causa do horário e também das companheiras barulhentas e indesejáveis, as mutucas (os paranaenses chamam de butucas). Bastava parar para encher os cantis e elas atacavam. O segredo é permanecer em movimento para não dar chances a picadas. No inverno, o índice de incidência de insetos é quase nulo.

Depois de caminhar por pouco mais de três horas ininterruptas, saímos da floresta densa e exuberante, classificada como ombrófila densa pelo nosso guia, para encontrar outro tipo de vegetação, os campos de altitude, o que nos deu a oportunidade de avaliar o quanto havíamos subido. Assim, paramos para apreciar um entardecer alaranjado, contrastando com a vegetação baixa desses campos e, logo depois, um pôr-dosol maravilhoso, onde a sudoeste avistávamos Curitiba, com suas luzes acesas, e, em todo quadrante leste, a serra e o litoral cobertos por uma camada espessa e baixa de nuvens. Deu a impressão de estarmos bem alto por vermos as nuvens abaixo de nós, uma característica comum na região graças à proximidade com o litoral, de onde vêm umidade e ar quente que, em contato com a “barreira” da Serra do Mar, encontram uma camada de ar mais frio por conta da altitude, o que causa condensação e formação das nuvens.

Enquanto o sol se punha, o frio apertava. Paramos para nos hidratar, fazer um rápido lanche e sacar das mochilas nossos agasalhos.

Primeiro cume: pernoite no Tucum

Pouco mais de meia hora depois, por volta de 22h, chegávamos ao cume do Tucum (1.739 m), onde pernoitaríamos. Um casal de montanhistas, Otaviano Zibetti, 27, e Caroline Cherpinski, 23, havia chegado lá naquele entardecer. “Até que enfim vocês chegaram, George”, nos recebeu um falante Otaviano, “estou morrendo de fome e esqueci meu isqueiro”.

Feitas as boas-vindas, nosso grupo começou a armar as barracas. Foi quando tive uma surpresa e tanto: por um descuido, havia trazido minha barraca (Cota 2 da Trilhas e Rumos), porém sem as varetas... Uma boa desculpa para fazer o meu primeiro bivaque, já que o céu estava absolutamente estrelado e uma leve brisa esfriava o ambiente.

Lá pelas 23h o jantar preparado pelo nosso guia (ver receita no quadro) era servido, regado a vinho tinto de mesa incrivelmente doce pro meu paladar (Vinho do Avô – indicação da Paty quando fomos comprar provisões no Wall Mart. Ao todo R$32,65). Fartamonos em meio a muita “abobrinha” e risadas. Estômagos felizes, cada um entrou em sua barraca – eu sozinho no meu bivaque – e minutos depois já conseguia ouvir o leve ronco de alguns. Era tarde, o dia tinha sido intenso e todos e estávamos cansados. Dormi em companhia de muitas estrelas e lá pelas três da matina fui acordado pelo brilho amarelo de uma tímida lua minguante.

Despertar com céu em chamas

No dia seguinte, acordei com o horizonte avermelhado. Aos poucos, o vermelho deu lugar ao alaranjado e, logo depois, uma ponta do sol. Café da manhã com achocolatado, pão com manteiga e queijo foi o suficiente para nos despertar. Lá pelas 9h saímos os quatro para continuar nossa travessia, enquanto Otaviano e Carol se despediam da gente, programando seu regresso pelo mesmo caminho que vieram.

Saindo de uma vegetação de campos de altitude, nosso grupo desceu a encosta do Tucum para encarar um vale com densa mata de altitude, presente em alta montanha. Sua densidade restringiu nosso ritmo. “Poucos passam por aqui”, relembra nosso guia, George Volpão, “temos de abrir caminho no peito”, finaliza com um sorriso no rosto e muita determinação. A trilha está sinalizada, mas são poucos que a encaram por causa do acesso restrito e difícil. Mata fechada e relevo íngreme.

Cerro Verde, nosso segundo cume

Passado o vale, com ritmo lento e constante – ainda bem, porque se tivéssemos que parar, seria uma festa para as mutucas – alcançamos novamente os campos de altitude e, pouco mais de duas horas depois de levantar acampamento, alcançamos o cume do Cerro Verde (1.653m). A vista é deslumbrante! À nossa frente o pico Ciririca, que exige dois dias de caminhada para chegar ao seu cume e possui dois gigantescos painéis de comunicação, utilizados na década de 80 e hoje desativados, que criam um contraste surreal na paisagem natural. Ao fundo, a baía de Paranaguá. “No inverno, dá pra avistar o alto-mar e vários navios”, comenta George, enquanto saboreia uma barra energética.

Interessante que, em partes altas e abertas, uma pequena brisa nos protegia dos ataques das mutucas. Era possível vê-las e ouvi-las nos rondando a todo instante, mas assim que pousavam para nos picar, uma leve rajada de brisa já fazia com que voassem assustadas. Como havia acontecido no Tucum, assinamos o livro de cume e partimos em direção ao último ponto – o culminante – de nossa travessia, o Itapiroca (1.805 m).

A caminhada é similar. Começamos a caminhar em campos de altitude, com vegetação rala e baixa, para depois descer um vale e encontrarmos densa mata de altitude que restringiu nosso avanço por conta das nossas volumosas mochilas. O cansaço já se fazia presente, mas o ânimo do grupo se manteve. Constantemente, eu, que vinha por último, era bloqueado pelo penúltimo do grupo, o Alisson, que volta e meia parava para observar mínimos detalhes. O olhar atento do Alisson acabou rendendo boas fotos da flora e da fauna da região.

Itapiroca, o cume final

Enfim, no topo do Itapiroca, pouco mais de três horas depois de deixarmos o Cerro Verde. Passava das 15h e estávamos todos visivelmente cansados. Parte por conta do calor. Se por um lado fomos afortunados encontrando um fim de semana de tempo bom em pleno verão, por outro, o sol e o calor agora castigavam bastante.

Depois de repousar no cume do Itapiroca e assinar o livro de cume, partimos para encarar mais umas duas horas e meia de descida até a Fazenda Pico Paraná, batizada com o mesmo nome da montanha mais alta do Estado, que nos havia acompanhado ao longo de toda a travessia.

Da próxima vez, o PP

Não foi dessa vez que fiz o cume do PP - como é chamado carinhosamente o pico Paraná pelos montanhistas da região - , o que me dá uma boa desculpa para voltar a Curitiba no ano que vem e chegar ao topo do estado. E, quem sabe, esquecer novamente as varetas da minha barraca e bivacar em seu cume, em companhia de um céu estrelado e acordar com o horizonte esplendorosamente em chamas.

Hora do rango

Pedimos ao nosso guia que cozinhasse seu melhor prato no nosso acampamento. Dizem que o melhor tempero é a fome. Sim, todos estávamos cansados e esfomeados, mas o rango ficou mesmo uma delícia.

Arroz de montanha do George
(aqui, para duas pessoas)

Ingredientes
• 1 ½ xícara de arroz branco
• 1 colher de margarina
• 2 ovos
• 1 tomate
• 1 cenoura
• 1 maço de cebolinha
• Shoyo a gosto

Modo de preparo
O arroz deve ser preparado na noite anterior à travessia com cebola, alho e sal a gosto. Na manhã seguinte, esse arroz é condicionado em recipiente em “torrões”.

Importante: receita válida para o inverno para evitar que o arroz pronto azede ao longo da caminhada.
• Picar os tomates em cubinhos e colocálos na panela para dourar com margarina, cenoura e cebolinha.
• Mexer por três minutos, com sal a gosto (lembre-se que ainda vai o shoyo, que é bem salgado).
• Acrescentar os dois ovos e mexer até endurecer. Logo depois, acrescentar o shoyo.
• Jogar os “tocos” de arroz para esquentar.
• Após dois minutos, está pronto para ser servido.

Tempo de preparo: 15 a 20 minutos

Fogareiro Urano Azteq - Além de pequeno (quando fechado, mede 8 x 6 cm), pesa apenas 135 g (sem refil de gás). Possui acendedor automático e regulagem de chama. Preço sugerido: R$129,00; Refil de gás butano: R$15,00 www.azteq.com.br


Quando ir? Entre o inverno e o verão

Inverno (abril – setembro)
Quando se pensa em temporada de montanhismo na região, pensa-se em inverno. Ela se estende de abril a setembro, com temperaturas mais amenas durante o dia e clima estável, proporcionando dias bonitos e noites estreladas. À noite, a temperatura pode chegar aos -8° e é muito comum acordar com o chão coberto de gelo. Literalmente. Portanto, leve saco de dormir para invernos rigorosos e as três camadas de roupa, meias grossas e gorro. As trilhas ficam mais limpas em virtude da grande incidência de visitantes.

Verão (outubro – março)
No verão, outubro a março, apesar de não ser considerada temporada, ainda assim é possível curtir as caminhadas pela Serra do Ibitiraquire, mas prepare-se para ser castigado pelo calor, caso o céu esteja limpo e também ser molestado por mutucas (ou butucas paranaenses). Se houver grande incidência de chuva, as trilhas ficam escorregadias e por vezes até submersas em alguns trechos. O ponto positivo é que água para beber não vai faltar.

Guias

George Volpão
Campina Grande do Sul (15 km de Curitiba)
(41) 9638 4664
georgenasnuvens@yahoo.com.br

Freddy Duclerc
São Paulo, SP
(11) 8165 0990
freddyduclerc@aventuraevida.com.br
(Diárias a partir de R$150,00 para grupos de 2 a 5 pessoas)

 
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