A vingança de Siachen
Texto: Vitor Gomes Pinto - Fonte: Bem Paraná
11 de abril de 2012 - 23:20
 
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GLACIAR SIACHEN - A 23 milímetros ZSU-23-2 arma anti-aérea na geleira Siachen. Unidade é desconhecida.
 
 

A primavera é tempo de preparativos para quem quiser escalar o K2 ou o Everest quando o verão chegar, mas nos vales da Caxemira a temperatura é amena, mantendo-se em volta dos 13 graus mesmo à noite na paradisíaca Srinagar no lado indiano e em Gilgit, a capital da região norte sob domínio paquistanês. Enquanto isso, em Siachen, na fronteira entre os dois países em plena cordilheira de Karakoram, a neve parece que nunca vai deixar de cair fazendo os termômetros baixarem até os 30º negativos sob ventos que podem atingir os 160 km por hora. Siachen, o mais elevado campo de batalha do mundo, é o segundo mais extenso glaciar (geleira) da terra fora das calotas polares, com 70 quilômetros de extensão e picos que alcançam os 6.300 metros (o primeiro é Fedchenko no Tajiquistão e o 3º é Biafo, também na Karakoram, o que faz a região ser conhecida como “3º Pólo”).
No último sábado, a madrugada parecia ser tão gelada e sem problemas quanto qualquer outra na base de Gayari a 4.600 metros de altitude. Faltavam quinze minutos para as seis da manhã e quase todos ainda dormiam quando um ruído ensurdecedor, cada vez mais próximo, não deu tempo sequer para o alerta dos vigias. Foi só um breve momento e os 124 soldados e 11 civis lotados no posto de controle paquistanês foram atingidos por uma gigantesca avalanche que os cobriu com 24 metros de neve. Passados três dias de intensas buscas com maquinário especial, ajuda de especialistas norte-americanos e cães farejadores, nem sequer um corpo foi encontrado. O Comandante-em-Chefe do exército paquistanês, general Ashaf Pevez Kayani, declarou que a área era considerada segura.
A surpresa não se justifica. As atrozes condições climáticas do local foram reconhecidas nos tratados firmados entre os dois países nos Acordos de fronteiras de 1949 e 1972, declarando que Siachen não era adequado à sobrevivência humana. Ninguém o habitou até 1994, ocasião em que o governo da Índia – com Narasimha Rao do Partido do Congresso Nacional como 1º Ministro – resolveu tomar posse da geleira, provocando a reação do governo militar do Paquistão que de imediato enviou suas forças para lá. Beneficiada por ter tomado a iniciativa, a Índia ocupou os picos e as duas passagens mais elevadas, de Sai La e Bilford La, mas teve de ceder ao inimigo a terceira e última passagem, mais abaixo, de Gyong La que dá acesso ao vale e ao caminho para a montanha K2.
Depois de lutas intensas as posições se consolidaram e assim estão até hoje. Os 2.500 militares paquistaneses não podem subir, mas em compensação construíram estradas de acesso diminuindo seus custos de manutenção. Os 5.000 soldados indianos não podem descer e são forçados a abastecer-se por meio de helicópteros, com o resultado de uma despesa anual de 300 milhões de dólares, mais do dobro do que é gasto pelo governo de Islamabad.
Dezoito anos de estado de guerra, apesar do cessar-fogo vigente desde 2003, não fizeram mais do que 150 vítimas de cada lado, mesmo porque na maior parte do tempo o clima impede qualquer movimentação externa, mantendo os homens em suas casamatas. Os confrontos nos últimos anos têm se resumido a pequenas escaramuças. Já as ulcerações causadas pelo frio, as quedas nas gretas que repentinamente se abrem, as avalanches e as tempestades de neve fazem em média uma vítima fatal a cada três dias.
Nova Delhi diz não poder retirar as tropas enquanto Islamabad não reconhecer seu domínio sobre as posições-chave que ocupa. Por seu turno, o Paquistão reclama que a presença indiana ameaça a estrada de ligação com a China a 180 quilômetros dali, na cordilheira de Karakoram. O impasse continua. Na Caxemira, alguns líderes advogam a autonomia ou a independência com a constituição de um estado nacional unificado, hipótese que sofre resistências nacionais e dos próprios habitantes, radicalmente divididos pela religião: o hinduísmo com seus milhões de deuses de um lado e o islamismo monoteísta de outro.
O glaciar é estrategicamente fundamental, mas nada produz à exceção das águas que fluem de suas neves eternas alimentando os rios Nubra e Shyok que deságuam no poderoso rio Indo. A ocupação militar tem causado degradação ambiental e diminuído o fluxo de água, ameaçando a estabilidade das suas bacias hidrográficas. Siachen está cercado pelos territórios chineses de Shaksam e Aksai junto ao Tibete, pela Azad Caxemira e terras do norte pertencentes ao Paquistão e pela Jammu Caxemira que é indiana. Pouco mais ao norte está o Afeganistão, o que tem feito da área um permanente núcleo de preparação e atividade das milícias talebans. As 135 vítimas do patamar de Gayari representam apenas mais uma vingança do Siachen, perpetrada contra duas potências nucleares que teimam em violá-lo.

Vitor Gomes Pinto
Escritor e Analista internacional