Sir Ranulph Fiennes e o desafio de cruzar a Antártica a pé no inverno
Fonte: Revista Época
18 de fevereiro de 2013 - 8:37
 
comentários    
 
 

A vida não está fácil para os exploradores e aventureiros. Todos os picos mais altos do planeta já foram escalados. Os desertos mais secos ou gelados foram cruzados. Os maiores rios foram percorridos a nado (a exceção é o Nilo, só porque os crocodilos não deixam). Até mesmo o Oceano Atlântico foi atravessado a nado (mas não o Pacífico). Na falta de outras façanhas, o maior explorador britânico vivo resolveu encarar a pior de todas, aquela que continua inédita porque é simplesmente considerada impossível: cruzar a Antártica a pé em pleno inverno.

Sir Ranulph Twisleton-Wykeham-Fiennes, de 68 anos, coleciona em seu extenso currículo uma coleção de feitos quase inimagináveis. No fim dos anos 1960, Fiennes (primo dos atores Ralph e Joseph Fiennes) trocou uma carreira como capitão das forças especiais do Exército britânico por uma vida de aventuras. A dura rotina militar de saltos de paraquedas, mergulhos com equipamento e corridas extenuantes não foi suficiente para saciá-lo. Em 1979, Fiennes e dois amigos iniciaram uma volta ao mundo a pé, cruzando os dois polos. Passaram três anos caminhando através do Ártico, das Américas, da Antártica e da África, até voltar à Europa, em 1982. Ninguém nunca repetiu a façanha.

Em 1992, Fiennes virou explorador e liderou uma expedição que achou, enterrada nas areias de Omã, as ruínas da cidade perdida de Ubar, conhecida apenas por citações no Corão e nos contos das Mil e uma noites. No ano seguinte, Fiennes e um amigo realizaram o feito inédito de cruzar a Antártica sozinhos e sem nenhuma forma de auxílio externo (diferentemente do que ocorreu na viagem de 1979 a 1982). A travessia, durante o verão, foi completada em 93 dias.

Em 1996, Fiennes resolveu caminhar sozinho até o Polo Sul. Teve de ser socorrido devido a uma pedra no rim. Em 2000, resolveu cruzar o Ártico sozinho, igualmente sem sucesso. Seu trenó escorregou para dentro de uma vala no gelo fino. Na tentativa de soltá-lo, seus dedos da mão esquerda ficaram congelados e tiveram de ser amputados. Em 2003, quatro meses depois de sofrer um ataque do coração e passar por duas cirurgias cardíacas, Fiennes decidiu correr sete maratonas em sete continentes, em sete dias corridos. “Em retrospectiva, não deveria ter feito aquilo. Não faria novamente”, disse. Após tantas travessias e travessuras, restavam as alturas. Em 2007, Fiennes escalou a montanha mais impiedosa dos Alpes, o Eiger, pela via mais difícil, a face norte. Em 2009, aos 65 anos, tornou-se o britânico mais velho a subir o Everest, o pico mais alto do planeta.

Quando todos pensavam que sua carreira de aventuras chegara ao fim, Fiennes anunciou a intenção de cruzar a Antártica no inverno. Ele e os cinco integrantes de sua equipe foram, com 100 toneladas de equipamentos, para a base Novolazarevskaya, da Rússia, na Terra da Rainha Maud, Antártica Oriental. Gastarão o próximo mês se aclimatando e se preparando para, em 21 de março, quando começa o outono, partir para a travessia do continente.

Fiennes planeja completar o trajeto de mais de 3.800 quilômetros em seis meses, com direito a uma parada no Polo Sul. Isso se nenhum acidente acontecer pelo caminho. As chances de algo sair errado são enormes. Para começar, a maior parte do trajeto será coberta à noite, em meio à escuridão do inverno antártico, quando o sol se põe por mais de quatro meses.

O que leva alguém a enfrentar 180 dias de frio extremo no ambiente mais inóspito do planeta?

Nessas condições, a equipe adentrará a região mais gelada do planeta nos meses em que faz mais frio. A temperatura média no centro da Antártica durante o inverno é de 48 graus negativos. A equipe se prepara para enfrentar até 90 graus negativos. É mais frio que a temperatura mais baixa já registrada: 89,3 graus negativos, em 21 de julho de 1983, na base russa Vostok, no centro da Antártica.

Para ter uma ideia do que significa enfrentar tanto frio, basta saber que, ao inspirar ar resfriado a 60 graus negativos, os alvéolos pulmonares congelam em instantes. A pessoa desmaia e morre em quatro minutos. O primeiro desafio da Viagem mais Fria (The Coldest Journey, na tradução do inglês), o nome oficial da aventura, é garantir que os homens sobrevivam expostos à fúria dos elementos.

A vestimenta é vital. Lembra roupa de astronauta. Consiste em quatro camadas de roupa sobrepostas e inclui um sistema de aquecimento elétrico para as mãos e os pés, além de rádio e aparelho de localização (GPS). Na cabeça, além de um gorro e dois capuzes, os homens envergarão um capacete com isolamento térmico, equipado com rádio, fones de ouvido e óculos infravermelhos de visão noturna. Diante da boca e do nariz, além de um microfone, haverá um inalador para aquecer o ar exterior antes de ele ser inalado.

Os seis homens serão divididos em dois comboios, cada um formado por um trator de neve que rebocará uma cabana dormitório e vários trenós com mantimentos e 100.000 litros de combustível especial não congelante (além de 250 rolos de papel higiênico). Na frente de cada comboio seguirão dois esquiadores (um deles será Fiennes), equipados com holofotes e um radar para investigar a profundidade e a consistência do gelo.

Um dos maiores perigos nas travessias antárticas são as regiões onde o gelo acumulado esconde fendas de até 300 metros de profundidade. Sem o radar para localizá-las, fendas ocultas poderiam engolir os tratores. Segundo o vice-líder da expedição, Anton Bowring, “será extraordinário se nada de mau ocorrer no trajeto de 3.800 quilômetros no gelo, com buracos capazes de engolir um trator de 25 toneladas num piscar de olhos”.

Fiennes espera viajar 35 quilômetros por dia, entre as 8h30 da manhã e as 4h30 da tarde. O resto do tempo será empregado na montagem e desmontagem do acampamento, no interior das cabanas, na rotina diária que inclui o preparo das refeições, o asseio pessoal, a execução de experimentos científicos e oito merecidas horas de sono. As cabanas contam com isolamento térmico, aquecimento, gerador de energia e telefone via satélite. A divisão interna inclui dormitório, cozinha, banheiro, laboratório e depósito. Tudo foi pensado de modo a garantir aos homens uma autossuficiência absoluta por 180 dias.

O recorde de frio no planeta Terra foi registrado na Antártica em 1983: 89,3 graus negativos

A equipe espera atingir a Base McMurdo (dos Estados Unidos), do outro lado do continente, em 21 de setembro, quando começar a primavera. Isso se nada interromper o percurso. Na Antártica, só há voos no verão. Entre abril e setembro nenhum piloto se arrisca a decolar, pois as condições meteorológicas impedem qualquer pouso. Isso quer dizer que, caso surja algum imprevisto, se algum dos tratores quebrar, se alguém adoecer ou, pior, morrer, a equipe será obrigada a suspender a travessia e a aguardar o fim do inverno para ser resgatada. “Não sabemos se as esteiras dos tratores quebrarão nem se nossos pulmões arrebentarão”, disse Fiennes à BBC antes de partir. “Se tivermos problemas, não haverá nenhum serviço de resgate num raio de 10.000 quilômetros. Estaremos abandonados a nossa própria sorte.”

A expedição custará 6 milhões de libras esterlinas, ou quase R$ 20 milhões, bancados pela iniciativa privada. Qual o sentido de uma aventura como esta? O que se ganha com isso? Fiennes diz que as condições são tão extremas, que o mero monitoramento do organismo dos participantes pode render preciosos dados para a medicina. Mas Estados Unidos e Rússia têm há 60 anos bases no meio da Antártica que abrigam pesquisadores o ano inteiro. O que Fiennes e sua equipe poderiam descobrir de novo?

A justificativa para um empreendimento tão arriscado é uma só: ninguém nunca fez isso. Os britânicos precisam de novos heróis nacionais. Ídolo de Fiennes, o capitão Robert Falcon Scott morreu em 1912 ao tentar conquistar o Polo Sul. Foi derrotado pelo norueguês Roald Amundsen. Em 1958, Sir Edmund Hillary, que já escalara o Everest cinco anos antes, tornou-se o primeiro a cruzar a Antártica no verão. Em 2010, uma equipe norueguesa conseguiu pela primeira vez cruzar o Ártico no inverno. Agora a mesma equipe ventila a possibilidade de enviar uma expedição para fazer o mesmo na Antártica. O britânico Fiennes tomou a dianteira. “Os noruegueses acham que as regiões polares são deles e que nem britânicos nem franceses deveriam se intrometer lá”, afirma. A vaidade é um sentimento poderoso.

A rivalidade, também.