Extremos
 
NOTÍCIAS
 
Everest: uma caminhada rumo ao autoconhecimento
 
texto: Marina Linhares
edição de texto: Juliana Finardi
fotos: Marcelo de Lucas
16 de março de 2016 - 15:34
 

Everest, Lhotse e o Ama Dablam ao fundo. Marina Linhares, Marcelo de Lucas e o guia nepalês a frente.

 

A superação de pequenos grandes problemas diários que acabou na descoberta de que não há limites para quem tem um propósito.

Foram 11 dias sem banho, 7 dias sem internet, 40 graus abaixo de zero, 15 dias de caminhada (subindo e descendo), 5.540 metros de altitude, e tudo isso com a metade do oxigênio que temos ao nível do mar, em um lugar onde pagamos até R$ 20 por um rolo de papel higiênico! Para o leitor mais desavisado, estes números podem ter causado um misto de sensações conflitantes como aflição, medo, angústia, curiosidade e, por que não, empolgação!

Sim, estou prestes a relatar meus dias de trekking ao campo base do Everest entre dezembro e janeiro deste ano, uma das experiências (senão a maior) mais surpreendentes pelas quais tive o privilégio de passar em toda minha vida. Foram momentos que me ajudaram a descobrir que eu não tenho limites, e isso não significa que eu não tenha limitações, mas que sou capaz de realizar qualquer coisa que eu queira de verdade.

Tenho 26 anos e uma vida que nunca foi direcionada aos esportes, muito menos aos radicais. Trabalho com educação de crianças especiais e venho de uma família que não tem o esporte como hábito. Eu acreditava que para ser um super atleta era preciso ter a tal genética privilegiada. Não eu! Sempre admirei aquelas pessoas que se superavam, batiam recordes, faziam ultramaratonas, chegavam a lugares onde nunca ninguém chegou.

Foi então que em um belo dia assisti a um documentário de uma jovem brasileira que subiu a montanha mais alta do mundo: Karina Oliani. Ela fazia tudo parecer fácil e tinha uma incrível capacidade de ver o lado bom em tudo. Nesse dia, conheci mais um significado para a palavra “superação”, e aquela montanha virou magia em meus pensamentos. Comecei a acreditar que eu também podia.

A partir daí, li reportagens, conheci outros alpinistas e encontrei o livro “Meu Everest”, do Luciano Pires, descobri então que era possível realizar um trekking até o campo base.

     
A Cidade Sagrada.  
Uma das maiores stupas foi atingida pela terremoto de 2015.
 

Depois de muitas contas, eu e o Marcelo, meu noivo, chegamos à conclusão de que queríamos mesmo ir, e mesmo sabendo que não seria fácil, fechamos nossa viagem por conta própria (sem pacotes já montados) com a agência nepalesa, enviamos o valor referente ao sinal e compramos as passagens. Estava feito. Nós iríamos para o Everest realizar o meu sonho.

Um detalhe, porém, tornava a aventura mais desafiante: como sou professora, a única época em que poderia ir eram nas férias de verão, mas também de inverno do Himalaya, ou seja, haveria mais problemas a serem superados!

Passamos um ano de economias, e de muito treino. Aos finais de semana, inclusive. Aquela pessoa que não gostava de esportes e acreditava não ter nascido pra isso deu lugar a uma outra louca por treinos, por desafio!

Um belo dia, ligamos a televisão e assistimos a triste notícia: um grande terremoto havia devastado grandes áreas no Nepal. Um misto de tristeza e medo nos invadiu. Já estávamos em contato com pessoas de lá, e nossa preocupação era com a vida de todos. Mesmo assim, continuamos firmes em nosso propósito e agora tínhamos uma missão a mais: ajudar as pessoas que foram vítimas. Conseguimos muitas doações de roupas infantis, e levamos uma mala imensa pra lá.

     
     

Enfim, chegou o grande dia: 27 de dezembro de 2015 embarcamos para o nosso sonho. Fizemos escala em Abudhabi, e pudemos conhecer algumas atrações por lá, mas vamos ao que interessa. Chegamos ao Nepal no dia 30 de dezembro.

Ao desembarcar em Kathmandu, aeroporto de Tribhuvan, você deve se dirigir a um balcão cheio de formulários, preencher um, pagar em um outro balcão, e aí então ir até a imigração. Você paga o visto de acordo com a quantidade de dias em que ficará no país. O nosso foi para 30 dias.

Chegar até o hotel era um grande desafio. Os carros andam por todos os lados, não vemos placas de trânsito, as pessoas buzinam sem parar, a poluição também é bem grande, e muitas pessoas usam máscaras.

Nosso hotel ficava localizado no bairro de Thamel, um grande centro comercial, cheio de restaurantes e lojas de equipamentos, uma delícia por sinal! Nesse dia pudemos começar a comprar o restante das coisas que faltavam para o trekking.

Dia 31 de dezembro saímos com o guia da agência para uma visita guiada! Conhecemos Bhaktapur, uma cidade cultural cheia de belos monumentos, mas com muitas partes destruídas por causa do terremoto. Assistimos ao sacrifício de um bode em plena rua, e também passamos por uma área completamente devastada, em que as pessoas estavam dormindo em pequenas cabanas, triste demais! Naquela região, mais de duas mil pessoas haviam morrido no terremoto.

Conhecemos neste dia também a estupa de Boudhanath (um tipo de monumento budista que normalmente contém os restos mortais de uma pessoa importante dentro da religião budista, um lama ou um monge) e o templo de Pashupatinath (onde há a cremação das pessoas que morrem), e mais uma vez vimos muitos resquícios do imenso terremoto. Passamos a virada do ano neste lugar, em meio a uma festança. Havia centenas de homens nas ruas, sim homens, praticamente não se via mulheres. Todos muitíssimo animados e andando abraçados pelas ruas de Thamel. Havia também um palco com DJ e música eletrônica, mas não deu pra ficar, a multidão era grande e o empurra-empurra também.

     
     

No primeiro dia de 2016, tudo funcionou normalmente, terminamos nossos preparativos para o trekking e fomos para a agência para combinar os últimos detalhes, nesse dia, o frio na barriga realmente era grande, no dia seguinte começaríamos nossa aventura.

No dia 2, acordamos por volta das 6h e seguimos para o aeroporto Tribhuvan. Os vôos para Lukla são uma verdadeira loteria, pois caso haja mal tempo, névoa, ou mesmo um dia com muitas nuvens, o aeroporto de lá fecha, e não há vôos. Estávamos com sorte. Embarcamos no pequeno avião de 15 lugares da Goma Air. E aí era só rezar para todos os santos possíveis para que chegássemos. O avião passa por dentro das montanhas e dá uma aflição danada, mas a vista é sensacional, linda mesmo. Até que, enfim, pousamos e estávamos no aeroporto mais perigoso do mundo! A partir dali, somente nossas pernas poderiam nos levar onde queríamos.

Nesse dia, andamos cerca de 3h30, e chegamos ao vilarejo de Phakding, onde passamos a noite.

Nosso trekking foi maior do que o comum para os turistas por lá porque não tínhamos pressa e queríamos que a nossa aclimatação fosse perfeita. Ao todo foram 15 dias andando, 11 para ir e quatro para voltar. Nessa conta, foram 11 dias sem tomar banho e 7 dias sem internet!

 

Marcelo de Lucas e Marina Linhares a caminho de Lobuche, no Trekking ao Campo Base do Everest.

 

Pude ver as paisagens mais lindas desse mundo, as montanhas mais altas, as pessoas mais gentis, em um lugar onde tudo é imenso e não dá para usar diminutivos. Vi também muita gente sem preparo físico sendo resgatada de diversas maneiras, desde o helicóptero até nas costas de sherpas (etnia comum da região das montanhas, conhecidos por serem guias ou carregadores muito experientes).

Também posso dizer que realizei um grande sonho da minha vida: estive lá, pisei na terra sagrada da Deusa mãe do mundo, privilégio de poucos, morada de muitos como Mallory, Irvine, e casa provisória de merecedores como Hillary, Tenzing, Karina Oliani.

Podemos dizer que todos os esforços para chegar lá valeram a pena. Enfrentamos temperaturas de -40 graus, sem aquecimento nos lodges (acomodações especiais para turistas dentro das casas dos moradores locais). Nossas garrafas de água congelavam à noite, mesmo dentro do quarto. Dormíamos com dois sacos de dormir, um para -5 e outro para -25 graus, além de todos os cobertores que os lodges emprestavam. Sair do quarto de madrugada para ir ao banheiro era uma tortura, eles ficam ao lado de fora, em pequenas casinhas de madeira com um buraco no chão, e nenhum banheiro possuía pia para lavar as mãos, usamos só álcool gel mesmo.

 

Marina Linhares com o Ama Dablam ao fundo. Foto: Marcelo de Lucas

 

A água que tomávamos era da torneira, e colocávamos comprimido de cloro, funciona super bem, não tivemos virose e nem disenteria em nenhum momento. Toma-se cerca de 3 a 4 litros ao dia para ajudar na aclimatação.

Na mochila do dia a dia carregávamos algumas barrinhas e snacks que compramos na cidade de Kathmandu, porque nas montanhas tudo é muito caro. Para quem resolveu se arriscar, não se esqueça de levar papel higiênico para as montanhas! Sim, porque lá é artigo de luxo e pelo motivo de não estarem disponíveis nos banheiros, chegam a custar 20 reais (um rolo!), já que todos os produtos industrializados que vendem nos lodges chegam lá pelas costas dos sherpas e em helicópteros.

 

Campo Base do Everest.

 

Enfrentamos o cansaço oriundo da grande altitude, o desconforto, a falta do banho, e sim, tudo isso valeu e muito a pena. Conhecemos lindas vilas, lindas pessoas, lindas montanhas. Estar no campo base me tornou uma pessoa muito mais forte, e superar meus limites foi incrível! Hoje, tenho o Everest no coração e na pele, tatuado no meu braço. Jamais esquecerei de quem fui e em quem me tornei ao sair de lá.

Sim, já quero voltar para o Nepal! Vamos?

Marina Linhares

comentários - comments