Extremos
 
COLUNISTA JOÃO CASTRO
 
Pensamentos em meio a lesão
 
texto: João Castro
14 de setembro de 2017 - 10:00
 

João Castro
 
  João Castro  

Já com 5 décadas vividas, passando por diferentes modalidades esportivas, variando apenas entre momentos de competição ou experiência, acredito ter sido esta a primeira vez em minha vida que o meu corpo pediu férias de maneira impositiva. Bem-vindo “rompimento do ligamento no ombro”. Sim, porque não ver isso de maneira positiva?

Já tive algumas lesões, talvez a mais grave tenha sido no joelho durante um treino de Jiu Jitsu, lesão que se repetiu mais tarde surfando, mas não me lembro de nada que tenha deixado o meu corpo tão parado e a minha cabeça à mil.

Você parar por que se lesionou em plena atividade é uma coisa, mas lesionar-se de um dia para o outro, sem sentir absolutamente nada, é no mínimo curioso.

Justificativa: Culpa de tanto esporte e movimentos repetitivos aplicados durante a vida. Canoagem, surf, fizeram isso.

Posso dizer que eu ainda estava esquentando, ainda meio lá e meio cá, para mais um desafio programado, e foi aí que veio a má notícia.

Atravessar remando os 360 Km que separam Fernando de Noronha do continente, mais precisamente chegando em Natal RN, não será NADA fácil. Não me refiro apenas à travessia em si, mas tão duro quanto será a dedicação que precisarei ter de uma maneira geral. Treinos físicos, alimentação, fisioterapia, abstinência de coisas importantes como família, amigos, relacionamentos e etc. Além disso, preciso encontrar uma maneira de não ser “sabotado” pelo trabalho, quase sempre a melhor desculpa que temos para justificar algumas ou muitas falhas durante a preparação, principalmente quando você ama e orgulha-se do que faz. Bom.... É aí que entra esta lesão da qual me recupero hoje.

A radiografia da lesão. Projeto N2: De Fernando de Noronha a Natal
 

Venho pensando que se ela não tivesse ocorrido eu não viveria ou me dedicaria com tanta profundidade a coisas que de fato serão muito importantes para o sucesso desta empreitada. Hoje lamento cada tempo desperdiçado, onde eu já poderia estar realmente mandando bala nos treinos. Estar parado fez com que o “meu tanque de combustível” ficasse cheio novamente, para eu voltar com tudo.

Hoje, parado, busco enriquecer a teoria. Ando me aprofundando no estudo das correntes, ventos, análises sobre tudo que pode dar certo e errado, independente da minha vontade. Fico construindo cada detalhe, desde o tipo de barco que deve ser usado no apoio, quem deveria estar nele, o possível resgate rápido, até estudo de tecnologias que auxiliariam na manutenção da falta de sono.

Muito além do projeto, da travessia e suas peculiaridades, ficar parado me fez pensar sobre o “João Castro”, sobre o tempo vivido e o tempo que ainda terei pela frente. Minha relação com a natureza e a vontade cada vez mais forte, involuntária, de viver com ela, nela e para sempre. Começo a atribuir tudo isso ao amadurecimento, palavra mais confortável do que envelhecimento. Como mudamos durante a vida! Como ficamos diferentes! Nos importamos cada vez menos com o que os outros pensam e cada vez mais com eles, com o planeta, animais, com coisas erradas e que no meu modo de ver estão nos levando para um final não tão bom. Me refiro à humanidade.

Tenho aproveitado para ler, admirar, aprender e entender a relação, entrega e aparentemente a satisfação no estilo de vida de alguns aventureiros. Não conheço a maioria deles, mas tem bastante tempo tenho seguido e admirado Gustavo Ziller, uma história que esbarra um pouco na minha.

Karina Oliani, uma amiga ou conhecida da época em que eu corria aventura. Karina sempre foi “viver o esporte”, desafios e a natureza. O sobrenome dela é aventura. Karina nunca ancorou em apenas uma modalidade.

Admiro a Ana Elisa Boscarioli, com quem convivi muito próximo, fui “da família” por uns 5 anos. Ana rala muito no trabalho, corre atrás, para poder patrocinar suas escaladas, viagens e “perrengues”. Foi assim que ela se tornou a 1ª mulher brasileira a escalar o Everest e a primeira a escalar os 7 cumes.

João Castro com Ana Elisa Boscarioli e amigos. João Castro.
 

Admiro Amyr Klink, os detalhes da sua história desde a infância e a sua verdadeira relação com o simples, a admiração pela canoa caiçara, mesmo habitando aventuras cheias de tecnologia.

Poderia aqui me perder citando dezenas de nomes, todos inspiradores, mas ao mesmo tempo o tipo de vida que escolheram reforça ainda mais a minha curiosidade: Quanto aguentaríamos viver sem tanta adrenalina, inspiração, admiração, privação, “solidão”, reinvenção a cada situação de risco que acontecem aos montes em cada aventura vivida?

Cada uma das minhas viagens ou projetos estão sempre apoiados na simplicidade, na autossuficiência, no dormir em qualquer canto, dentro de uma barraca, passar por privações, dificuldades, remar sob o sol escaldante que chega a incomodar, mas sentir saudade dele quando o corpo está molhado, o mar revolto e a chuva caindo forte durante com temperatura baixa. O que nos faz gostar disso.

Atravessar 360Km sem terra alguma no caminho, vai me trazer vontade de dormir, mas não dormirei. Vontade de comer aquela comida deliciosa, mas não comerei. Vontade de não sentir dor, mas sentirei. Dúvida sobre se eu sou realmente capaz, mas serei e talvez o pior de tudo na minha opinião e experiencia, que é passar horas, dias, negociando com cabeça e o seu lado sabotador, que fica o tempo todo sussurrando questionamentos com a finalidade de fazê-lo acreditar que tudo aquilo é uma perda de tempo, que o risco é enorme, que você tem pessoas que ama e pessoas que amam você e por aí vai. Sim, isso sempre é e será o mais difícil entre todas as dificuldades, mas quando o contorno do continente surge no horizonte, quando ele estiver na minha frente, vou sentir o maior “tesão” que podemos experimentar!

Muitos de vocês que estão lendo este texto sabem do que estou falando. Quando percebemos que vamos de verdade chegar, que vamos cumprir a meta, parte de nós desmorona, ficamos fragilizados e as lágrimas vem aos olhos. O corpo arrepiado, a vontade de ter um ombro para deitar a cabeça e receber o afago das mãos, nos transformam em crianças.


João Castro
 

É engraçado que nestes últimos quilômetros nos tornamos gigantes com uma força de origem desconhecida, fazendo com que nos aproximemos do objetivo parecendo que acabamos de começar. Para onde vai a dor neste momento? Para onde vai a exaustão que sentíamos durante horas, dias? Engraçado como ao mesmo tempo choramos e nos sentimos como se nem uma bala de canhão seria capaz de nos deter!?

Não vejo a hora de poder voltar e passar por tudo isso! Que venham os treinos, que venham as privações e que venha a torcida de todos, para que eu atinja o meu objetivo.

Neste momento o ombro segue sendo tratado. Já foi a cirurgia, período de imobilização, noites sem dormir. Agora já estamos na fisioterapia e se tudo der certo, final de setembro (2017) estarei de volta aos treinos.

Usar momentos de dificuldade, no meu caso a lesão que me fez ficar parado, para pensarmos, repensarmos e nos dedicarmos aos detalhes, é fazer bom uso da situação. Lamentar é para os fracos.

João Castro
Projeto N2: www.joaocastro.com.br
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