Transmantiqueira: Montanhismo como Profissão de Fé
Texto: Pablo Bucciarelli
17 de dezembro de 2013 - 7:56
 
 
 
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Foram horas de p�nico em meio � travessia Marins-Itaguar� debaixo de um temporal, testando o limite emocional da dupla. Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    A trilha realizada por Pedro Alex e Pablo Pucciarelli, a Transmantiqueira." Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Preparando os mapas para a travessia" Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Oração antes do início da caminhada" Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Saindo rumo à crista da serra em Monte Verde" Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Pedra Partida em Monte Verde" Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Amanhece depois de uma noite em vigília " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Descanso para os pés " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Pedra do Baú no horizonte. Reparem no detalhe do homem montado no cavalo e usando o celular. Tempos modernos!" Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Parada para descanso de 2 horas em Sapucaí Mirim " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Ritmo forte nas estradas, apesar do calor " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Água quase sempre disponível durante a rota " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Ascensão à Pedra do Baú no final da tarde " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Pôr do Sol na Pedra do Baú " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Primeiro bivaque, depois de 28 horas de trekking, 1 refeição e 2 horas de descanso " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Descansópolis. Será que estava na rota? " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Paradas rápidas de 10 minutos para limpar e relaxar os pés " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Segunda refeição numa casa de vila, após quase 48 horas de trekking saindo do Parque Estadual de Campos do Jordão " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Na Fazenda da Onça, pessoal do Exército acolheu os aventureiros para algumas horas de sono " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Pico do Carrasco bem sinistro " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Cavalos selvagens na rota " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    A chuva chega forte nas proximidades da Base Marins " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Tentando secar um pouco as roupas " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Mais uma refeição boa e a alegria tomando conta " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Marcas da chuva de granizo na subida aos Marins " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Silhueta do maciço dos Marins " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    A Lua esteve presente durante toda a rota trazendo boas energias " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Pedro Alex e as Agulhas Negras, imponente, bela e formosa! " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Os pés não suportavam calçados e de crocs escorregava demais " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Serra Fina sem chuva, mas totalmente molhada " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    As belezas da Mantiqueira coloriram o caminho da dupla " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Registro histórico na passagem pelo ponto mais alto da Mantiqueira " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Sapo-flamenguinho (Melanophryniscus moreirae) é sinal de equilíbrio na Mantiqueira " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    O alimento fortaleceu os aventureiros durante a travessia " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Passar pelo Vale do Ruah deixa suas marcas, graças ao Capim Elefante " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Pico dos 3 Estados, ponto de encontro entre Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Os pés foram massacrados durante a travessia " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Sentindo as boas vibrações de amigos, familiares e seguidores durante a travessia " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Serra Fina vista de Itatiaia " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Seguindo rumo ao Parque Nacional de Itatiaia, com sol e revigorados depois de algumas horas de sono " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    No Posto do Marcão prontos para cruzar o PNI " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Surpresa, chuva de granizo " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Rumo ao Vale do Maromba, com Serra Negra ao fundo " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Nascer do Sol na Serra Negra " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Encontro com o Rio Aiuruoca, finalmente " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Fragária, um ponto de descanso especial " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Escola em Fragária foi um porto seguro, cheio de alegria e emoção " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Ao fundo o último destino, Serra do Papagaio " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    A última e derradeira refeição, a mais completa " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Na Serra do Papagaio, cruzando a Estrada Trans-Daime " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Adeus à Serra do Papagaio " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Chorando, sorrindo, cantando, sempre agradecendo pela dádiva da vida " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Mais magros, cheios de dores e machucados... mas sorrindo, felizes! " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    A melhora maneira de comemorar, cervejaaaaaaaaa! " Foto: Pablo Bucciarelli
  • Foto: Pablo Bucciarelli
    Depois de 8 dias a pé, uma carona até a pousada... de Cross Fusca... " Foto: Pablo Bucciarelli
1 55

Foram horas de p�nico em meio � travessia Marins-Itaguar� debaixo de um temporal, testando o limite emocional da dupla. Foto: Pablo Bucciarelli

424km 8 dias e 3h15 16.738m 31h
DISTÂNCIA PERCORRIDA TEMPO DE TRAVESSIA TOTAL DE DESNÍVEL TEMPO EM REPOUSO
 

Andar, andar, andar... até o sono chegar... Andar, andar, andar... até o coração parar...

A fé na realização de um sonho nos leva além dos limites. Nosso corpo resiste até quando já não pode mais, daí vem o coração pedindo por um pouco de paciência, porque a cabeça não pensa em outra coisa se não terminar, chegar ao destino, abraçar o companheiro e agradecer pela jornada de intensa vivência... Daí, o coração já não consegue mais controlar o fluxo sanguíneo, e vem o espírito, suplicando por mais força, mais coragem, mais um pouco, além do que o corpo e o coração podem dar! Sentir a natureza penetrar no seu espírito, sentir a emanação de energia da terra dentro de suas veias, sentir o fluido dos rios nas suas têmporas, talvez seja isso... talvez seja uma simbiose entre a Terra e o Homem que torna tais efeitos possíveis. Quando faltou matéria prima do Homem, foi a Terra que sorveu a função de carregar mais balas no cartucho e disparar para o centro do alvo. Distrair o espírito das coisas mundanas, levá-lo ao desconhecido, colocá-lo diante do desafio, fazê-lo debruçar-se na missão, induzi-lo ao acerto, orar para suportar, orar em agradecimento, orar para saborear o que a experiência da travessia tinha de bom para nos oferecer, lembrando que as dores do sofrimento carnal nada mais eram que fruto da grosseria humana, e que isso cairia no esquecimento num futuro breve. Fé para mover montanhas, que na verdade, passaram sob nossos pés com a humildade nata de andarilhos curvados à benevolência da mãe natureza e do Criador. Passamos por cada pedaço de terra com suaves toques de nossos pés, surrados, encardidos e duros. De leve, só existia nosso espírito, sutil à carne. O restante era pura brutalidade que se fazia presente para afastar os pensamentos inferiores que rondavam nossa fraqueza humana. Fomos e somos gente comum, simples e cheia de deficiência! A diferença entre o comum e o sobrenatural está na forma de lidar com o hostil. Quem se fazia hostil, percebia que ali estavam dois corajosos guerrilheiros do bem, carregados de pura vontade e desejo de realizar o inesperado. A hostilidade se deu mal. Noites frias, chuva forte, granizo, barro, mais de 16 mil metros de ascensão positiva, sono, fome, sede, conflitos, erros de navegação, limitações de recursos diversos... todos eles vinham e voltavam e tentavam aniquilar com o sonho. Ah meu Deus! Deus de grande bondade e sabedoria, Tu foste a única testemunha de que lutamos como moribundos despidos da alma. Nossa comunhão foi maior do que as adversidades, mesmo àquelas que conhecíamos. Mas o desconhecido nos surpreendeu e tirou um pouco da nossa esperança. Lutamos bravos, com sede de vitória. Respeitamos cada um daqueles que se apresentaram. Aceitamos a imperfeição, talvez porque somos assim, tão imperfeitos quanto os nossos sonhos. Sonhos se tornam realidade. A realidade é imperfeita. Reflexão!

Sonhar, planejar, materializar, viajar, atravessar – sim, atravessar – chegar ao destino. Desejo de voltar! Retornar, refletir e escrever. Sonhar, sonhar, sonhar... nunca deixar de sonhar! Sonhar para realizar, não faz sentido sonhar puramente!

Sou mensageiro, realizo sonhos! Sou instrumento da felicidade alheia, e nisso me realizo. Nessa travessia realizei meu sonho, e tive um parceiro à altura. Conseguimos unir virtudes e antagonismos, e empiricamente tivemos que aprender ou reaprender a viver! Vida, viver, vivência, vivacidade, viável, viva! Viva! Uma dupla não trabalha separadamente, está em plena sintonia, mesmo em conflito, como o organismo que sobrevive, mesmo com uma dor, um vírus, um edema ou uma doença, tem que se recompor e às vezes para isso, necessita recorrer à intervenção externa. Medicamentos, soubemos administrar para assegurar o sucesso da empreitada. Conflito, mau humor, decepção, soberba, pressa, atraso, desconhecimento, fatalismo, tristeza, angústia, medo, melancolia, parece um martírio, autoflagelo, uma expiação ao invés de um sonho se realizando.


Sonhos tem seu preço, porque a escolha da realização exige coragem. Pedimos inspiração e coragem, cantando, pois nem sempre esteve abundante n’alma:

“Vamos deixar de fraqueza
Abandonemos esta pobreza
Para seguir o bom caminho
É preciso ter firmeza


A minha Mãe que me ensinou
E mandou eu seguir
Para eu não temer a nada
Para adiante eu ser feliz


Peço um conforto ao Pai Eterno
Para seguir como Deus quer
Para eu seguir nesta linha
Da Rainha da Floresta”
Hinário “O Mensageiro” de Maria Damião


A transformação veio à medida que a travessia chegava ao seu fim. O coração ficou mais feliz, a carne um pouco mais surrada, o espírito um pouco mais leve, a alma lavada, a confiança maior, a esperança na vida dobrou de tamanho, a fé fortalecida, a certeza de que estamos no caminho certo se consolidou. O agradecimento pleno se manifesta por todos os corações unidos em prol dessa realização pessoal. No entanto, como sempre afirmamos desde o princípio, mais do que um feito esportivo, foi uma profissão de fé numa busca interior comovente, que nos fez chegar ao núcleo de questões íntimas e a reflexão apenas começa aqui. O montanhismo é a nossa religião!


Recordamos na literatura passagens que nos alimentaram a alma, ainda buscando essa intervenção externa nos momentos de crise:

“O correr da vida embrulha tudo, 
a vida é assim: esquenta e esfria, 
aperta e daí afrouxa, 
sossega e depois desinquieta. 
O que ela quer da gente é coragem. 
O que Deus quer é ver a gente 
aprendendo a ser capaz 
de ficar alegre a mais, 
no meio da alegria, 
e inda mais alegre 
ainda no meio da tristeza! 
A vida inventa! 
A gente principia as coisas, 
no não saber por que, 
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos, 
por todos remexida e temperada. 
O mais importante e bonito, do mundo, é isto: 
que as pessoas não estão sempre iguais, 
ainda não foram terminadas, 
mas que elas vão sempre mudando. 
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas. 
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor."


A gente quer passar um rio a nado, e passa: 
mas vai dar na outra banda é um ponto muito mais em baixo, 
bem diverso do em que primeiro se pensou. 
Viver nem não é muito perigoso? 
Dói sempre na gente, alguma vez,
todo amor achável, 
que algum dia se desprezou...
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, 
um descanso na loucura.”
Fragmento de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa


A vida real, como se fez na travessia, continua nos dias seguintes para que possamos reescrever nossa história ainda mais rica de espírito e, sobretudo compartilhar nossa alegria com aqueles que fazem parte disso tudo, de nossa jornada.

Quanta Mantiqueira!
Agradecimento infinito!
Aho!

Alguns números
Travessia mais longa do Brasil já realizada em montanhas, em estilo Alpino, totalmente a pé, sem carona, sem apoio externo, sem equipamentos para camping, pouca comida, leve... sem paradas programadas, parada para descanso ou sono apenas quando o corpo caia sem forças e consciência. Foram 8 dias, 3 horas e 15 minutos ao todo, navegando em cartas topográficas do IBGE (12 mapas) e bússola. O GPS foi usado apenas para registrar os pontos de passagem da travessia. Saída oficial no dia 13 de novembro as 18:30 da Vila de Monte Verde e chegada em 21 de novembro as 21:45 na cidade de Aiuruoca.

Foram 424 quilômetros de travessia a pé superados em 195,25 horas sobre a Serra da Mantiqueira, passando por mais de 20 municípios, dormindo 31 horas ao todo, carregando menos de 8 quilos de bagagem na mochila de ataque, escalando 16.738 metros de ascensão positiva e cobrindo mais de 20 cumes acima de 2.000 msnm, dentre eles: Pico do Selado (2.080 msnm), Pedra do Baú (1.950 msnm), Pico dos Marins (2.420 msnm), Pico do Marinzinho (2.432 msnm), Pico do Itaguaré (2.308 msnm), Alto Capim Amarelo (2.352 msnm), Pedra da Mina (2.798 msnm), Pico dos Três Estados (2.665 msnm), Pico das Agulhas Negras (2.791 msnm), Pedra do Altar (2.665 msnm), dentre outros.


Resumo do tempo de duração:

- Trekking: 143,25 horas
- Sono: 31 horas
- Descanso (tempo parado): 16 horas
- Dark Zone (Acesso PNI): 5 horas.




Infos
• Confira os detalhes da travessia no wikloc.
• Veja como foi a Cobertura Online da Transmantiqueira.