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O Paquistão que pouco se ouve falar
 
texto e fotos: Murilo Lessa
23 de setembro de 2016 - 15:07
 


Os super porteadores disparam à frente © Lee Harrison

 

Lembro de alguns anos atrás ler sobre um cara que foi trabalhar no Iraque e logo depois de chegar, foi sequestrado por um grupo extremista e infelizmente, depois de algumas semanas executado. Recordo vividamente de ler aquilo e pensar que alguém tinha que ser muito louco pra aceitar trabalhar em uma região de conflito. Exatamente um ano depois desse episódio, eu me vejo às voltas explicando pra minha esposa sobre um “brilhante” plano de escalada, em uma região remota e pouco explorada do Paquistão. Entre sonhos e avisos proféticos de que iríamos ser sequestrados, decapitados, morrer em uma avalanche, desaparecer em uma cravassa, ou sequer fazer campo base, voltamos vivos, inteiros, e obtendo relativo sucesso.

Nosso plano era acampar em algum ponto do Glaciar Yokshgoz que nos desse acesso a sua parte superior e também ao vale adjacente, sem nome no mapa. A aproximação de 45km sai dos arredores do vilarejo de Passu, margeia um trecho do Glaciar Batura, o quarto mais comprido do Karakoram, e então diverge Norte, em direção ao glaciar Yokshgoz. O trek levaria de 3 a 4 dias, nos deixando com um pouco menos de 3 semanas pra escalar.

Passu fica na Karakoram Highway (KKH), ao lado do rio Hunza, 150km rio acima de Gilgmet. A maioria de seus habitantes são de etnia Wakhi e falam Wakhi. Em 2010, um gigantesco deslizamento de terra na vila de Attabad causou a morte de dezenas de pessoas e obstruiu o fluxo do rio Hunza for cinco meses, causando enormes inundações e desmoronamentos, além da criação do gigantesco lago Attabad, que cobriu quase vinte quilômetros da KKH. Atualmente o governo Chinês está construindo uma nova estrada para resolver o problema, mas em 2015 a única alternativa eram pesadas balsas de madeira que levam pessoas, cargas e veículos de um lado a outro da estrada.

Para mim essa seria uma viagem de várias “primeiras”: primeira expedição, primeira vez no Paquistão, primeira vez acima de 4800m, e com sorte, uma primeira first ascent. O Lee já esteve outras 4 vezes no país, caminhando, escalando, e em um triste episódio onde participou de uma equipe de busca e resgate a um amigo que desaparecera durante uma tentativa de escalar o Shimshal Whitehorn em solitário.

     
Essa foto, tirada por Lee em 2006, mostra os 3 picos que escalamos em 2015. Essa vista é em direção a Leste © Lee Harrison   Barcos atravessam trecho inundado da KKH.

     

Islamabad a Passu

Nos encontramos em uma quente madrugada no pequeno aeroporto internacional de Islamabad. Em uma das lojinhas do saguão do aeroporto trocamos dólares por rúpia paquistanesas, e na sequência embarcamos em outro voo para Gilgit, mais ao Norte. Voos para Gilgit são confirmados em cima da hora, por conta do tempo inconstante. Um assento no avião economiza o traseiro de horas e horas de carro pela sinuosa, esburacada e empoeirada KKH. O aeroporto de Gilgit mais parece um aeroclube construído sob um campo de futebol. Assim que saímos da esteira de bagagem fomos abordados por um senhor que se identificou como sendo da nossa agência, ele iria nos levar até o lago Attabad.  Faríamos uma parada em Aliabad, para pegar Ahsan - nosso guia - e comprar mantimentos. O plano era cruzar o lago, pegar outro carro e seguir até Passu, de onde começaríamos a aproximação.

Dependendo dos planos e objetivos, conseguir um visto para o Paquistão requer um climbing permit e uma carta de visto emitida por uma agência de turismo aprovada pelo Ministério do Interior. A agência requer que  os escaladores tenham um “guia”, que os  acompanha para certificar-se de que eles estão “seguros”. A participação do guia na escalada é zero. Na verdade, Ahsan nos deixou - com nosso consentimento - um dia antes de chegarmos ao BC, e só voltamos a vê-lo quando retornou com os porteadores que vinham nos buscar.

Aliabad é um vilarejo que estende-se ao longo da KKH, tendo como pano de fundo gigantescos picos de 7 mil metros. A estrada é poeirenta, o sol ardido, e o calor insuportável. Encontramos Ahsan sentado sob uma árvore, tomando chá com outros senhores, em frente a um restaurante. Apertamos mãos, fizemos breve conversa, e tomamos chá. 

     
Hora do rush em Aliabad.   Hora das compras.
     

Gastamos duas horas comprando suprimentos. Ahsan foi essencial em ajudar-nos a resolver uma série de detalhes logísticos e pequenas dores de cabeça que causam considerável perda de tempo. Coisas como por exemplo, onde comprar certos equipamentos, problemas linguísticos, e facilitação de discussão com os porteadores, que não tem um inglês super afiado. Quando se dispõem de “apenas” 30 dias de férias pra tentar escalar um pico virgem de 6 mil metros, tempo é dinheiro.

As margens do lago Attabad a atmosfera é caótica. Carros, motos e grandes caminhões são carregados e descarregados das embarcações. Transferimos nossas coisas da van para dentro de uma das várias barcas disponíveis. Levamos cerca de uma hora e meia para cruzar o rio, e chegamos a Passu ao final do dia. O “taxista” nos deixou no pátio do Royal Palace Passu, um hotel a beira da estrada, que já viu dias melhores. Além de nós, haviam duas francesas, que partiam no dia seguinte, e um jovem alemão, que estava fazendo trekking e seguindo em direção a China. Aproveitamos as últimas horas de luz para dividir nossa carga em sacos reforçados de 25 kg - o limite máximo que cada porteador pode carregar.

     
Comida, muita comida!   Travessia.
     

Aproximação e (falta de porteadores)

Em Passu, uma associação é responsável por gerenciar a escala dos porteadores, e garantir que todos tenham iguais oportunidades de trabalho. Ahsan havia reservado 6 porteadores, então acordamos cedo para esperá-los, mas eles nunca apareceram. Gradualmente a ansiedade deu lugar a incredulidade, e então imensa preocupação. Ahsan começou a ligar para conhecidos tentando recrutar novos voluntários. Por uma infeliz coincidência, aquele era o primeiro dia do Ramadan, uma das mais importante datas do calendário islâmico, e também o começo das férias escolares - quando muitos jovens, que moram e estudam na cidade, voltam pra casa – e, pra complicar ainda mais, um enorme jogo de críquete estava rolando no vilarejo e isso aparentemente tomava precedência à nossa oferta de trabalho.

O dia ia lentamente esquentando e as montanhas a nossa volta já estavam sob o sol intenso quandoAhsan voltou com boas notícias. Ele havia conseguido reunir um grupo de jovens para nos ajudar, eles estavam vindo de Gilmut, um vilarejo próximo. Eles eram estudantes universitários de férias, com nenhuma experiência como porteadores, e muito menos da rota, mas interessados em trabalhar. O que poderia dar errado?! Empilhamos nossas coisas em frente a entrada do hotel e logo a camionete chegou com os moleques na carroceria. Tímidos e sorridentes, vieram nos cumprimentar e rapidamente carregaram a camionete. Seguimos atrás em outro carro, por cerca de 15 minutos, até o começo da trilha. Eram 1 da tarde, e é difícil descrever a força do sol. A aridez do terreno chegava a fazer minhas narinas arderem.

Os garotos estavam animados e não perderam tempo em pegar a trilha. Eu, Lee e Ahsan os ultrapassamos e seguimos na frente, infinitas subidas e descidas sob um terreno seco e pedregoso, sem uma sombra a vista por quilômetros. Andamos pouco mais de duras horas e paramos na empoeirada área de acampamento de Yunzben, que apesar de perto, estava 450m acima de Passu. No calor da tarde, os porteadores ficaram para trás, e começaram a chegar uma hora depois, um a um, e reclamando das cargas. Ficamos preocupados porque sabíamos que aquele dia havia sido sequer um aquecimento em relação ao que ainda estava por vir.

     
Pedra, poeira e minimalismo no acampamento de Yunzben. © Lee Harrison   Subindo o lado Sul do Glaciar Batura © Lee Harrison
     

No dia seguinte, acordamos antes do sol nascer. O trecho para o próximo campo de Yashpirt leva cerca de 7 horas e é de apenas média dificuldade, mas baseado no passo do dia anterior nós precisaríamos de toda luz disponível. Esse horário também é mais fresco e agradável para caminhar. Seguimos o lado Sul do Glaciar Batura, antes de fazer uma travessia direta para o lado Norte. Como no dia anterior, logo os porteadores ficaram para trás. Paramos para esperá-los no pequeno assentamento de Mulungee, mas logo que recomeçamos a andar eles novamente desapareceram. Nova pausa pra comida no último assentamento de Kirgus Washk, antes de cruzarmos o glaciar. Mais de uma hora se passou e com exceção de um porteador que havia chegado, os outros sequer apareciam no horizonte. Ahsan descreveu a rota pelo glaciar para o garoto, que ficaria observando nosso trajeto enquanto esperava pelos outros. Nós marcaríamos o caminho pelo gelo com totens de pedra e com sorte, isso seria suficiente.

Atravessar o glaciar foi como cruzar um labirinto de gelo que parecia ter sido palco de uma guerra. Tivemos que encontrar passagem por corredores de gelo fraturado, entre enormes panelas e buracos que tinham que ser manejados com cuidado. É preciso muita atenção para evitar cair na água que corre por entre os enormes blocos. Uma vez no fundo do glaciar, perde-se toda referência de direção, daí a importância de construir totens de pedra nas partes mais altas e visíveis, para facilitar a orientação. Várias vezes chegávamos a uma passagem sem saída e tínhamos que retornar e tentar outro caminho, muito frustrante.

Apenas quando estávamos terminando a travessia de cerca de 1km foi que notamos alguns pontinhos na margem Sul, lentamente descendo em direção ao glaciar. Nesse passo não chegaríamos a Yashpirt antes do anoitecer. Mesmo cansados pelo esforço e calor, deixamos nossas coisas e voltamos para o glaciar ajudar os porteadores. Lentamente cruzamos o glaciar pela segunda vez, agora ultra carregados. Eu estava absolutamente exausto e desidratado.

Apesar de bem intencionados, os porteadores não tinham o equipamento, a experiência, e o preparo físico necessário pro ralo. Fui descobrir no meio da travessia, enquanto parávamos para descansar, que essa era a primeira vez dos caras em um glaciar! Pelo menos esse era seguro e fácil, mas ainda assim…Eles não dispunham do tradicional frame de metal que é usado para se amarrar a carga às costas. Com exceção de dois sortudos que levavam nossas mochilas, os outros usavam finos cordeletes para trançar e amarrar os sacos às costas, algo pouco prático e nada confortável, e eles sequer tinham cordelete suficiente para todos! Como resultado, carregavam nossos sacos e sacolas sob os braços, precariamente equilibrados nas costas, e sob os ombros, como um bando de refugiados. Isso não apenas dificulta carregar, como desequilibra o porteador, aumentando as chances de um escorregão. Outro problema é que como eles não tinham controle dos pesados sacos, toda vez que paravam para descansar eles baixavam os sacos no chão com tal força que o conteúdo ia sendo esmagado.

     
Crusando o Glaciar Batura © Lee Harrison   Chegando carregado (e moído) em Yashpirt © Lee Harrison
     

Agora no lado Norte, Lee, Ahsan e eu continuamos a carregar sacos extras para aliviar os porteadores, e em duas horas chegamos a Yashpirt, uma remota e idílica vila de pastores no meio do Batura.

Os porteadores chegaram horas depois, ao anoitecer, e pareciam arrasados. A cara deles dizia tudo, naquela mesma noite eles disseram que iam embora! Fora os problemas de equipamento, nós descobrimos que eles sequer tinham comida suficiente para a viagem! Eles eram jovens amigáveis, que estavam querendo fazer um dinheiro extra durante o verão, e só. Em retrospectiva, nós nunca deveríamos tê-los contratados, eu e Lee éramos culpados por aquilo - note que pagamos as taxas extras de carne e equipamento que todo porteador tem direito! No fim do dia, isso apenas nos distraiu de aproveitar as belezas de Yashpirt.

Um êxodo de porteadores na metade de um trek de quatro dias seria o fim de uma expedição com dias tão contados, mas a sorte estava do nosso lado! O alemão que conhecemos no hotel estava pernoitando ali e acabara de mudar de planos, ao invés de cruzar o Passo Werthum, que estava coberto de neve, iria passar mais um dia em Yashpirt, antes de retornar a Passu. Isso temporariamente fez seus porteadores livres no dia seguinte, e eles facilmente aceitaram o trabalho extra. Os porteadores disseram ser possível chegar até onde queríamos em um dia. Considerando que estávamos sequer na metade do caminho, isso parecia no mínimo ambicioso, mas se eles estavam dispostos a tentar, ótimo, especialmente depois da lentidão dos últimos dias. Subiríamos de 3300 m a 4150 m de altura, com provável dor de cabeça pra ajudar a dormir. Outro problema que resolvemos foi emprestar um barril plástico de um dos pastores, para levarmos parte da nossa comida que havia sido destruída após inúmeras batidas dos sacos contra o chão.

     
Yashpirt © Lee Harrison   Reempacotando as cargas destruídas © Lee Harrison
     

Novos (super) porteadores

Os novos porteadores eram sobre humanamente fortes. Movidos a cigarro e farinha, andavam a um passo impressionante, especialmente considerando o tamanho da carga que carregavam. Pudemos relaxar e aproveitar o visual, em particular a imponente Parede Batura, com 10 km de comprimento, do lado Sul do glaciar, que culmina no topo do Batura I, a 7795 m. Seguimos o vale pela maior parte do dia, descendo em direção ao glaciar próximo da junção Yokshgoz.

Dali ainda andamos por horas, um eterno sobe e desce pela moraina, sob um sol insuportável. Fiquei novamente desidratado, durante a maior parte do dia me senti péssimo e fiquei para trás do resto do grupo. O terreno irregular e instável, reduziu nossa velocidade, pesados blocos precariamente equilibrados rolam a todo momento pelo glaciar, conforme o sol aquece o gelo. Chegar ao Glaciar Yokshgoz nos pareceu uma vitória. Sem tempo para recuperar o fôlego, um novo problema. Um desentendimento entre Ahsan e os porteadores fez com que nosso destino final fosse uma clareira conhecida como “Yokshgoz”, ainda muito distante de onde queríamos ficar. Isso explicava eles acharem que conseguiam fazer todo o percurso em um único dia.

Estávamos abaixo das colinas do lado Oeste do glaciar, sob o pico P5735, que faz parte do maciço Kuk Sar. Um local maravilhoso, com uma grande cachoeira à vista, mas horas de distância de onde queríamos. Era quase final do dia, nós já havíamos andado bem mais de dez horas, e prosseguir seria irreal. Os porteadores ainda precisavam voltar para o último assentamento de pastores antes que o dia acabasse, mais 6 horas de caminhada, pois na manhã seguinte tinham que estar com o alemão! Acordamos vagamente que eles iriam ajudar o alemão a voltar a Passu e retornariam nos ajudar. Ahsantambém não tinha mais comida, e partiria com os porteadores. Esse foi o ponto mais baixo da viagem. Realisticamente, nós ainda estávamos muito distantes dos nossos objetivos de escalada, com poucas opções onde nos encontrávamos. Lee estava ansioso e pessimista com os constantes problemas e pronto para desistir e voltar pra casa. Sugeri que continuássemos a discussão no dia seguinte, descansados e de cabeça fria, e desmaiamos em nossas barracas.

A volta dos porteadores

Acordei desanimado e pessimista, mas fomos inesperadamente saudados por dois dos porteadores que apareciam no horizonte! Eles eram irmãos e os mais fortes do grupo, disseram que iriam nos ajudar a transportar as coisas, mas como estávamos em menor número, teríamos que dividir os sacos em pacotes menores e fazer várias pequenas viagens até que tudo chegasse ao destino. Movimentamos 6 cargas, 150 kg de comida e equipo, em pequenas viagens, primeiro seguindo as baixas colinas ao longo do flanco Oeste do Glaciar Yokshgoz, antes de descer e cruzar o glaciar de volta a seu lado Leste. Depois de um dia inteiro de idas e vindas pelo labiríntico glaciar, sob um sol escaldante, nós finalmente chegamos ao base camp! Os pastores conheciam aquele lugar Kush Dur Gush, ou “boca do vale feliz”. Uma pequena clareira verde em meio a um gigantesco glaciar rochoso, espaço para apenas duas barracas. Uma fria piscina azul na varanda confirmava aquele ser um local perfeito para passarmos as próximas semanas. Nosso moral subiu, estávamos apenas um dia atrasados em relação ao nosso cronograma mais otimista!

 


Lado Sul, a partir do base camp. Aquela ao fundo é a Parede Batura © Lee Harrison

 

Finalmente escalando: boa aclimatação e erros de navegação

É difícil descrever o quão remoto e isolados do resto do mundo nós estávamos. Imaginar que ficaríamos aqui por semanas, sem seguro, com um celular satelital que funcionava mal e porcamente, era igualmente excitante e angustiante. Até mesmo o Lee, com toda sua experiência, havia mencionado o fato, o que fez eu me sentir melhor porque eu achava que era o único enfrentando esse turbilhão de sentimentos.

Passamos os primeiros dois dias aclimatando ao redor do acampamento, antes de focarmos em tentar chegar a um cume. Era minha primeira vez em algo mais alto que os alpes, então uma aclimatação suave parecia ser uma boa ideia. Os picos de altura moderada, na cabeça do vale sem nome, a Norte do nosso acampamento, pareciam tecnicamente diretos e ideias para uma aclimatação gradual.

Na boca da entrada do vale sem nome desagua um rio, comprimido por encostas inclinadas e cobertas por uma fina camada de cascalho. As maiores dificuldades estavam nos primeiros duzentos metros de elevação, antes do vale abrir progressivamente. A primeira vez que subimos o vale foi sem muitos problemas, porque o nível da água estava baixo e podíamos escalaminhar pelos pedras e boulders das margens. As pontes de gelo permitiam cruzar o rio e atingir terreno mais fácil. Nas semanas seguintes o nível d'água subiu progressivamente devido às altas temperaturas que descongelaram o glaciar mais acima, e muitas das pontes de gelo quebraram – uma inclusive comigo em cima! – fazendo o progresso cada vez mais lento e estressante. Uma das minhas preocupações era escorregar no cascalho, cair na forte corredeira e ser varrido pra baixo do gelo com mochila e tudo.

     
Visual alucinante durante nosso bivaque © Lee Harrison   Fácil encosta em direção ao cume Sul do P5665 © Lee Harrison
     

Fizemos high camp no primeiro de dois vales laterais que ramificavam a Norte do vale onde estávamos, a pouca distância do seu glaciar, à 4930 m. Nosso plano era escalar o P5665 na manhã seguinte, que ficava diretamente a Leste. A forma da montanha escondia o cume, mas antecipávamos terreno fácil, sem dificuldades de navegação. Fomos pra cama com dor de cabeça, tentando dormir até 1 da manhã. É importante acordar muito cedo para se estar seguro e evitar o calor que derrete o gelo e desprende as rochas que começam a cair sobre nós.

Seguimos no escuro o centro do glaciar em direção a cabeça do vale, de forma a ganhar fácil altura, antes de cortarmos a direita em direção ao que pensávamos ser o cume. Nosso erro foi assumir que o cume estaria em algum lugar sob a ampla expansão glacial acima da rampa onde estávamos. Isso nos levou ao que é melhor descrito como o cume Sul, a cerca de 5600m. Um pouco mais baixo do que o real cume, a pirâmide rochosa mais a Norte, e também de um afloramento rochoso ao Sul. O esforço porém não foi em vão, chegamos a mais de 5000m, e ainda tivemos uma boa vista dos picos e glaciares a Leste.

Consciente do nosso erro de navegação, tentamos atravessar para o cume principal mas a extensão do terreno, um inclinada rampa com gelo ruim, e muito cascalho e rocha podre fez com que desistíssemos. Descemos de volta a base do glaciar, a 5400m, e mudamos nossa atenção para o pico vizinho, P5702, a Noroeste. Bastante distante mas menos inclinado, e consequentemente mais adequado aos nossos pulmões ofegantes e pouco aclimatados. Subimos até a crista que conectava os picos P5665 e P5702 a cerca de 5480m, mas a essa altura estávamos moídos, de uma forma que apenas falta de aclimatação pode moer. Os próximos 200m pareciam infinitos, então resolvemos descer. Chegar ao cume Sul do P5665 foi uma ótima aclimatação, mas um resultado frustrante. Com nosso cronograma apertado, ficamos com a sensação de ter perdido subir algo mais significativo.

 


Deus ajuda quem cedo madruga! © Lee Harrison

 

Primeira ascensão do P5702

O tempo bom persistiu e sem tempo para desânimo, descansamos um dia no BC e no dia seguinte retornamos ao mesmo high camp, dessa vez para tentar o P5702. As parte inferior do vale estava mais bem mais difícil de ser transposta, por conta do nível do rio que aumentava a cada dia devido ao rápido descongelamento do glaciar. As pontes de gelo que conectavam as margens estavam se desfazendo e expondo partes da encosta sem sustentação alguma. Nós não conseguíamos mais passar pela margem e agora éramos forçados sob a ribanceira erodida que tinha a consistência de uma areia movediça.

Novamente acordamos a 1 da manhã, e usamos o mesmo glaciar para ganhar altura, seguindo uma linha curva na face Sudeste, para a direita do cume. A rampa tinha entre 35-45o de inclinação, com a parte mais inclinada na metade da via - 50-55o? -, onde a encosta começava a expandir. Na maior do tempo escalamos desencorados, à francesa, com uma piqueta na mão e um bastão de caminhada na outra. Vez ou outra algumas rochas passavam zunindo em nossa direção e algumas me acertaram de raspão na orelha e cotovelo. Apenas quando a montanha aplainou é que resolvemos encordar por conta das cornissas e cravassas que se escondiam sob a neve. Nós alcançamos a crista Leste, a pouca distância do cume e logo estávamos no topo. Uma first ascent, pelo que sabemos, com a linha graduada em AD-. Batizamos o pico de Khush Dur Sar, devido ao nome do nosso campo base. Coordenadas 36.7151, 74.5228.

     
O aumento da água nos forçou a escalar as inclinadas e farelentas barrancas do rio
© Lee Harrison
  Nossa linha na face Sudeste do P5702
© Lee Harrison
     

Como ainda eram 7 da manhã, resolvemos tentar o P5665 novamente. Nós iríamos atravessar a longa crista conectando os dois picos e escalar a curta rampa de neve do lado da pirâmide rochosa. A travessia da crista foi sem grandes dificuldades, mas a encosta nevada que levava ao topo se mostrou perigosa. Aquela seção pegava sol desde o começo da manhã, a neve estava fofa e sem sustentação alguma. Nossas piquetas não serviam pra nada, e mesmo os degraus que íamos chutando não nos davam tranquilidade alguma, e facilmente se desfaziam conforme avançávamos. A neve na segunda cordada estava ainda pior, sem qualquer possibilidade de proteção, então rapelamos da metade da rampa, a cerca de 40 m do cume. A descida de volta ao glaciar foi igualmente tensa, com muitas rochas e pedaços de gelo caindo ao nosso redor, algumas passando zunindo bem perto de nossas orelhas.

     
Cume do P5702 © Lee Harrison   A bela crista em direção ao P5665 © Lee Harrison
     

Breve incursão no Alto Yokshgoz

Na primeira metade viagem o tempo foi ótimo, depois mudou para chuvoso e imprevisível. Tivemos chuva do meio-dia até a noite, e passamos a maior parte do tempo na barraca e havia mais chuva prevista para o próximo dia, mas até 11 da manhã o tempo estava seco. Similarmente, chuvas esporádicas foram previstas durante nossa aproximação ao BC, mas nada aconteceu. Com a previsão para os próximos dois dias era um misto de chuvas e nuvens baixas, decidimos tentar a sorte e subir novamente. Preparamos as mochilas e saímos após o almoço em direção ao alto do Yokshgoz, para explorar outro cume de 6000 m que era um dos nossos objetivos durante a expedição. Seguimos a margem Norte do Glaciar Yokshgoz, antes de deixarmos seu confinamento para escalar uma encosta coberta por pedras soltas. O progresso foi lento mas isso permitiu cortarmos caminho e evitar uma parte ainda mais sinistra da cachoeira de gelo onde o Glaciar virava mais a Norte. Desde nossa saída fomos ameaçados por uma forte chuva que parecia vir em nossa direção, mas por sorte acabou tomando outro rumo e entrando em um vale vizinho.

A relativa proximidade do nosso objetivo no mapa escondia o tempo real necessário para aproximação e ao cair da noite nós ainda estávamos a cerca de duas horas de um local adequado para acampar. Em retrospectiva, estimamos que do BC nós precisaríamos de 9 horas para alcançar o local. O maior problema em chegarmos ao anoitecer foi que não poderíamos checar possíveis vias e perigos da face. A partir do Khush Dur nós havíamos vistos vários seracs que precisavam ser investigados antes de escolhermos uma rota. As baixas nuvens também dificultavam a visibilidade.

Conforme a noite caía, escalamos uma colina adjacente ao glaciar, na esperança de ao menos conseguir ver a face a nossa frente, mas do topo a visibilidade era baixa. Chegamos a conclusão de que nosso BC estava mal localizado em relação a esses picos mais distantes, porém de lá tínhamos a vantagem de acesso a picos menores e mais próximos. A chuva caiu inesperada e continuamente durante toda a noite, e meu saco de bivaque resistiu pessimamente a toda água, sequer preguei os olhos. Uma breve pausa as quatro da manhã nos convenceu a sair do calor dos sacos de dormir e começar a voltar ao BC.

A previsão para os próximos dias era de janelas de tempo mais curtas e instáveis, então mudamos nosso foco para os picos na cabeça do Glaciar Yokshgoz, que estavam mais próximos. Nós iríamos estabelecer um novo high camp e escalar algo no dia seguinte bem cedo, talvez bivacando na montanha novamente.

     
Após 7 horas de caminhada, essa foi nossa vista na parte alta do Yokshgoz, um pouco antes de escurecer © Lee Harrison   Aproveitando uma brecha no tempo par voltar para o BC © Lee Harrison

     

Tempo ruim ou previsão ruim?

Os problemas com o tempo imprevisível eram ampliados pelo nosso velho telefone satelital. Uma mensagem diária enviado por um amigo na Inglaterra nos oferecia uma básica previsão para os próximos 5 dias a 5000 m, mas falhava em detalhar o volume real de chuva e outras informações que ajudariam na tomada de decisão. Mensagens de texto eram recebidas com um dia de atraso, a previsão para a noite que passamos na cabeceira da Glaciar Yokshgoz havia avançado de uma leve chuveirada para prolongada precipitação mas só recebemos essa notícia vital depois que o evento havia passado! Nós agora éramos forçados a operar com uma previsão de 48, ao invés de 24 horas, o que se tornou um problema devido ao tempo imprevisível.

Esperamos dois dias no BC  que o tempo melhorasse e então subimos o leito do rio novamente e entramos em outro vale, munidos de comida para dois dias e uma lona para reforçar nosso bivaque da chuva prevista para a noite. Dessa vez nosso high camp foi em um vale lateral, que se ramificava a Norte, a cerca de 5050 m. Nosso plano era logo cedo escalar o P5589, que ficava a Oeste do Kush Dur Sar, ao longo da mesma crista. Também gostaríamos de ter a chance de tentar mais uma vez o P5665 no segundo dia.

Primeira ascensão do P5589

O tempo cooperou e o P5589 se provou uma fácil e descomplicada ascensão, comparado a um bom dia nos Alpes. Subimos por uma rampa de neve à direita do centro da face Sudeste, inicialmente um corredor seco e rochoso, antes de atingir a encosta nevada 100 m acima. A inclinação manteve-se por volta dos 45o, até um máximo de 50o. Sofri um breve e sortudo raspão de algumas pedras que caíam regularmente em nossa direção. Do topo da face seguimos uma suave aresta nevada e alcançamos o cume por volta das 6 da manhã. Chamamos a montanha de Qalha Sar, que significa “Pico Bastião”, devido ao seu formato. Nossa rota foi graduada em AD, coordenadas para o topo são 36. 71401, 74.50592.

Consideramos na sequência uma nova travessia até o pico vizinho, P5400, mais a Oeste, mas ele parecia ser apenas uma vaga projeção sob uma crista que perdia altura, e isso iria requerer uma longa e monótona volta em direção ao nosso bivaque. Com uma boa previsão, fazia sentido salvar energias e tentar novamente o P5665 pela manhã. Nós descemos a crista Noroeste do P5589 até encontrarmos encostas mais amplas, e por volta das 9 estávamos de volta ao nosso bivaque. Matamos o tempo dormindo sob um gigantesco boulder, tentando encontrar abrigo do sol, e ao final da tarde caminhamos de volta ao nosso high camp no vale ao lado, e nos preparamos mais uma vez para tentar o P5665.

     
Cume do P5589 © Lee Harrison   Nossa via na face Sudeste do P5589 © Lee Harrison
     

Terceira tentativa ao P5665

Como nosso único objetivo era a pirâmide rochosa do P5665, poderíamos tentar uma linha mais direta do que das vezes anteriores. Passamos com facilidade por uma encosta de neve e rocha podre e rapidamente ganhamos a crista Oeste-Noroeste, novamente a partir da bacia do glaciar. Chegamos cedo na rampa de neve e apesar de ligeiramente melhor do que da vez anterior, as condições estavam longe de ideias.

Solamos o começo da rampa (55-60o) e chegamos até o primeiro platô, fizemos uma parada. A neve estava ruim, até estressou um pouco. Nós tínhamos apenas 3 parafusos de gelo, então usamos as piquetas e um parafuso para fazer a parada sob o único bloco de gelo sólido que encontramos em toda a face. Também colocamos uma fita sob uma pilha de pedras, mas era impossível usar as rochas para proteção  porque tudo o que tocávamos desmoronava e se desprendia com tanta facilidade que eu cheguei a questionar como era possível aquele pico estar sequer em pé!

     
Murilo na penúltima cordada em direção ao cume © Lee Harrison   Rumo ao cume © Lee Harrison
     

A exposição era grande, a impressão era de uma queda limpa até o fundo do vale vizinho, centenas de metros abaixo. Eu e Lee tínhamos opiniões diferentes sobre a última cordada, eu estava em um daqueles estados em que nada se sente, e pouco se pensa, determinado a tentar outra vez. A inclinação oscilava entre 55-70o, mas a cada metro eu tinha que cavar uma trincheira profunda para conseguir encontrar alguma neve com o mínimo de sustentação, o que fazia tudo ficar muito mais inclinado. Na metade da cordada eu já havia esticado uns bons 25 metros sem proteção alguma e o terreno acima parecia ser igualmente impossível de proteger. Antes de entrar no que parecia ser o crux, sem qualquer proteção, clipei um dos parafusos na corda e o mandei de volta para o Lee, para que ele reforçasse a parada. Se eu cair, isso iria diminuir as chances de rolarmos montanha abaixo. O que se seguiu foi um tenso e delicado balé onde o esforço para trocar os pontos de apoio dos meus pés e braços acabava por destruir o ponto anterior. Depois de cerca de 30 m consegui finalmente colocar um parafuso, como proteção psicológica. Por duas vezes eu tive certeza que o degrau onde estava pisando iria despencar, mas a neve apenas deslizou alguns centímetros e “parou”. Estômago amarrado. Precisei de muita conversa interior para me convencer a continuar subindo. Para minha surpresa, quando cheguei ao topo encontrei um cordelete ancorado a uma rocha, provavelmente usando para rapelar do cume! Foi como chegar em Marte e encontrar um papel de bala! Hah! Não que isso diminuísse nosso senso de aventura. O Lee chegou até mim e agora tínhamos apenas os últimos metros de uma rocha assustadoramente solta para chegar no topo. Tivemos que subir e descer um de cada vez até o delicado cume, para evitar desmoronar a coisa toda.

Segundo nossos porteadores, a última expedição a visitar aquele lado do Yokshgoz foi a nove anos atrás. Considerando que a montanha pode ser acessada na metade do tempo a partir do Vale Lupgar, é provável que a primeira ascensão tenha sido feita a partir do Norte, o que faria essa a segunda ascensão ao pico, por uma nova via. Chamamos a linha de Marshmellow Route, graduação D. Coordenadas36.71002, 74.5403. Escalada “de exploração” tem dessas coisas, as vezes é complicado ter certeza absoluta de ser o primeiro na via ou no cume. O processo de encontrar essas “primeiros” envolve muita pesquisa e um pouco de sorte, e acho que por conta disso talvez seja mais apropriado, em muitos casos, usar a expressão “first registered ascent”.

     
Altas nuvens sob o cume do P5665 © Lee Harrison   Lee se equilibra precariamente no topo do P5665
     

Casa

De volta ao BC, tínhamos apenas mais um dia para desfazer o acampamento, queimar o lixo, e comer as sobras, antes dos porteadores chegarem. Fizemos o trek de volta a Passu em dois longos e intensos dias. Descansamos dois dias em Karimabad e como nosso voo de Gilgit a Islamabad foi cancelado, tivemos que enfrentar tortuosos 478 km de táxi pela KKH, de 18 horas de carro! Passamos por diversos checkpoints policiais onde tínhamos que mostrar os passaportes e nos registrar. Por um longo trecho o motorista pediu para que cobríssemos as janelas, e em duas ocasiões tivemos um policial conosco, dentro do carro, nos escoltando por alguns quilômetros. Como de praxe, a parte mais perigosa da viagem não envolveu escaladas ou terroristas, mas a estrada. Não havia ponto cego ou pista molhada suficiente que reduzisse a velocidade e loucura de nosso motorista e suas ultrapassagens. Em alguns momentos ele chegou até a colocar seu cinto de segurança, mostrando comprometimento total! Devo ter perdido várias vidas naquelas ultrapassagens secas, a tal ponto que fechei os olhos e parei de olhar para a estrada.

     
O dream team se preparando para o retorno a Passu   O bagulho é louco e o processo é lento na KKH
     

Reflexões finais

Nessa viagem eu resolvi não levar nenhum jogo, livro, ou música para me distrair. Eu queria assistir de camarote à minha mente divagando diante da monotonia do acampamento, do stress das caminhadas, ou do receio das escaladas. Alpinismo é a arte de sentir-se confortável em locais desconfortáveis, e eu queria explorar ao máximo esses sentimentos. Sai de casa com mínimas expectativas, e durante os 18 dias em que estivemos isolados nós escalamos três picos moderados, 1 colo, e exploramos 3 diferentes glaciares, nada mal pra primeira vez!

Também conheci um pouco do Paquistão, seu povo e sua cultura, e pude ter uma visão pessoal sobre notícias e conclusões pré processadas que são transmitidas por uma mídia generalista e tendenciosa. Fui alegremente surpreendido pela maneira amigável e aberta dos paquistaneses que conhecemos, sempre com um sorriso no rosto, animados pra um chá e uma conversa. Ficavam malucos quando eu falava que era brasileiro, queriam bater papo e saber do futebol e das novelas, até vi dois garotos com camisas da seleção, imagine! O Norte, em especial o Vale de Hunza, considera-se “moderado” em termos de interpretação do Islã. Vimos mulheres guiando carros, motos, e até andando desacompanhadas. Samina Khayal Baig, a primeira mulher paquistanesa a escalar o Everest é daquela região, e os locais brincam que se ela tivesse nascido no Sul, já teria sido degolada.

Não posso dizer que me senti ameaçado em momento algum, mas admito que é difícil uma percepção exata do “perigo” a nossa volta. Em Islamabad e Gilgit, partes mais centrais e urbanas, nota-se uma mudança na maneira das pessoas à nossa presença, mas ainda assim, nada intimidante. Me parece que o grande problema do Paquistão, é que a minoria ruim, é de fato muito, muito ruim. Na Karakoram Highway é recomendado evitar-se o trecho entre essas duas cidades porque a estrada passa por regiões que estão tecnicamente em conflito, além de que essa é a parte menos cênica da estrada. A única alternativa é pelo ar.

 


No alto da minha monotonia eu construí dezenas de torres de pedra ao redo do acampamento

 

Uma boa preparação física é essencial, mas é definitivamente a cabeça que determina o sucesso. O corpo segue a mente. A quantidade de coisas que deram errado, apenas para chegar ao base camp, foi absurda. Durante longos e estressantes dias, passei por novos estágios de exaustão, quando achava que não conseguia mais, e sempre há mais. É importante adotar uma postura positiva e ver as coisas com olhos de criança, como lições para futuros planos.

...eu quero mais!

Murilo Lessa
www.uncomfortablyhappy.com

 
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