Extremos
 
151º dia da Expedição Transpatagônia - Valle Chacabuco
 
da redação, Texto e fotos: Guilherme Cavallari
28 de fevereiro de 2013 - 13:49
 
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  • Expedi��o Transpatag�nia
    Margaridas selvagens que teimam em nascer no meio da estrada, Ruta 35, Argentina Foto: Guilherme Cavallari
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    Meu tanque dormit�rio no pampa argentino, Ruta 41, pr�ximo ao Lago Ghio" Foto: Guilherme Cavallari
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    Eu passo e eles parecem pensar� Que raio de camelo estranho � esse que �s vezes passa por aqui� " Foto: Guilherme Cavallari
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    Meu transporte, casa e p�tria por esses cinco meses e por mais um m�s adiante� No pampa argentino " Foto: Guilherme Cavallari
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    Um dos vales profundos, cortados, que descem do norte at� o Valle Chacabuco. Por um desses eu desci caminhando em outubro " Foto: Guilherme Cavallari
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    Andarilha su��a, que caminha 30 km por dia, dorme debaixo do poncho, come farinha com a��car, caf�, �leo de soja e �gua todos os dias� E eu achando que dava duro� " Foto: Guilherme Cavallari
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    Lago Christie, Chile� Noite em cabana vazia� Nem todo acampamento � roubada nessa viagem " Foto: Guilherme Cavallari
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    Dormi debaixo do asfalto da Ruta 40 " Foto: Guilherme Cavallari
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    Don Vinicuis Avilez, ex�mio ca�ador de pumas e contador de hist�rias, churrasqueiro de cordeiro de primeira tamb�m " Foto: Guilherme Cavallari
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    Posto de Carabineros de Chile, no Paso Mayer, depois toda a plan�cie alagada em novembro e seca em fevereiro " Foto: Guilherme Cavallari
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    Amanhecer ilumina a entrada do Paso Roballos, para o Valle Chacabuco " Foto: Guilherme Cavallari
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    Deixei minha sombra na Patag�nia� " Foto: Guilherme Cavallari
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Margaridas selvagens que teimam em nascer no meio da estrada, Ruta 35, Argentina Foto: Guilherme Cavallari

 

Acho que ouvi um puma. Não vi, ouvi.

Foi no trecho entre a vilazinha de Bajo Caracoles, às margens da Ruta 40, na Argentina, e o Paso Roballos. Esse trajeto segue a Ruta 41, que leva ao Chile pelo Vale Chacabuco, tem 108 quilômetros, sendo 90 em terra em péssimo estado. Eu já havia pedalado 66 quilômetros debaixo de sol chicoteante e estava exausto. Não havia vento algum e eu não sabia a quem agradecer, se houvesse a menor brisa ela seria contra. Meu suor se juntava às camadas de bloqueador solar, que eu repassava a cada par de horas, e o pó que os pneus da bike levanta. Eram 18:00 e eu estava sentado na bike desde às 9:00. Vi um tanque metálico solitário em cima de uma colina, a 60 metros da estrada. A primeira e única construção do dia. Parei e fui averiguar se serviria como área de acampamento. Servia.

Era um tanque de armazenamento de água para vacas. Um círculo, de cinco metros de diâmetro, feito de chapas de metal ondulado, parafusadas e seladas com piche, sobre um piso de cimento rústico. Dois tufos de mato seco cresciam das rachaduras do piso. Um ralo escoava a água, quando houvesse alguma naquele deserto, para um bebedouro retangular, também de cimento, com uma boia de nível acoplada. Muito simples e engenhoso. Nunca tinha visto algo igual.

Pulei para dentro e montei meu acampamento para a noite. As paredes de 1,20 m de altura me dariam proteção contra o vento, caso ele resolvesse aparecer, e manteriam animais menores como gambá, ratos e raposas, longe de mim. Bichos maiores, como o puma e o guanaco, saltariam sem grandes dificuldades minha barricada improvisada.

Às 21:00, o sol se pôs de um lado, sobre as montanhas de picos rochosos quebrados como velhos castelos medievais, enquanto a lua cheia nascia do lado oposto, sobra a pampa. Um espetáculo. Da minha varanda galvanizada para o deserto, eu apreciava sozinho e isolado a paisagem. Pequenas manadas de guanacos desfilavam elegantemente pelos campos do pampa, curiosos, desconfiados e ariscos. Pássaros estranhos, de gritos histéricos, anunciavam o fim do mundo, não o fim do dia.

A essa altura eu já havia comido o Miojo Nosso de Cada Dia e estava pronto para desmaiar. Acho que caí no sono antes da minha cabeça encostar no travesseiro improvisado de roupas emboladas, nem todas limpas. Mas, às 2:00, acordei com muita luz ao meu redor. Tanta luz que consegui ver as horas sem ligar a lanterna ou a luz do mostrador do relógio. Era a lua cheia, lembrei. Parecia o amanhecer do dia. Achei estranho acordar assim, sem razão. Nem vontade de fazer xixi eu tinha. Não conseguia dormir mais. Meia hora depois senti um forte arrepio na nuca, só na nuca. Não estava frio. Achei estranho. Cinco minutos depois senti outro desses arrepios. Muito estranho. Cinco minutos mais e escutei… Um “fuuuuu” desses que os gatos fazem, só que alto demais, do outro lado da parede de metal do tanque, junto à minha bike. Os gauchos chamam esse ruído felino de susto. Muito apropriado. Gelei. Senti mais alguns arrepios na nuca.

Não tive coragem de sair da barraca. Não tive coragem de acender a lanterna. Não tive coragem de mexer um músculo. Meu cérebro raciocinou da seguinte forma… Se for um puma e ele pular para dentro do meu circo metálico, vou ouvir seu pouso ou seu corpo tocar as paredes do tanque. Se ele não pular, tudo bem, estou salvo. Se ele pular, não tenho para onde correr, mas também não tem porque me preocupar com isso até que aconteça… Não ouvi mais nada e eventualmente voltei a dormir.

Duas noites antes, na Ruta 40, ainda na Argentina, entre Las Horquetas e Bajo Caracoles, eu dormi debaixo do asfalto. Esse trecho, de 104 quilômetros, é totalmente desprovido de gente ou casas ou estâncias ou qualquer coisa além de infinitas cercas de arame. Nenhuma proteção contra o vento ou a chuva, que caia incessantemente. Eu já estava encharcado, mesmo vestindo Gore Tex até na cueca. Não ventava e eu não sentia frio e isso é o que importa. Só não podia parar, nem para comer ou fazer xixi. Pedalei o que aguentei e um quilômetro mais. Parei ao lado de um duto retangular de concreto, como um túnel, que corre por baixo da rodovia transversalmente. Isso serve para escoamento de água no degelo da neve do inverno. Esses dutos têm por comprimento a largura da estrada, largura de 1,40 e o mesmo tanto de altura. Cabe certinho uma barraca, eu já havia reparado em dias de sol, já prevendo essa possibilidade em tempos de chuva ou vento. Entrei com bike e tudo. Montei acampamento e dormi, receando ser acordado por algum animal notívago menor, fuçando por comida. Ninguém apareceu a noite toda. Amanheceu chovendo e eu acordei no seco. Perfeito.

Na noite anterior eu me acomodei na Estancia Los Faldeos, antes da ponte sobre o Rio Lista, na rodovia de terra completamente enlameada que liga o Paso Mayer à Ruta 40, na Argentina. Pedi permissão a um velho gaucho chamado Vinicuis Avilez, matador de pumas. Eu o convidei a um prato de Miojo e ele me convidou ao melhor churrasco de cordeiro que comi até agora. Jantamos juntos aquecidos pelo fogão a lenha de sua cozinha sem luz elétrica. Todo o tempo ele me deliciava com suas histórias de caçadas a pumas – animais que ele admira e respeita, mas mata por profissão, para proteger rebanhos de ovelhas. Pumas mortos a tiros certeiros, enforcados em armadilhas, perfurados por facas atadas a pontas de varas de madeira, atacados por seus cães, caçados em bosques, em cima de árvores, dentro de cavernas. Aos 67 anos, Don Vinicius ainda cavalga, tem as bochechas redondas queimadas pelo sol e vento patagônicos, mas não mata mais pumas, cria galinhas. E ri muito de seu passado e presente.

O Paso Mayer, que fiz em novembro e quase me afoguei de tanta água que havia nos rios, estava completamente seco agora em fevereiro. O rio que cruzei com água na cintura, carregando a bike no ombro e com o bike trailer navegando, flutuando como um barquinho, atrás de mim, estava seco. Cruzei pedalando e desviando de pedras. Em compensação, a estrada de 100 km que fiz muito rápido, tão rápido que quebrei o bike trailer, dessa vez fiz a 10 km/h de tanta lama que tinha. E chovia. Esse percurso, da fronteira entre Chile e Argentina até a Ruta 40 na Argentina, ganhou o troféu até agora de trajeto mais duro e impiedoso. Fazendo a contabilidade de prejuízo material causado, fiquei impressionado com a lista… Um bike trailer quebrado, um pneu rasgado, uma câmara de ar estourada, três câmaras de ar furadas, um luva perdida e o para-lama dianteiro também perdido – caiu da bike e eu nem percebi.

Mas desde meu último post no blog, nesse trajeto de Villa O’Higgins até o Valle Chacabuco, fiquei preocupado… Vi paisagens tão exageradamente belas, iluminadas de um jeito absurdo pela luz limpa pela chuva ou difusa de névoa, que realça cores, reaviva contrastes, que não sei se serei capaz de fazer justiça a tudo isso no livro que pretendo escrever… Também fiquei preocupado com minha saúde. Minha perna direita, na parte alta da panturrilha, está doendo e inchando todos os dias. Parece ser algum problema vascular. Há dias venho pedalado “na ponta dos cascos”.

Não é novidade para mim, mas a viagem me ensina e relembra diariamente que tudo é impermanente, tudo está em constante movimento e mudança, inclusive eu. Viajar de bicicleta também empresta a simbologia do desequilíbrio no equilíbrio, ou vice-versa. Tudo está prestes a desabar a qualquer instante, ou se erguer novamente. E não há tragédia alguma nesses movimentos bruscos. São apenas movimentos. No movimento está a vida.

Nessa reta final, faltando cerca de 1.300 quilômetros e 32 dias para minha chegada a Bariloche, no dia 31 de março, de onde saí em primeiro de outubro, luto contra o desejo de voltar para casa e as saudades que a viagem certamente vai deixar. Até aqui, já pedalei 4.800 quilômetros exatos, em 150 dias, puxando um bike trailer de quase 30 quilos… Não é a toa que minha perna dói.



Guilherme Cavallari
www.kalapalo.com.br