K2: perigo e desejo na montanha selvagem
por: Chip Brown - Fonte: National Geographic Brasil
2 de maio de 2012 - 12:00
 
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  • Uma rara vista da �pica crista na face chinesa do K2 � t�o remota que a maioria escala o monte da cordilheira de Karakoram pelo lado paquistan�s. Aqui, membros da expedi��o de 2011 transportam equipamentos para a base do pico de 8.611 metros.
    Uma rara vista da �pica crista na face chinesa do K2 � t�o remota que a maioria escala o monte da cordilheira de Karakoram pelo lado paquistan�s. Aqui, membros da expedi��o de 2011 transportam equipamentos para a base do pico de 8.611 metros. Foto: Tommy Heinrich
  • Foram utilizados dezenas de camelos e oito guias do Quirguist�o para transportar 2,2 toneladas de equipamentos em todo o leito do rio Shaksgam at� o acampamento base chin�s. O custo: $ 17.000 mais oito pares de �culos de sol.
    Foram utilizados dezenas de camelos e oito guias do Quirguist�o para transportar 2,2 toneladas de equipamentos em todo o leito do rio Shaksgam at� o acampamento base chin�s. O custo: $ 17.000 mais oito pares de �culos de sol." Foto: Tommy Heinrich
  • Kaltenbrunner (em vermelho), Zaluski (laranja), seguem Zhumayev Vassiliy Pivtsov subindo uma ladeira de neve abaixo Acampamento II.
    Kaltenbrunner (em vermelho), Zaluski (laranja), seguem Zhumayev Vassiliy Pivtsov subindo uma ladeira de neve abaixo Acampamento II. Foto: Tommy Heinrich
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    Assine a revista National Geographic Brasil Foto: Tommy Heinrich
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Uma rara vista da �pica crista na face chinesa do K2 � t�o remota que a maioria escala o monte da cordilheira de Karakoram pelo lado paquistan�s. Aqui, membros da expedi��o de 2011 transportam equipamentos para a base do pico de 8.611 metros. Foto: Tommy Heinrich

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Amanhã é nosso dia

Enfim nasce a manhã que enche a todos de esperança: segunda-feira 22 de agosto, 7950 metros, acampamento 4. O vendaval cessou, não neva mais, o céu está azul e sem nuvens até o infinito.

Por boa parte de julho e metade de agosto, os seis membros da Expedição Internacional de 2011 ao Pilar Norte do K2 viveram um sobe e desce angustiante nas poucas vezes desafiada crista norte do segundo pico mais alto do planeta. Eles formam o único grupo no remoto lado chinês do K2, o gigante que se eleva a 8611 metros na cordilheira de Karakoram, na fronteira da China com o Paquistão. Os montanhistas sobem a crista (como é costume chamá-la, embora “crista” não dê a ideia de quanto o terreno é íngreme) sem oxigênio suplementar nem carregadores especializados em grandes altitudes.

O que lhes falta em números, todavia, a experiência compensa. Os dois escaladores do Cazaquistão – Maxut Zhumayev, de 34 anos, e Vassiliy Pivtsov, de 36 – estão, respectivamente, em sua sexta e sétima tentativas de alcançar o cume do K2. Dariusz Zaluski, videomaker polonês de 52 anos, é um veterano de três tentativas. Tommy Heinrich, fotógrafo argentino de 42 anos, tem em seu currículo duas expedições ao K2, mas também não conseguiu chegar ao cume.

O destaque do grupo é uma austríaca de cabelos castanhos, Gerlinde Kaltenbrunner, ex-enfermeira de 42 anos que está em sua quarta tentativa na montanha. Se for bem-sucedida dessa vez, ela se tornará a primeira mulher na história a escalar sem oxigênio suplementar todos os 14 picos do planeta acima da mística aura dos 8 mil metros. Ela guia a expedição com seu marido, Ralf Dujmovits, de 49 anos, que já escalou todos os picos de 8 mil metros (todos, exceto um, sem o uso de oxigênio suplementar) e é o mais renomado montanhista de grandes altitudes da Alemanha. Ralf atingiu o cume do K2 pelo lado paquistanês logo em sua primeira tentativa, em julho de 1994.

Os seis escaladores levaram 42 dias para estabelecer vários acampamentos ligados por milhares de metros de corda fixada por uma rota que tem de tudo da geografia do montanhismo, desde rocha vertical e gelo até encostas cobertas de neve à altura do peito e assoladas por avalanches. Desdobraram-se para abrir uma via debaixo de neve cerrada, carregar equipamento, limpar o local dos acampamentos, armar barracas, derreter gelo. Cansados, várias vezes abriram mão do que haviam conquistado e desceram para dormir mais abaixo, no acampamento-base avançado, a 4 650 metros, no glaciar Norte do K2.

Uma data-limite se impõe: em 16 de agosto, eles partem para sua primeira e única chance real de chegar ao cume. A neve, que vem caindo por boa parte do verão, volta a incomodar. A equipe chega nesse dia ao acampamento 1, ao pé da crista, mas avalanches rugem ameaçadoras e, durante a noite, despencam mais de 30 centímetros de flocos de gelo. Eles decidem esperar ali por um dia, torcendo para que a neve nas encostas acima caia de uma vez antes que prossigam na ascensão.

Em 18 de agosto, às 5h10 da madrugada, o grupo resolve avançar ao acampamento 2. Cada quilo extra é um fardo; para aliviar o peso, Gerlinde deixa até seu diário na barraca. Duas avalanches haviam varrido a rota através de uma longa ravina. Por volta das 6h30, Ralf para. As condições da neve são tão precárias que ele não consegue mais desprezar seu instinto. “Gerlinde, vou voltar”, anuncia. É um momento decisivo.

Desde que começaram a escalar juntos, os dois têm um pacto de não atrapalhar nas ocasiões em que um deseja prosseguir e o outro não. Salvo por lesão ou doença, cada um é responsável por si. Apenas um de vários exemplos: no Lhotse, no Nepal, em 2006, Gerlinde continuou a escalar sozinha por 20 minutos, depois que Ralf foi dissuadido diante da neve fresca sobre o gelo azul na garganta do cume, até que ela mesma decidiu voltar. Gerlinde reconhece que na época ainda estava transbordando de wagnis – “audácia”, em alemão. Como nunca conquistou o cume do K2, se dispõe agora a correr o risco. Ralf, que já fez o cume, não. Além disso, ela lida com o perigo de um modo diferente. Enquanto ele gosta que a sensação de medo no estômago lhe revele os limites de sua habilidade e o obrigue a prestar mais atenção, Gerlinde se empenha em bloquear o pânico com a calma silenciosa que a possui na hora em que se absorve apenas no que tem de fazer. Quando se mantém concentrada na tarefa, não sente medo.

Mas ali, na ravina acima do acampamento 1, apesar do pacto entre ambos, apesar de saber que o atraso pode custar a ela a chance de chegar ao cume, Ralf pede à mulher que desça também. E se descontrola. (“Ralf alertava que a rota estava sujeita demais a avalanches. Gritava em desespero”, contou Maxut depois, em um vídeo em seu site. “E Gerlinde gritava que aquele era o momento em que o destino da escalada seria decidido. Se voltássemos agora, dia 18, não aproveitaríamos o período de bom tempo.”)

Foi uma reação emocional. “Tive medo de nunca mais voltar a vê-la”_explica Ralf

Naquele seu momento mais aflitivo da escalada até então, Gerlinde vê Ralf distribuir aos outros sua parte do equipamento e sumir neblina abaixo. Então, talvez no mais rematado exemplo de tenacidade e determinação da austríaca, ela volta a se concentrar no que está fazendo. “Não é que eu estivesse indiferente ao risco”, explica ela. “Mas meu pressentimento era bom.”

Como Ralf temia, porém, a neve na encosta começa a desprender-se, em três pequenos deslizamentos seguidos provocados por Maxut, Vassiliy e Gerlinde, que seguem na frente abrindo a via. O maior deles atinge em cheio Tommy, que escala com um atraso de quase 60 metros; derruba- o de cabeça para baixo e enche seu nariz e sua boca de gelo. Graças à corda fixa, retesada como uma corda de violoncelo, ele não é ejetado da montanha. Tommy consegue se desenterrar, mas, como o deslizamento torna a encher de neve o caminho duramente aberto, por fim desiste.

Agora são quatro: Gerlinde, Vassiliy, Maxut e Dariusz. Abrir a via é uma tarefa de Sísifo – pior, na verdade, pois sabem muito bem que escolheram aquele castigo. Tirar a neve para os lados, quebrar a crosta com o joelho, compactar o que está embaixo, pisar, erguer a perna. Repetir, repetir, repetir. Depois de 11 horas de sofreguidão, montam um bivaque no acampamento de provisões abaixo do acampamento 2 e passam uma noite penosa, espremidos em uma barraca para duas pessoas. No dia seguinte, superam as seções mais difíceis da crista e chegam ao acampamento 2, a 6600 mil metros, onde vestem as roupas de neve com forro de pena de ganso. No sábado 20 de agosto, seguem com dificuldades até o acampamento 3. Chegam à tarde, exaustos e gelados até os ossos. Bebem café com mel e aquecem mãos e pés na chama do fogareiro a gás. A noite toda as paredes da barraca, cobertas pela geada, estalam e estremecem com o vento.

A previsão ouvida por telefone via satélite que Ralf lhes passara pelo rádio do acampamentobase avançado promete tempo melhor. Ele chega no domingo 21 de agosto, anima todo mundo e os ajuda a chegar ao acampamento 4. Estão agora a 8 mil metros, na chamada zona da morte, onde o corpo é incapaz de se aclimatar ao ar com baixo teor de oxigênio, a cognição fica prejudicada e as tarefas mais simples demoram uma eternidade. Eles passam a tarde afiando seus crampons e derretendo neve. À noitinha, permanecem unidos dentro das barracas, empoleiradas em um entalhe de rocha sobre um tenebroso vazio de 3 quilômetros até o glaciar lá embaixo. Seiscentos metros acima, vê-se o cintilante manto branco do cume, intocado desde 2008, quando 11 escaladores morreram em um dos mais letais episódios na história do montanhismo no K2.

“Houve um momento em que todos começamos a ficar nervosos, no bom sentido”, contou Gerlinde depois. Era a hora da decisão. “Pegávamos nas mãos uns dos outros e dizíamos, olho no olho: ‘Então, amanhã é nosso dia’.”

Paixão pela aventura

O K2 tem um lugar especial na escalada de grande altitude. Apesar de ser 239 metros mais baixo que o Everest, há tempos é conhecido como “a montanha dos montanhistas”. Sua silhueta triangular que assoma no terreno circundante não só define a imagem arquetípica de uma montanha mas também torna o K2 bem mais difícil e perigoso. Até 2010, o pico do Everest fora atingido 5 104 vezes; o do K2, apenas 302. Para cada quatro escaladores que conseguiram chegar ao cume do K2, um morreu. Depois das primeiras tentativas por equipes britânicas e italianas no início do século 20, grupos americanos aventuraram-se no K2 em 1938, 1939 e 1953, ano em que Charles Houston e Robert Bates escolheram “K2: a montanha selvagem” como título do relato de sua expedição. Tantas vezes essa caracterização foi usada ao longo dos anos seguintes que dá a impressão de que os humores do pico refletem não a dinâmica do mundo físico, mas alguma antipatia pessoal contra os escaladores que buscam seus favores. Em 1954, o K2 enfim foi conquistado por uma grande expedição italiana, que colocou dois homens no cume pela hoje clássica rota no lado paquistanês da montanha.

Em Gerlinde Kaltenbrunner a montanha dos montanhistas deixou uma impressão indelével quando ela a avistou pela primeira vez, do vizinho pico Broad, em 1994, aos 23 anos. “Fiquei fascinada com a forma do K2”, lembra-se ela, “mas não ousei me imaginar escalando ali.”

Gerlinde, a penúltima de seis filhos, cresceu em uma família católica em Spital am Pyhrn, um vilarejo montanhoso de 2,2 mil habitantes no centro da Áustria. O pai, Manfred, trabalhava nas pedreiras locais; a mãe, Rosamaria, era cozinheira em um albergue da juventude. Gerlinde idolatrava a irmã Brigitte, dez anos mais velha. Era louca por esportes: natação, ciclismo, esqui. O dinheiro era escasso na família; Gerlinde só foi assistir a um filme no cinema aos 17 anos.

Ela frequentou uma escola de esportes, onde treinou esqui; descobriu que era boa esquiadora, mas não chegaria à elite. O pior era quando as que se diziam suas amigas se ressentiam se ela as superasse em uma corrida. A experiência das rivalidades na escola tirou-lhe o gosto pela competição e mais tarde moldou sua relutância em concorrer por recordes com outras alpinistas.

Foi na igreja, e não na escola, que sua paixão pela escalada floresceu. Em um país onde a maioria dos grandes montes tem cruzes no cume, não é de surpreender que Erich Tischler, o padre local, usasse calções de alpinista por baixo da batina e nos domingos de tempo bom abreviasse o sermão para que seu rebanho pudesse subir logo as encostas. Gerlinde era coroinha, e ia à missa com botas na mochila. O padre Tischler levou-a em sua primeira caminhada quando ela tinha 7 anos e em sua primeira escalada técnica com corda, aos 13, na montanha Sturzhahn.

Quando os pais se divorciaram, em 1985, Gerlinde se desentendeu com a mãe e, aos 14 anos, saiu de casa. Foi morar com a irmã Brigitte e seguiu-a também na profissão de enfermeira. Aos 20 anos, ela trabalhava em um hospital em Rottenmann, uma cidadezinha a 24 quilômetros de Spital am Pyhrn. Estava feliz, perto da família, mas independente. Nos fins de semana, partia para escalar nos Alpes próximos. A fome de aventura, que sempre a destacara na família, levou-a à cordilheira de Karakoram, em 1994. No pico Broad, no Paquistão, Gerlinde desistiu de atingir o cume quando o tempo piorou, depois mudou de ideia e enfim conseguiu chegar a um pico inferior, uns 20 metros abaixo do cume de 8 051 metros, no extremo de uma longa crista. (Em 2007, ela voltou e fez o cume.) Gerlinde exultou, mas, depois de ver o corpo de um escalador morto na montanha, ficou perplexa. “Não é possível que alegria, júbilo e morte estejam tão intimamente ligados”, escreveu em seu diário.

Voltou a sua terra, economizou, emendou férias para poder viajar e escalar no Paquistão, China, Nepal, Peru. Depois da primeira expedição, ouviu do pai: “Pronto, já basta. Você não precisa fazer mais”. Após a segunda, o discurso seguiu o mesmo: “Agora já fez duas. É suficiente”.

“Ele queria me ver casada, mãe de família”, lembra-se Gerlinde, que por volta dos 20 anos concluiu que ter filhos não era seu destino. Mostrou fotos ao pai e tentou explicar a infusão de energia e felicidade que sentia nas montanhas. Havia riscos, é claro, mas ser enfermeira lhe ensinara que a morte era parte da vida. E, para comparar, bastava o caso de Brigitte, que já enterrara três maridos. Coisas ruins acontecem a qualquer momento e em qualquer lugar.

Em 1998, Gerlinde venceu sua primeira montanha de 8 mil metros, o Cho Oyu, perto da fronteira do Nepal com a China. Quatro anos depois, no Nepal, atingiu o cume de sua terceira na categoria, o Manaslu, de 8163 metros. No acampamento- base, conheceu Ralf Dujmovits, então com 40 anos e uma celebridade depois de estrelar uma escalada da face norte do Eiger, nos Alpes suíços, vista ao vivo pela televisão por milhões de telespectadores. Os dois entenderam-se como um casal de cisnes e passaram a escalar juntos.

Por mais de 20 anos as mulheres vinham abrindo seu caminho no território masculino do montanhismo de grande altitude, mas muitos escaladores continuavam a tratá-las com ar de superioridade. Em 2003, ainda aclimatada logo depois de uma tentativa malograda no Kanchenjunga, Gerlinde foi para o Paquistão tentar a face Diamir do Nanga Parbat, de 8126 metros. Acima do acampamento 2, ela se viu em fila única abrindo uma via com seis homens, cinco do Cazaquistão e um da Espanha. Sua presença não foi mencionada quando o líder informou pelo rádio que sete escaladores estavam a caminho do acampamento 3. Quando chegou a vez de ela assumir a frente da fila para abrir a via, foi delicadamente dispensada. Cavalheirismo ignorante? Subestimação de suas habilidades? Gerlinde não soube dizer, mas foi com calma para o fim da fila. De novo chegou sua vez e de novo um dos homens tentou dispensá-la. Ela enfureceu-se. Desembestou a subir pela encosta inexplorada, à frente de todos, sem parar, até chegar ao local do acampamento 3. Os escaladores atônitos que vieram em sua esteira a apelidaram de “trator Cinderela”, em reconhecimento àquela máquina de abrir via que aparecera no meio deles.

Gerlinde foi a primeira austríaca a chegar ao cume do Nanga Parbat, o monte que ficou célebre, em 1953, quando foi conquistado pelo lendário alpinista austríaco Hermann Buhl. O sucesso de Gerlinde no 50º aniversário da façanha de Buhl foi notícia em revistas de montanhismo e a impulsionou a fazer de sua paixão uma profissão. Nos dois anos seguintes, ela adicionou ao currículo o Annapurna I, o Gasherbrum I, o Gasherbrum II e o Shisha Pangma. Fizera já oito dos 14 picos mais altos. Em janeiro de 2006, a revista alemã Der Spiegel apelidou-a “rainha da zona da morte”. A imagem de uma altiva monarca reinando sobre a vida e a morte não tinha nada a ver com a real personalidade daquela mulher sensível e altruísta (no acampamento-base do K2, Gerlinde pôs óculos escuros em uma ovelha cega pela neve para ver se aliviava a aflição do animal), mas foi ótima para vender ingressos de suas conferências, impressionar os patrocinadores e lhe assegurar a profissionalização no montanhismo.

 

Na primavera de 2006, depois de também ter desistido do cume do Lhotse, ela encontrou Ralf a sua espera no acampamento a 7250 metros. Era uma noite cálida, rara no Himalaia. Deitados nos sacos de dormir do lado de fora da barraca, sob uma miríade de estrelas, com um manto de nuvens cobrindo a terra lá embaixo e relâmpagos distantes esbraseando a face do Everest, Ralf pediu Gerlinde em casamento.

“Não foram os três primeiros meses de casamento típicos”, conta Gerlinde. Os recém-casados passaram o verão tentando vários cumes, juntos ou não. Em maio de 2007, enquanto Ralf guiava uma expedição no Manaslu, Gerlinde foi escalar o Dhaulagiri I, de 8167 metros. Teve o cuidado de armar sua barraca bem à esquerda da área onde uma avalanche quebrara o pescoço da famosa alpinista francesa Chantal Mauduit, em 1998. Perto dali estavam duas barracas ocupadas por três montanhistas espanhóis, que haviam convidado Gerlinde para um café. Às 9 da manhã de 13 de maio, Gerlinde estava dentro da barraca, em traje completo, exceto as botas, esperando que o vento abrandasse para seguir até o acampamento 3. Então houve um estrondo, e uma enorme massa de neve devorou o acampamento, arrastando sua barraca encosta abaixo por 30 metros até a beira de um precipício.

“Eu não sabia se estava de cabeça para baixo ou para cima”, recorda-se ela. Meus pés estavam completamente presos na neve, mas eu conseguia mexer um pouco os braços. Tentei alcançar a pequena faca que trazia no cinto. Receava ser asfixiada pela neve. Consegui rasgar a parede da barraca com a faca. Havia uns 30 centímetros de neve solta por cima dela, e consegui perfurar essa camada com o punho. Depois de mais ou menos uma hora, consegui sair da barraca. Estava descalça e sem os óculos de sol.”

Procurou as barracas dos amigos espanhóis. Uma delas, para uma pessoa, ainda estava intacta. A outra, com dois montanhistas, sumira. Ela começou a cavar em desespero. Uma hora depois, quase 2 metros abaixo, encontrou-a. Santiago Sagaste e Ricardo Valencia estavam lá dentro, mortos. Desapareceu toda a sua vontade de fazer qualquer coisa no Dhaulagiri além de descer. Mais tarde, ela desabafou com Ralf. Por que não notou que aquele tempo mais quente era mau sinal? Por que não prestou atenção ao aviso quando sua pulseira de turquesas, que era seu talismã, se quebrara na véspera?

Apesar desse quase adeus ao mundo, ela voltou ao Dhaulagiri no ano seguinte. E fez o cume.

Rumo à montanha selvagem

Chegar à base do K2 já é árduo, embora esteja bem mais fácil do que no tempo das primeiras expedições, que demandavam meses em viagem. Eu havia combinado acompanhar o grupo de 2011 até o acampamento-base avançado. Todos nos encontramos na cidade de Kashi, ou Kashgar, na antiga Rota da Seda, no extremo oeste da China. Depois seguimos para o sul, em 19 de junho, em três Land Cruisers Toyota e um caminhão abarrotado com mais de 2 toneladas de equipamento em barris azuis de plástico: barracas, sacos de dormir, fogareiros, parcas, pitons de rosca para gelo, painéis solares, baterias, computadores, quase 2 750 metros de corda, 525 ovos, pacotes de macarronada desidratada, uma garrafa de Chivas Regal, um DVD do filme Passe Livre, comédia dos irmãos Farrelly.

A estrada margeava a orla oeste do deserto de Taklimakan e percorria cidades agrícolas, forradas de álamos prateados e pomares irrigados pelos pujantes rios que drenam os montes Kunlun, ao sul, e Pamirs, a oeste. Depois de uma noite no mal iluminado hotel Yecheng Eletricity, cruzamos em nossos veículos o desfiladeiro Chiragsaldi; atravessamos vagalhões de poeira a 15 quilômetros por hora até chegarmos a uma desolada parada de caminhões chamada Mazar. Pela manhã, seguimos a oeste até a acidentada estrada que acompanha o rio Yarkant e leva ao povoado de Ilik, de nômades quirguizes, com 250 habitantes. Abrimos os sacos de dormir na sala atapetada de uma casa de tijolos que pertencia ao mulá local. Boa parte do povoado apareceu de manhã para ajudar a atrelar o equipamento da expedição ao lombo de camelos, e, ao meio-dia, a caravana adentrou o vale do rio Surukwat: 40 camelos, oito jumentos, seis vacas, um pequeno rebanho de ovelhas destinadas às panelas quirguizes, um oficial de ligação uigur chamado Iskander Abibullah e seis montanhistas em trajes high-tech e óculos de sol “day for night” (muito escuros).

Gerlinde e Ralf exultam ao chegar ao K2 pelo norte pela primeira vez. À noite, no acampamento, Ralf exibe uma imagem composta da montanha feita com base em fotos e dados de mapeamento por satélite. Maxut estuda os atemorizantes detalhes da crista norte, que fora desbravada por uma equipe japonesa em 1982; ele e Vassiliy haviam passado muitas semanas naquela crista em 2007, antes que o mau tempo e a escassez de comida e água os forçassem a recuar. “É muito cedo para você mostrar isso”, observa Maxut, meio a sério. “Fica difícil dormir agora. Onde está a vodca?”

No terceiro dia, atravessamos o desfiladeiro Aghil, a 4780 metros, e descemos ao vale do rio Shaksgam, que se ergue dos glaciares sob os picos Gasherbrum. Gigantescos terraços de rocha cobertos de lama emolduram um vasto planalto de pedra cinzenta entrecruzado por meia dúzia de canais de água lodosa. Os canais não parecem difíceis de atravessar até que vemos um dos jumentos monteses perder o pé e ser levado pela correnteza como uma garrafa plástica. Atravessamos montados nos camelos.

 

Na quinta manhã, depois de uma hora de caminhada, todo mundo para de repente e fita o céu sem nuvens ao sul como quem pasma vendo um disco voador. Ao longe desponta o K2, um colosso que irrompe da terra como miragem, com suas paredes drapeadas de gelo tremeluzindo ao sol da manhã. Parece irreal, mas, mesmo a quilômetros de distância, seu poder é palpável. Dá para entender a atração que a montanha exerce nos montanhistas, embora aquela beleza estivesse impregnada de morte e seus flancos congelados encerrassem uma profusão de ossos e corpos sepultados. É fácil também entender por que alguém que vê o montanhismo da poltrona pode estremecer de pavor diante daquela coisa e duvidar que haja muito equilíbrio entre razão e desejo naqueles que decidem escalá-lo.

Gerlinde, que vira o K2 muitas vezes pelo sul, senta-se em uma rocha e fita o pico, deixando transparecer no olhar um tumulto de emoção. (Sem querer ser intrometido, perguntei a ela muitas semanas depois o que estava pensando. Ela me respondeu: “Eu pensava: o que posso esperar desta vez? Como vai ser?”)

A história da alpinista austríaca no K2 é toldada de lembranças penosas. Ela fizera três expedições pelo lado sul, a última em 2010. Na viagem, depois que uma queda de rochas acima do acampamento 3 fez Ralf voltar, Gerlinde juntou forças com um grande amigo do casal, Fredrik Ericsson, um esquiador radical que estava tentando descer dos picos mais altos do mundo. De esqui na mochila, Fredrik seguiu com Gerlinde para o cume a partir do acampamento 4. Na base da íngreme ravina conhecida como Gargalo, ele parou para colocar um piton e, enquanto o martelava, escorregou. Despencou na frente de Gerlinde e desapareceu em um instante.

Em choque, ela desceu o máximo que pôde, mas encontrou apenas um esqui antes que a encosta desaparecesse no vazio enevoado. Tempos depois, o corpo de Fredrik foi avistado na neve, 900 metros abaixo do Gargalo. Ele tinha 35 anos.

Como acontecera na tragédia no Dhaulagiri, Gerlinde não quis mais saber do K2 depois da morte de Fredrik. Embotada, triste, desiludida com o preço daquela vida que escolhera, foi para casa. No fim do ano, ela e Ralf viajaram em férias para a Tailândia. Por quatro semanas, viveram à beira-mar. Comeram peixe fresco. Escalaram rochedos marinhos onde as quedas terminavam em tépidas águas verdes.

Sempre lhe perguntavam por que ela ia tantas vezes ao K2. Por muito tempo, não teve resposta. Mas aos poucos começou a pensar que não era por culpa do lugar que Fredrik morrera. A perda era selvagem, a natureza não. “A montanha é a montanha, e nós somos as pessoas que vão até ela”, disse. Amigos tiraram uma foto de pedras na praia dispostas em formato de coração em volta de uma mensagem que eles tinham escrito com pedriscos:

Gerlinde + Ralf

K2 2011

Ela usou a foto na capa de sua lista de viagem.


Fusão no universo

Por volta das 7 da manhã de segunda-feira 22 de agosto, Gerlinde, Vassiliy, Maxut e Dariusz partem do acampamento 4 dispostos a atingir o lugar que é o clímax de um sonho comum e um ponto culminante da Terra. O dia nasce sem nuvens; o tempo é uma dádiva. Eles sobem rumo a uma íngreme calha de gelo, o corredor dos Japoneses, a característica mais marcante na parte alta da face norte da montanha. Mas, com apenas um terço do oxigênio encontrado ao nível do mar, neve até o peito em alguns trechos e ardidas rajadas de gelo que os forçam a parar e virar o rosto, o progresso é lento de doer. À 1 da tarde, não avançaram mais de 180 metros.

Embora, em 2007, houvessem passado algum tempo acima do acampamento 4, Vassiliy e Maxut não têm familiaridade com o corredor dos Japoneses, e é difícil distinguir o caminho até o cume. Gerlinde fala pelo rádio com Ralf, que está no acampamento-base avançado. Desde que voltou ali, ele se dedica a dar suporte ao grupo, informando a previsão do tempo, aconselhando, encorajando-os. Mesmo a quilômetros de distância, ele pode ver que o melhor lugar para atravessar o corredor é por baixo da saliência de uma greta que percorre, longitudinalmente, a encosta onde a neve tende a não ser tão profunda e a fratura natural na encosta diminui a chance de os escaladores começarem uma avalanche. Ele ajuda a guiá-los até a greta e vê suas figuras, do tamanho de vírgulas em uma página, começarem a atravessar, com toda cautela, o corredor sob uma série de seracs – massas de gelo que se projetam na encosta de 45 graus como águas-furtadas em um telhado. Os seracs talvez os protejam se avalanches rolarem lá de cima.

Aproximando-se da rochosa borda esquerda, eles passam a subir direto pela encosta até chegarem ao último serac, por volta dos 8,3 mil metros. Há 12 horas que estão escalando sem parar; faltam 300 metros até o cume.

Pelo rádio, atento ao esforço do grupo, Ralf aconselha Gerlinde a voltar ao acampamento 4 para passarem a noite, agora que já abriram a via e conhecem o caminho. “Vocês não podem dormir aí; não conseguirão relaxar”, diz ele.

“Ralf ”, replica Gerlinde, determinada, “estamos aqui. Não queremos voltar.”

Ao partir naquela manhã, eles sabiam que sua única chance de chegar ao cume poderia exigir um bivaque. Essa possibilidade levara Gerlinde a acrescentar na mochila sua barraca de 1,3 quilo para duas pessoas, panela e fogareiro, e a mesma conclusão tácita levara Dariusz, Maxut e Vassiliy a carregar cilindros de gás para fogareiro e comida a mais. (Dias depois, Maxut tentou explicar o estado de espírito deles a Tommy. “Este era o limite”, resumiu ele, traçando uma linha no chão com a bota, “e isto foi quanto avançamos além dele.” Põe a bota meio metro longe da linha. “Passamos completamente do limite. Arrisquei tudo, até minha família, minha mulher, meu filho, minha filha, tudo.”)

Com o sol declinando, todos se abrigam do vento atrás do último serac e preparam um lugar para montar a minúscula barraca. Por uma hora e 20 minutos, entalham o gelo até nivelar uma plataforma de 1 metro de largura e 1,5 metro de comprimento. Ancoram a barraca com dois pitons de rosca e duas picaretas de gelo. Às 20h15, estão todos lá dentro, sentados nas mochilas, com um fogareiro pendurado no teto para derreter neve na panela. Gerlinde faz sopa de tomate. A temperatura é de -25°C. O plano é descansar até a meia-noite e então prosseguir na luta pelo prêmio, agora tão próximo.

À 1 da madrugada, Vassiliy, Maxut e Gerlinde afivelam seus crampons e, à luz de lanternas de cabeça, começam a subir o íngreme aclive acima da barraca. Dariusz ainda está lá dentro, preparando-se. Gerlinde gira os braços em grandes círculos, mas não consegue sentir os dedos, o que lhe dificulta se desprender da corda. Os pés de Maxut parecem blocos de gelo. Eles decidem voltar à barraca para tentar se aquecer e esperar o nascer do sol. Gerlinde treme sem controle. É difícil acreditar que oito semanas antes estavam todos suando a 37ºC no vale do Shaksgam, com Max passando iogurte nas pernas tostadas de sol.

O grupo parte de novo por volta das 7 horas, ao nascer de outra manhã imaculada. É agora ou nunca. Na mochila, Gerlinde leva baterias e luvas extras, papel higiênico, óculos de sol adicionais, ataduras, colírio para cegueira pela neve, cortisona, uma seringa. Para honrar sua principal patrocinadora, tem uma bandeira com o nome de uma companhia petrolífera austríaca. E, para si, para agradecer a vitória, guarda uma minúscula caixa de cobre contendo uma figura de Buda, que ela pretende enterrar no cume. Dentro da roupa vai o meio litro de água que ela conseguiu derreter; se ficasse na mochila, congelaria.

Avançam por uma encosta na direção de uma rampa de neve de 130 metros cuja inclinação se acentua em curva até chegar à crista no topo. Eles ainda sofrem com o frio, mas, às 11 horas, dá para ver que em breve estarão sob o sol. Às 15 horas, chegam à base da rampa. Nos primeiros 20 metros, se animam ao descobrir que afundam apenas até as canelas. Mas logo a neve lhes alcança o peito. Se antes eles se revezavam a cada 50 metros para abrir a via, agora se revezam a cada 10 metros, com Maxut e Vassiliy fazendo turnos extras. O esforço, de novo, é tremendo.

Meu Deus, pensa Gerlinde, não é possível que, depois de subir até aqui, tenhamos de voltar.

Desesperados por um modo mais fácil, param de escalar em fila única em um certo local. Lá embaixo, Ralf se espanta ao ver a trajetória deles dividir-se em três: Gerlinde, Vassiliy e Maxut procuram caminhos melhores. À frente há uma faixa de rochas manchadas de neve que se inclina a 60 graus. Apesar de tão íngremes, elas se mostram mais fáceis de escalar. Subindo de novo em fila indiana, Gerlinde troca de lugar com Vassiliy e afunda só até os joelhos. Com uma infusão de energia e esperança, ela se iça para fora da rampa e pisa na crista, onde a neve compactada pelo vento é como uma calçada. São 16h35. Ela pode ver o cume arredondado.

“Dá para chegar!”, grita Ralf pelo rádio. “Dá para ir! Mas vocês estão atrasados! Cuidado!”

Ela toma um precioso gole d’água. Sua garganta está arranhando, e engolir é um ato doloroso. Está frio demais para suar, mas todos estão desidratando de tanto arfar no ar rarefeito.

Quando Vassiliy a alcança, diz a ela para prosseguir até o cume, pois ele vai esperar por Maxut. Como Gerlinde, ele e Maxut estão quase no cume da única montanha de 8 mil que não conquistaram. Ele quer chegar lá ao lado do parceiro, mas não quer que pensem que não foi capaz de chegar tão depressa quanto Gerlinde. “Você depois conta que fiquei esperando por Maxut”, pede ele. “Sim, é claro”, responde ela.

E então ela dá os passos que faltam para o cume do K2. São 18h18. Ela quer compartilhar esse momento com Ralf, mas, quando abre o rádio, não consegue falar. Há montanhas em todas as direções. Montanhas que ela escalou. Montanhas que roubaram a vida de amigos e que quase levaram a dela também. Mas nunca ela investiu tanto em uma montanha quanto naquela sob suas botas. Sozinha, com o mundo a seus pés, ela se vira de um ponto da bússola para outro.

“Foi uma das experiências mais fortes de minha vida”, disse ela depois. “Senti que o universo e eu éramos uma coisa só. Foi muito estranho estar extremamente exausta e ao mesmo tempo captar tanta energia daquela paisagem.”

Passados 15 minutos, Maxut e Vassiliy chegam, ombro a ombro. Todos se abraçam. Meia hora depois, Dariusz aparece, cambaleante, as mãos machucadas porque teve de tirar as luvas para trocar as baterias da filmadora. Passa um pouco das 7 da noite. Suas sombras alongadas se projetam no cume do K2, e a sombra piramidal da própria montanha se espicha por quilômetros a leste enquanto uma bela luz dourada começa a acobrear o mundo. Com Dariusz filmando, Gerlinde tenta explicar o que significa para ela aquele momento. “Eu me sinto muito realizada por estar aqui hoje, depois de tantas tentativas, de tantos anos, de tanto sacrifício.” Começa a chorar, mas logo se controla. “Foram muito, muito difíceis, todos esses dias, e agora, agora é sensacional. Não consigo achar as palavras certas.” Ela aponta para o mar de picos em todas as direções. “Vocês estão vendo tudo isso – acho que todos podem entender por que fazemos isso.”

Esteja conosco

Ralf passa boa parte da noite acompanhando a descida. Mais de um terço das fatalidades no K2 aconteceram na volta. Perto das 20h30, ele pode ver quatro pontinhos de luz na rampa adentrando o corredor dos Japoneses. Enquanto desce na escuridão, exausta, Gerlinde se pega repetindo uma frase que não lhe sai da mente: “Steh uns bei und beschütze uns”. Esteja conosco e proteja-nos.

“Falamos muitas vezes na descida”, diz Gerlinde. “Perguntávamos toda hora uns aos outros: ‘Está tudo bem?’ Foi uma escalada muito rigorosa, muito exigente. Só pelo frio já seria suficientemente difícil. Mas houve as escarpas, a altitude, o vento durante a noite e a manhã, e os efeitos psicológicos – não tínhamos corda para fixar a rota, e o terreno era muito íngreme e exposto. Todos precisaram ir bem devagar e se mover com o máximo cuidado.”

Dois dias depois, quando Gerlinde desce ao acampamento 1, Ralf vai encontrá-la no glaciar. Ficam abraçados por longo tempo. No acampamento 1 ela achou a carta que ele lhe deixara, esperando que ela voltasse – escrita em mais de 1 metro de papel higiênico, declarando seu amor e explicando sua decisão de voltar. “Não quero ser sempre a pessoa que a refreia…”

No acampamento-base, Gerlinde telefona via satélite ao pai de Fredrik, Jan Olaf Ericsson, que quer saber tudo o que ela viu do cume da montanha onde seu filho está enterrado. O presidente da Áustria liga para cumprimentá-la. O primeiroministro do Cazaquistão congratula Maxut e Vassiliy pelo Twitter. Na barraca-refeitório, Gerlinde adormece diante de um prato de melancia.

No aeroporto de Munique, a família inteira vem recebê-la. Seu pai chora quando a abraça, e pela primeira vez não diz que agora já chega de subir montanha. Ele entendeu.

Gerlinde, que não tinha sobras de gordura, perdeu 7 quilos. Em uma cerimônia em Bühl, na Alemanha, ela recebe uma avalanche de buquês e presentes, entre eles uma garrafa de vinho tinto do Reno cujo rótulo é uma foto dela no cume do K2, de braços para o alto. “É difícil me verem com os braços acima da cabeça”, diz ela. “Não é que me sentisse como uma rainha; é que eu queria abraçar o mundo inteiro.”

Seu amigo e companheiro de escaladas David Göttler vem de Bühl a Munique para ajudar a editar o vídeo da escalada, a ser usado nas conferências que ela irá proferir. Ele experimenta várias músicas para a crucial cena do cume, mas nenhuma funciona tão bem quanto Ára Bátur, da banda islandesa Sigur Rós. Ele faz o arranjo das fotos e da filmagem de modo que o coro de vozes angelicais e as cordas e os metais sinfônicos surjam bem no momento em que Gerlinde ergue os braços no cume. Mostra para Ralf, que vibra ao ver a eloquência com que o filme comunica a glória do triunfo de Gerlinde.

Mas, quando o mostram a Gerlinde, ela torce o nariz. Não lhe parece natural.“Não, Ralf, é demais. Sinto muito, David, eu acho demais.”

Eles protestam, mas não adianta. David, que tentou o K2 em 2009 com Gerlinde e a conhece bem, começa então a reformular a cena. As imagens são as mesmas. A música é a mesma. Mas o efeito é bem diferente. A série de fotografias que culminavam na imagem de Gerlinde de braços para o alto é alterada, e o crescendo na música não proclama a glória de uma montanhista naquela hora do pôr do sol no cume do K2, mas o mundo magnífico que ela finalmente observa a sua volta, transfigurado em luz dourada.

 
 
 

Esta reportagem é parte exclusiva da revista National Geographic Brasil de maio de 2012.

O texto se encontra aqui de forma integral mas, incentivamos você a comprar a revista pois essa matéria de capa trás imagens fantásticas da expedição, além de um belo infográfico dos acampamentos na montanha.
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