Um - quase - pacto com o Diabo
da redação, texto: Ant�nio Calvo
23 de novembro de 2012 - 8:30
 
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  • Foto: Arquivo de Antonio Calvo
    Navegando no rio Touros Foto: Arquivo de Antonio Calvo
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    Reuni�o para decidirmos qual o melhor caminho a tomar" Foto: Arquivo de Antonio Calvo
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    A cheia dos �ltimos dias ajudou a aumentar o n�vel da calha do rio" Foto: Arquivo de Antonio Calvo
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    Nas corredeiras do Touros" Foto: Arquivo de Antonio Calvo
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    Desviando das muitas rochas pelo caminho " Foto: Arquivo de Antonio Calvo
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    Descendo nossas canoas canadenses de rapel " Foto: Arquivo de Antonio Calvo
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    Cachoeira do Funil " Foto: Arquivo de Antonio Calvo
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    Preparando para o rapel " Foto: Arquivo de Antonio Calvo
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    A id�ia parecia maluca, mas funcionou perfeitamente. " Foto: Arquivo de Antonio Calvo
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Navegando no rio Touros Foto: Arquivo de Antonio Calvo

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Esta é a história dos madeireiros Gatineau de Québec, Canada, que fizeram um pacto com o Diabo enquanto trabalhavam nas florestas a fim de roubar uma canoa para que pudessem visitar suas mulheres durante a virada do ano. Eles são avisados, no entanto, para não blasfemar durante a viagem, não tocar nas cruzes das igrejas e que deveriam voltar antes das seis horas da manhã seguinte, caso contrário perderiam suas almas. Os homens prometem não beber mais uma gota de álcool, tomam seus lugares e a canoa, então, levanta do chão. Ninguém nota a chegada dos madeireiros que logo estão celebrando alegremente, mas antes que seja tarde eles precisam voltar ao acampamento. Torna-se evidente que o navegador havia bebido, pois ele conduz a canoa num curso perigosamente instável e a canoa acaba presa em um monte de neve profunda. Neste ponto, o navegador bêbado começa a falar palavrões e tomar o nome do Senhor em vão. Apavorados que o Diabo poderia levar suas almas os madeireiros amordaçam seu amigo e elegem outro para conduzir a embarcação, mas o bêbado rompe suas amarras e começa a maldizer novamente. Na confusão a tripulação conduz a canoa enfeitiçada direto para uma árvore. Todos são arremessados ao chão e ficam inconscientes. A lenda continua e conta que as vezes os madeireiros são condenados a voar na canoa através do inferno ou que aparecem no céu a cada véspera de Ano Novo.

Graças a Deus eu nunca precisei fazer um pacto com o Diabo durante qualquer expedição de canoagem e, muito menos, amarrar e amordaçar um companheiro de viagem. Ufa! Mas já cheguei perto... houve uma situação no rio dos Touros onde as margens de pedra se fecharam num belo e perigoso cânion, cuja geografia esculpira uma cachoeira de uns 8 metros de altura com o sugestivo nome de Funil para só então as águas despencarem na piscina natural onde tudo se acalmava novamente. Não havia maneira de continuar remando. Era preciso carregar todo o equipamento, três canoas canadenses com aproximadamente 5 metros de comprimento e quase 30 quilos cada, alimento para 10 dias de exploração, barracas para 6 participantes e tudo o mais necessário pelas margens através da mata ciliar, contornar a cachoeira e voltar ao rio ou encontrar outra maneira de passar por ali com menos esforço possível ou mesmo, quem sabe, apelar ao Diabo para enfeitiçar as nossas canoas.

Tudo começou quando escutamos a história de um grupo de canoistas que tentara descer o rio Pelotas e foi obrigado a abortar a missão logo no segundo dia. O rio Pelotas é a divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Ele é o elo de ligação, o corredor ecológico, entre as serras gaúchas ao leste e os pampas a oeste. Possui uma formação magnífica em forma de um longo e escavado cânion e, por isso, ainda tem as suas margens preservadas. Chegamos na região em março de 2011, mas as chuvas elevaram o nível do Pelotas de tal maneira que também abortamos a nossa missão. Na volta para casa, ao cruzar uma pequena ponte sobre o rio dos Touros, nos entusiasmamos com a possibilidade de descê-lo para não “perdermos a viagem”. O rio dos Touros é um afluente gaúcho do Pelotas, porém não goza de mesma magnitude. Sua calha é relativamente rasa e estreita e esconde uma variação altimétrica - um desnível em m/km - impressionante, claro, suas nascentes estão nas partes altas da serra e sua foz lá em baixo no encontro com o Pelotas ao lado do histórico passo de Santa Vitória. Em outras palavras, ele é um rio que desaba pelas entranhas do cânion formado pelo majestoso Pelotas.

Essa mesma cheia do mês elevou o nível do Touros apenas o suficiente para o baixo calado das canoas passarem por cima da maioria das pedras no fundo do rio. Mas a medida que avançávamos no Touros o desnível aumentava e junto todos os tipos de dificuldades: quedas d'água de tamanhos diversos eram um dos nossos maiores obstáculos, algumas passíveis de manobras com nossas queridas embarcações, outras dignas de um trato com o Diabo; pedras do tamanhos de carros - não dos populares, mas desses 4x4 vendidos em todo o mundo; corredeiras, refluxos, estreitamento das margens e, claro, não posso deixar de mencionar o frio das águas gaúchas!

Mas era preciso domar o touro e conforme os dias iam passando os tripulantes ganhavam mais confiança e aprimoravam suas técnicas. O rio não dava sossego e o tempo que havíamos planejado para voltar à civilização escorria por entre as inúmeras paradas de observação e planejamento que fazíamos antes de remar qualquer corredeira, pois tínhamos uma máxima: segurança em primeiro lugar!

E aí apareceu o Funil, aquele lugar maluco com uma aura indomável com que nos deparamos apenas quando adentramos profundamente na natureza mais intocável. O rio já vinha estreitando metros acima, suas margens, sutilmente, espremendo as águas por onde remávamos até formar um funil no cânion. Fácil de entender o nome da cachoeira, não?

Demoramos pelo menos uns 30 minutos na conversa sobre o que fazer. Já passava do almoço, o dia esvaecia. Eu votei por caminharmos pela margem, rasgar o mato e contornar até o passo de Santa Vitória no rio Pelotas, uma vez que estávamos a poucos quilômetros de distância dali. Mas apareceu um comentário maluco sobre rapelar - descer por corda - todo aquele equipamento, inclusive as canoas, pela encosta vertical da cachoeira. O rapel é uma técnica de montanhismo que consiste em descer por corda até o ponto desejado, coisa fácil de visualizar, por exemplo, se pensarmos nos bombeiros descendo a lateral de um prédio. Notei uma pequena mudança no tempo, é comum ficarmos de olho no clima quando estamos em expedições ao ar livre, algumas nuvens já cobriam o céu. Especulamos quanto tempo demoraríamos para rapelarmos todo o equipamento e se era possível terminar antes de escurecer e, antes mesmo, da chuva chegar. Não queríamos uma tromba d’água no exato momento que estávamos no lugar mais estreito do rio, na boca do Funil. Mas era preciso entrar num consenso e, por isso, aceitei esse idéia maluca.

Tínhamos um kit de resgate para corredeiras com uma corda estática de 25 metros, algumas fitas de escalada para ancoragens, mosquetões e cabos de resgate aquático. Nos dividimos, uns desceram a margem oposta até o poço da cachoeira para receber as canoas enquanto os outros, eu inclusive, montavam todo o sistema de segurança do rapel. Organizamos a ancoragem com a corda numa árvore, isso nos deu espaço para trabalharmos na beira da parede vertical, clipamos um mosquetão e com um nó amarramos o cabo de resgate por onde desceríamos os equipamentos. Pronto, o sistema estava montado, agora era preciso testá-lo. Mas qual canoa seria a primeira? A cobaia? Os donos das embarcações se olharam e quando menos percebemos tudo já estava lá embaixo, uma canoa por vez seguida dos equipamentos que ela transportava. Os tripulantes, por segurança, desceram a pé pela margem. Foi tudo muito rápido e divertido!

Em mais uma hora de rio estávamos na foz do Touros com o Pelotas, ao lado do passo de Santa Vitória, comemorando a nossa - quase - chegada ao final da expedição porque ainda era necessário remar um tanto no imenso Pelotas até a ponte da BR116, nosso local de saída do rio. Estávamos felizes e exaustos após a primeira descida registrada no rio dos Touros em canoas canadenses - ou mesmo em qualquer outra embarcação?

Essa seria uma das mais belas expedições que fiz em terras tupiniquins. Por pouco não negociei com o Diabo e muito menos amordacei o companheiro de viagem que pensou na maluquice desse rapel. Bastou juntarmos todos os conhecimentos, nossas multi habilidades, trabalharmos como equipe, para vencermos esse desafio. Isso é o que faz a vida e o trabalho ao ar livre tão prazerosos. No ano seguinte resolvemos tentar novamente o Pelotas, mas essa é história para um outro dia.

 

 

 
 
Antônio Calvo
www.armazemaventura.com.br