Eu, Manuela e Caio na trilha Inca
Texto e Fotos: Pablo Bucciarelli
21 de setembro de 2009 - 12:20
 
 
 
 
 

Foram seis meses de planejamento para as férias de inverno desse ano, e como já era de se esperar, meu coração não suportava mais tanta ansiedade. Eu e meus dois filhos, Caio e Manuela, iríamos para nossa primeira expedição, um pouco prematuramente para alguns, mas com muita vontade de realizar alguns desejos, dentre eles o sonho de pisar na cidade perdida Machu Picchu, um dos santuários da cultura Inca Peruana, com meus dois filhos nas costas.

Manu com três anos e Caio, que em setembro completou cinco anos, já fizeram algumas viagens com o papai. Mas essa seria um pouco mais extrema do que as anteriores. Manu aos dois anos já havia feito rapel na cachoeira do Sem Fim, lá no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – PETAR, sul do Estado de São Paulo. Caio, além disso, também já esteve em alguns acampamentos selvagens, nas praias isoladas e selvagens de Ilhabela, visitou cavernas: Ouro Grosso, Morro Preto e Couto.

Eu sempre fui muito extremista com meus passeios em família, isso desde cedo. Já carreguei namorada pra fazer caminhada de 70 km no meio das dunas dos Lençóis Maranhenses. Apesar disso ter forçado nossa separação, não me arrependo das roubadas em que venho me metendo ao longo dos anos. Saber viver a vida é o único legado que irei deixar para os filhos. O estilo de vida que levo é o único investimento que faço de olhos fechados, pois é certeza de retorno na educação deles, além da experiência de vida que vou acumulando.

São nesses momentos com meus filhos que sinto a liberdade para poder realizar qualquer “parada” diferente. Além de gostarem das novidades que ofereço nessas viagens, proporciono uma forma de estimular um senso de realidade, sem chocar, mas mostrando a vida como ela é de fato. Diferentes culturas, raças e credos acabam mesclando sua forma de enxergar o mundo. Idiomas, climas, terrenos e arquitetura variada também fazem deles crianças com um olhar mais sensível às diversidades que nos deparamos na vida. Nada é definitivo, nada é eterno, nada é linear ou certo. O planeta está envolto de uma atmosfera que muda sensivelmente a cada segundo.

No Peru já nos defrontamos de cara com o fator idioma. As crianças realmente estranharam aquelas pessoas falando diferente, mas eu tratava de auxiliar nas traduções, e incentivava o aprendizado. Novas palavras, cumprimentos, um vocabulário novo a cada conversa com os nativos. O clima também era diferente, além da altitude. Antes da trilha Inca, ponto alto de nossa viagem, teríamos uma semana de aclimatação com elevação da altitude a cada dia, até que chegaríamos a 4.100 metros dois dias antes do início da expedição à Machu Picchu.

Fui eu o mais acometido de fato, com dores de cabeça e dificuldade para dormir. As crianças passaram bem, estavam sempre conectadas nos 220 volts. Eu tive dificuldade em mantê-las alimentadas, pois eram tantas as novidades, passeios e gente, que fome foi um problema a menos para eles, e a mais para o pai. Mas, sempre que possível, fazia o terrorismo paterno de cada dia, forçando uma dose de comida, desde o café da manhã até o jantar, evitando as “porcarias” que eles tanto amam. Ás vezes era a única solução, mas o macarrão e a pizza foram bem aceitos na maioria dos dias pelas crianças. Não consegui fazê-los tomar o chá de coca, mas não chegou a ser necessário.

Seguindo o roteiro que preparei, conhecemos lugares como o Vale Sagrado, rico em vida, cultura e construções Incas e Pré-Incas. Visitamos os Sítios Arqueológicos de Sacsayhuaman, Ollantaytambo, Tambomachay, Puca Pucara, Chinchero, Q'enko, Písac, Coricancha, e as construções dos conquistadores espanhóis no centro da capital do Império Inca, a cidade de Cusco (3.400 metros). Além disso, tivemos o privilégio de participar no dia 24 de junho da festa anual em homenagem ao Deus Sol, Inti Raymi, realizada em Sacsayhuaman, tradição popular Inca.

Tornamos nosso dia-a-dia uma saga em realizar atividades na região, explorando locais menos turísticos como o vale até o povoado de Lares, saindo da cidade de Calca no Vale Sagrado. Uma aventura mais selvagem rumo à altitude e solos gelados, com o objetivo de testar a tolerância das crianças em terrenos mais inóspitos e de altitude. Nesse dia chegamos a 4.100 metros.

Bem, chegara então o dia tão esperado. O início da trilha Inca para Machu Picchu, eu, Caio, Manu, o guia Raul e mais sete “porteadores”. Fui surpreendido pela logística especial e privada que teríamos em função das crianças. Mas, como queria acima de tudo que tivessem uma excelente passagem pelo Peru, qualquer sacrifício financeiro, físico e emocional não seria nada perto da emoção de realizar um sonho antigo.

Caio e Manu juntos pesavam 32 kg, que somados à bagagem pessoal, chegaria a 38 kg. Estava preparado fisicamente, mas estava apreensivo quanto à carga emocional. Não sabia se suportaria a pressão do segundo dia, quando teríamos uma ascensão de 1.200 metros de desnível, passando por uma altitude de 4.200 metros. Uma semana antes da viagem aos Andes fiz uma experiência com ambos, passando um fim de semana na região entre Delfim Moreira e Marmelópolis, divisa entre São Paulo e Minas Gerais, na Serra da Mantiqueira. Subimos o Pico dos Marins. A Manu foi carregada na mochila Baby Trip da Curtlo por todo o período da caminhada, que durou 9 horas, e Caio caminhou durante todo o dia. Fiquei surpreendido com sua desenvoltura nas rochas dos Marins. O guia local, Milton Gouvêa, também afirmara na ocasião que estava diante de um futuro montanhista de muita qualidade. Fiquei orgulhoso!

Enfim, começamos a caminhada na trilha Inca no dia 29 de junho, e passados exatos 100 metros de caminhada, para minha surpresa, Caio pediu colo (arrego). Foi excelente escutar aquilo...!!!

Claro que já previa coisas assim, mas o fato é que teria que começar desde o início com o trabalho pesado. Caio na mochila de costas, Manu no canguru do peito, um equipamento francês da marca Ergobaby. O conforto não era totalmente garantido, mas a aventura sim, o que manteve o clima sempre em alto astral. As fotos são a maior prova de que sempre estavam animados, felizes, desfrutando das paisagens, admirados com a fauna distinta, a exemplo da Lhama, do Guanaco, da Alpaca e da Vicunha, todos da família dos camelídeos. Também fomos surpreendidos com um viveiro de animais em extinção, onde encontramos animais considerados sagrados pelos Cusquenhos, o felino Puma e a ave Condor. Essa visita foi durante a fase de aclimatação.

A cada dia de trilha meu semblante ficava mais leve e feliz pela realização. Foi emocionante cruzar com pessoas de todo o mundo, felicitando nossa aventura, nos dando forças e vibrando positivamente, torcendo pela conclusão da nossa travessia. Os carregadores sempre foram muito ativos em nos auxiliar, pois em certos momentos fui obrigado a parar para descansar, pois além do desgaste físico, a falta de ar era constante. “Cambiamos” papéis algumas vezes, trocando a mochila por um dos filhos. Mas, fiz questão de castigar o meu corpo, muito embora fosse um enorme prazer, senti na pele o que os “porteadores” fazem semanalmente.

A sensação de avançar no caminho rumo à Machu Picchu com as crianças sob minha tutela era de um grau de emoção e satisfação sem comparação a nada que já havia vivido antes. Chorei por diversas vezes sozinho e em silêncio. No ano de 2000, ao realizar a trilha Inca pela primeira vez, no último dia quando estava em Wiñaywayna, por volta das 5 horas da manhã cruzei com um pai e seu filho nas costas. Isso me tocou de uma forma tão profunda, que não conseguia sossegar enquanto não voltasse para lá acompanhado dos meus dois moleques. Certamente, por isso já poderia morrer feliz, pois um dos sonhos mais inusitados que tinha em mente foi realizado.

Voltando à caminhada, nossa primeira parada foi no acampamento de Wayllabamba, depois de caminharmos por 5 horas os 12 quilômetros, em terreno plano em sua grande parte, saindo da altitude de 2.750 metros e chegando aos 3.000 metros. Nos deparamos com belos mirantes, construções Incas e o maior obstáculo desse dia, os degraus de pedra polida construída pelo povo Inca. Ascender é algo comum para atletas de aventura, pois treinamos para isso, mas parecia que estava diante de degraus infinitos. Com Caio e Manu a vida não era tão fácil assim. Sempre que aparecia uma escada eu pensava: “sacanagem!” Eu já havia feito a trilha Inca antes, por isso sabia da dificuldade, mas só quando você começa a subir as escadas de pedra é que vem a lembrança da carga, e nessa viagem senti mais ainda os efeitos no corpo.

No segundo dia acordamos cedo, na verdade, sempre fomos despertados cedo pelos “porteadores”. A rotina de sono normalmente era dormir cedo, por volta das 19 horas, e acordar entre 4 e 5 horas da manhã. O guia Raul sempre nos dava uma prévia do que teríamos pela frente no dia seguinte. Juntos, planejávamos o ritmo, as paradas e as trocas de carga. Então, sempre tentava manter o ritmo dos “porteadores”. Exceto na subida infinita até Warmiwaousca, o passo dos 4.200 metros, mas nos demais mantivemos um ritmo forte, muitas vezes trotando, com média de carga girando em torno dos 30 kg. Cheguei a carregar 38 kg, quando levava ambos, mas apenas nos trechos iniciais, quando o dia começava e estava descansado. Os “porteadores”, agora cadastrados numa associação local, estão permitidos carregar um máximo de 20 kg dos turistas e mais 5 kg pessoais.

Chegamos ao segundo acampamento cedo, após uma descida alucinante a partir do passo dos 4.200 metros em Warmiwaousca até um setor baixo de Pacaymayo. Foram 6 horas para cumprir mais 13 km, saindo de 3.000 metros e chegando aos 3.800 metros no final do dia, que apesar da dificuldade na subida, conseguimos baixar a previsão de 8 horas do guia Raul em duas horas. Ele não acreditava, mas estávamos bem felizes, querendo mais aventura! Muita animação no acampamento de Pacaymayo, e mais novos amigos. Caio e Manu eram populares. Eu era como mais um “porteador” do grupo, dando assistência aos dois príncipes Incas carregados nas costas. Engraçado, mas na trilha Inca, Caio ficou conhecido como “Inca Kaio” e Manu como a “Guerreira Manu”, em referência à floresta Manu. No Peru, uma das florestas mais selvagens próximo à fronteira da Amazônia recebe o nome de Manu. Realmente, mesmo tendo sido carregados, a fibra desses dois aventureiros foi surpreendente. Quanta vontade!

Comer nos acampamentos foi uma tarefa difícil de ser administrada, pois apesar da culinária excelente, ambos não queriam comer nada. A cada dia o apetite foi aumentando, até que ao final estavam se alimentando regularmente.

A saída para o terceiro dia de caminhada foi forte, com uma subida logo de cara, visitamos novas construções pelo caminho como Runkurakay, Sayacmarca e Phuyupatamarca, com detalhes incríveis da arquitetura e engenharia construída pelo povo Inca, além do refinamento religioso evidente na precisão dos ângulos e das bases antissísmicas. Ritmo forte, visual alucinante, Cordilheira Blanca ao fundo, o cume do Salkantay (6.271 metros) com sua neve brilhante ao fundo, mais rochas, mais degraus, mais construções, mais amigos, mais emoção aos nos aproximarmos do destino tão desejado.

Perguntava insistentemente aos dois, nesses meses que antecederam a viagem, para onde iríamos, até que decorassem o nome. “Manu, para onde vamos viajar nas férias?”, perguntava eu. Ela respondia de forma objetiva: “Maxupixu”... Foi uma diversão toda a preparação!

E aí chegamos, na verdade, quase, quase... Chegamos a Wiñaywayna, última parada antes da visita à cidade perdida. Completamos os 15 quilômetros em 5 horas, saindo de 3.800 metros e chegando aos 2.650 metros de altitude. Paramos para visitar as construções de Wiñaywayna, incríveis como Písac e igualmente espetaculares como Machu Picchu. Aproveitamos o dia melhor, pois andamos bem e chegamos cedo, e corremos para nosso único banho durante a trilha Inca. O dia seguinte começaria cedo, pois Raul, nosso guia avisara com ar de carrasco: “Amanhã acordamos as três e meia da manhã, estejam prontos”. “Entendido, estaremos prontos”, respondi e já tratei de avisar os meninos. Claro que para acordar era aquele terror de sempre. Começava a trocar a roupa com os dois dormindo, mas depois de uma hora tudo estava de novo nos eixos, ambos à velocidade da luz me acelerando na caminhada...

As 5h30 foi dada a largada para o início do último trecho da trilha Inca. Saímos todos os turistas numa correria alucinante. Eu estava adrenalizado! O guia disse em duas horas chegamos lá. Eram 6 quilômetros apenas, mas meu coração batia de forma alternada e em pulsos animalescos... Chegou a hora, queria logo subir ao Inti Punku, a porta do Sol. Desse ponto, poderíamos ver a cidade de Machu Picchu pela primeira vez. Não contive o ritmo, mantive um leve trote, e nosso guia vinha atrás dizendo em espanhol e inglês, “permiso”, “border” aos outros turistas, grande parte de estrangeiros. A diversão foi total. Em pouco mais de uma hora cumprimos esse trecho, e chegamos à cidade sagrada, saindo de 2.650 metros até Machu Picchu aos 2.430 metros. Quando chegamos à Porta do Sol não pude segurar as lágrimas, além de muito suor, misturados num suco de alegria e realização. As crianças olhavam aquelas casas de pedra de longe e eu alucinado: “Chegamos, estão vendo, Machu Picchu... Vejam!” E uma sequência de fotos foi tirada de forma frenética. Realizar um sonho é isso, é perder o controle, é sair do chão, é chegar ao estado mais sublime do espírito, é flutuar sobre nossos próprios pensamentos.

Ao chegar em Machu Picchu aproveitamos nosso tempo escutando as explicações de Raul, nosso querido e paciente guia. À noite visitamos os banhos termais de Machu Picchu Pueblo, antiga Águas Calientes. Escutamos música andina, assistimos aos ritos e costumes de um povo feliz, nos deliciamos com as lembranças da trilha Inca e nos preparamos para voltar a Cusco, de onde seguiríamos novamente ao Brasil.

Essa experiência será eternamente guardada em nossos corações. Os registros fotográficos são uma forma de compartilhar com as pessoas que convivem conosco essa realização. Assim, podemos dividir esse sentimento de amor e aventura, de introdução a valores humanos que venho cultivando neles. Com isso, podemos de alguma maneira incentivar aos mais preparados, e sem medo de serem felizes, que façam o mesmo.

Sugiro sempre um bom acompanhamento e uma orientação profissional para que esse tipo de aventura seja prazeroso. Uma pequena dose de loucura se faz necessária, mas totalmente responsável, se é que isso existe.

Bem aventurados são aqueles que vivem para evoluir o espírito, e deixam marcas da sua passagem na Terra através das suas ações.

Vibrações positivas a todos vocês. Paz!

Pablo Bucciarelli
35 anos, Engenheiro de Riscos, atleta solo de Corridas de Aventura, Top 5 pelo Ranking Brasileiro de Corridas de Aventura – RBCA. Atua como guia turístico pela Climb Tour Operator.

 
 
 
 
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