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Expedição feminina na travessia da Serra Fina
 
texto: Anazélia Tedesco
1 de junho de 2016 - 20:00
 

A descida do Alto dos Ivos, 4º dia de travessia. Foto: Anazélia Tedesco

 
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Há oito meses tivemos a ideia de nos lançar um desafio. Queríamos incentivar outras meninas a fazerem o que fazemos, mostrando pra elas que montanha também é coisa de mulher! No caso, coisa de cinco mulheres montanhistas de pouca quilometragem rodada e muita vontade de explorar novos horizontes. A definição do destino talvez tenha sido a parte mais gostosa! – ‘É pra ser difícil?’ - a gente se perguntava. Todas concordavam que sim. Mas nem tanto, vai... Que também seja bem possível! E assim decidimos pela Travessia da Serra Fina. Guia? Alguém pra carregar a maior parte do peso? Pra nos orientar na trilha? Não dessa vez. Estava decidido: íamos partir de forma autossuficiente pra uma das travessias mais desafiadoras do Brasil. E isso por si só nos impulsionava.

Já no início da temporada de montanha tínhamos tudo pronto. O nome do projeto: Mulheres no Topo. Os números: 5 mulheres, 5 mochilas, 2 barracas, mais de 80 quilos entre comida, água e equipamentos, 30 km de trilha a percorrer, 4000 m de ascensão a acumular, 3 marcas apoiando a empreitada, 4 dias e 3 noites de osmose com a natureza. Mapa, bússola e GPS para navegação.

O número cinco foi se mostrando uma maravilha desde o início da preparação. Era mais fácil conseguir companhia entre nós pra treinar, descobrir qual de nós tinha ou não determinado equipamento e os custos divididos entre todas eram menos pesados.

Partimos!

Não é fácil sair de uma capital litorânea com ares de interior (haha...)! Um voo e mais três horas e meia de estrada para nos levar de Vitória a Passa Quatro, cidade anfitriã do tradicional ponto de partida da travessia. A orientação pra trilha já começou aí. No Bairro do Quilombo, encontramos a pousada sem nome (até então, pois até o fim da viagem nós resolvemos isso) à 01h30 da manhã e, como referência, um fusca azul estacionado na rua.

Chegamos!

Os donos nos esperavam com um café quente no friozinho da madrugada de Passa Quatro. Contaram-nos que estavam preocupados e prestes a nos ligar. ‘Cinco mulheres dirigindo sozinhas de madrugada? Isso é perigoso, não?’ Logo combinamos o horário do café da manhã e fomos descansar o que fosse possível para o dia seguinte. Às sete horas, nosso resgate – o carro que nos levaria até o ponto de início da travessia e nos buscaria no ponto de chegada – estava na porta da pousada. Uma Kombi branca, com dois jovens guias de montanha da região. ‘Não usem demais o celular, economizem bateria’, ‘me liguem ao final de cada dia’, ‘peguem água suficiente’, ‘me deixe ajustar o seu bastão pra você’, ‘cuidado com essa câmera’, ‘comam de 40 em 40 minutos’, ‘aquela subida ali não é lugar pra descansar’. A preocupação de todos, que em situações usuais minha personalidade arredia teria interpretado como dúvida sobre a nossa capacidade, na verdade me encheu de fôlego. Dava pra ver que estavam torcendo por nós. As recomendações também eram seguidas de um “É isso aí, meninas!” ou de um “Vocês são muito corajosas”.

     
     

Começamos!

Depois de uma mini pane elétrica no meio da ladeira do Quilombo para a Toca do Lobo, que é o ponto de início oficial da Travessia, a Kombi nos deixou no local até onde é possível ir sem tração 4x4. Iniciamos a subida ainda meio que ajustando as mochilas, entendendo quão pesadas elas pareceriam, sentindo a pisada das botas que enfrentariam sua primeira travessia. A mochila mais leve estava com 15 kg. A bota mais usada tinha 4 dias de vida. Da Kombi à Toca do Lobo já estávamos a pé por uma estrada abandonada. O céu estava limpo, mas os últimos dias de chuva tinham deixado tudo cheio de lama. Tiramos a famosa foto feliz de início de trilha, pegamos água no riacho vizinho à Toca do Lobo e começamos a trilha de fato. Cinco metros de distração e oups! – A trilha não é por aqui... kkk Esse era só um lembrete de que a gente estava na Serra Fina e precisava ter mais atenção. Retomamos o curso e subimos em direção ao Passo do Anjo. Mesmo antes de ir pra Serra Fina eu já sabia que adoraria estar ali. Assim que o avistamos decidimos que almoçaríamos lá. Um grupo conversador passou rápido por nós e em alguns minutos já o víamos longe na trilha. Já no Passo de Anjo, hora de almoçar – putz, ainda estava cedo, mas isso é fazer trilha com outras 4 mulheres tão famintas quanto eu!

Contrariando todas as previsões que havíamos acompanhado por cerca de duas semanas, o tempo estava lindo. Tiramos várias fotos ali e ao longo de todo o resto do percurso, o que nos atrasava um pouco. Alguns metros à frente, conhecemos o capim da Serra Fina. O Vinícius Moysés, meu treinador, já tinha me avisado sobre ele, usando palavras de puro amor – pra não dizer o contrário. Ah, Vinícius! Deixa de ser exagerado, é legal esse capim! Filma aqui, gente... Essa moita é mais alta que eu, olha que da hora! Aí já começamos a usar o bastão para abrir as moitas de capim. Nova utilidade. Muitas subidas depois, e o primeiro bosque de bambu. Esse sim, uma gracinha. Era um passo e uma bambuzada. Alternando entre capim, bambu e intermináveis ‘escadas’ de barro enlameado, alcançamos o primeiro cume da travessia, o Capim Amarelo, com 2.570 m de altitude. Escolher lugar, montar barraca, esquentar a janta - que levamos pronta e embalada a vácuo, pra não gastar água no preparo, já que ela é tão escassa na travessia. Debaixo de neblina encerramos o primeiro dia.

     
     

Seguimos!

E também debaixo de neblina começamos o segundo dia da travessia. Um pouco mais de bambu, de capim, mais escalaminhadas e vários quilômetros depois, estávamos no topo da Pedra da Mina. O encantamento pelas moitas de capim mais altas já tinha dado lugar a uma centelha de ódio, haha. Nesse dia andamos bem devagar, mas mesmo assim pegamos o pôr do sol no cume. Aquela emoção que só quem gosta de montanha entende - e fiz uma forcinha pra segurar o choro. Não sabemos explicar por que, mas a grandeza da montanha nos comove quase que instantaneamente quando alcançamos o topo. Chegamos uma a uma e, depois de assinar o livro do cume, descemos mais um pouco pra acampar num falso cume logo do outro lado. Por dois motivos: um que, mesmo evitando os dias exatos do feriado, o cume da Pedra da Mina estava um tanto quanto cheio e outro que no sopé dessa encosta o vento parecia ser menor. Dá pra ir listando outros motivos, como o fato de já estar escuro e não termos disposição de descer no mesmo dia pro Vale do Ruah. Queríamos ver o nascer do sol e o próprio vale de cima. Quem nos indicou um lugar possível pra montar as barracas foram os recém-amigos de um grupo que estava fazendo a travessia no mesmo sentido, só que em menos dias. Alguns loucos de Blumenau, daquele mesmo grupo falante que encontramos no primeiro dia de travessia.

Aumentamos o caminho!

Como até aí a travessia estava muito fácil (hahaha) decidimos que era hora de desbravar o Vale do Ruah. Aconteceu que, mesmo estando com mapa, bússola e GPS, a preguiça falou mais alto e resolvi perguntar pra um cidadão que olhava o horizonte: – ‘Ei, amigo! Pra descer pro Vale do Ruah é por aqui mesmo?’ – ‘Oi?’ - Ele respondeu. – ‘Vale do Ruah!’ - gritamos quase todas juntas. – ‘Ah, sim. É por aí mesmo. Até tem um caminho por aqui, mas é mais perigoso. Eu não indico não’. Ele estava no alto da Pedra da Mina, o trajeto correto pro Ruah, o que perceberíamos cerca de uma hora depois, quando já estávamos nos embrenhando por cerca de um quilômetro e meio de capinzal e charco SEM TRILHA. Olhando o GPS e o trajeto dos outros caminhantes, percebemos que o que fizemos foi descer em direção à trilha do Paiolinho e adentrar o Vale do Ruah pelo oeste, e não pelo sul, como todos fazem. Aí, meu amigo, já era tarde demais pra voltar, estávamos na metade dessa errada. A decisão que tomamos foi cortar o resto do percurso no peito. Com as mãos, os bastões, os pés e até deitando de costas (num é, Stephanie? Hehe) fomos desfazendo as tranças que se formam entre uma moita e outra de capim. E repetíamos a fala do nosso amigo passante: -‘Até tem um caminho por aqui, mas é mais perigoso. Eu não indico não’. Amigo, se você está lendo esse relato, saiba que não guardamos rancor, mas saiba também que te xingamos MUITO durante esse pedacinho do dia, hahaha. Descíamos dois passos e precisávamos voltar três. Eram muitas valas, alguns pedaços de charco e buracos que me engoliam até a cintura. Num zig-zag pela encosta, alcançamos o que era de fato o início da trilha do Ruah. O temido Vale do Ruah, alvo das principais recomendações sobre navegação. Já tínhamos perdido boa parte da manhã no caminho errado. Pela primeira vez imaginei que nosso planejamento iria furar. Às 10h40 começamos a navegação no Vale. Passamos por ele feito foguetes. Nem meio metro de desvio do percurso. Parecia que a ‘errada’ da manhã tinha sido uma prova de resistência. A Serra Fina tinha nos aprovado. Podem continuar, meninas! Agora vai dar tudo certo. Começamos o dia de travessia já fisicamente cansadas, mas psicologicamente fortalecidas por termos superado bem um desvio tão grotesco do percurso.

     
No cume do Pico dos 3 Estados, 3º dia de travessia.  
Entrada (errada) para o Vale do Ruah, 3º dia de travessia.
 

Subimos!

A partir daí, almoço no cume da Brecha, lanche no cume do Cupim do Boi, leve descida, subida infinita até o Pico dos Três Estados. No caminho, os primeiros que nos cruzavam contaram: - ‘Uai, disseram que vocês tinham abortado a missão’. Daí, explicávamos nossa trilha inovadora, às vezes com uma piadinha: ‘tracklog disponível em breve’; ‘todos te dizem por onde passar, mas só o Mochilando com Elas te diz por onde não passar’. E assim foi durante todo o dia, todos surpresos e ao mesmo tempo felizes por não termos abortado. Mas pra nós estava bem definido que desistir não era uma opção – a não ser, claro, que fosse necessário por motivo de saúde. Estávamos muito preparadas pra ter dificuldades e passar por elas. Duas de nós estavam com pequenos problemas, uma pra subir e outra pra descer. Às 3h da tarde estávamos no ponto de sela entre o Cupim do Boi e Pico dos Três Estados. Bateu o desânimo porque achei que não íamos conseguir finalizar a trilha com a luz do dia, o desnível parecia muito forte a partir daí (e era!). Que isso, Ana! Vamos continuar, vai dar tempo sim. E assim as meninas me jogaram pro alto da trilha. Subimos o mais rápido possível, considerando a dificuldade de fôlego de uma de nós. Sobrou tempo. Quase uma hora antes do pôr do sol estávamos montando nossas barracas numa ótima clareira no Pico dos Três Estados.

 

Anazélia Tedesco no nascer do sol no cume da Pedra da Mina, 3º dia de travessia.

 

Agora é só descer!

O sol ‘não nasceu’, diziam alguns montanhistas quando saí da barraca perguntando sobre o tempo. Nasceu entre as nuvens e só apareceu quando já estava bem alto. Nesse ponto já estávamos descendo em direção ao Alto dos Ivos, sempre tendo o Picu como referência no horizonte. Muitos trechos de bambu depois, chegamos à Bica, primeiro ponto de água desde o Ruah. A descida foi revezada com outros dois grupos. Numa encruzilhada nos dividimos. Nós fomos pra esquerda, em direção ao Sítio do Pierre, e eles pra direita, em direção à Garganta do Registro. Quase uma hora depois, avistamos o sítio! Felicidade, alívio. Thaís desceu correndo, gritando pelo Pierre. Uma olhada no GPS, tristeza. Não era o Sítio do Pierre, era a Fazenda Engenho da Serra. Mais cerca de uma hora morro abaixo e estávamos no asfalto. Nem sinal do resgate. O horário marcado era 15h. Chegamos poucos minutos depois. Nem sinal de celular também. Tentamos durante meia hora até conseguir falar com alguém. Às 16h30, chega a mãe do dono da Kombi que havíamos contratado como resgate. – ‘Vocês estão aqui há muito tempo, meninas?’. Explicamos que ele tinha marcado com a gente às 15h. Pra nossa surpresa, ele marcou com ela às 17h! Hahaha. Parece que, afinal, as recomendações do início também eram um pouco de dúvida sobre a nossa capacidade. E nós queremos saber? Que se lasque! Dominamos a Serra Fina!

Sorrisos, só sorrisos!

Enfim, a alegria de ter concluído uma travessia temida por muitos e almejada por outros tantos nos encheu a alma. Por acaso, nenhuma de nós acredita no acaso. Mantivemo-nos firmes durante toda a travessia, quando alguns homens crescidos teriam se desesperado durante o ‘perdido’ na entrada do Vale do Ruah. Apoiamo-nos, quando grupos mais dispersos teriam se dividido pra buscar o cume. Superamo-nos, quando tiramos forças lá do fundo pra tornar mais homogêneo o grupo, nas nossas reações e na disposição que empregávamos na trilha. Curtimos cada minuto na montanha, como se pertencêssemos àquele lugar. Cada raio de sol no rosto, cada brisa gelada que vinha com a neblina, cada gotinha de água que despencava do teto da barraca depois da condensação da madrugada. Aquela estufada no peito a cada elogio que recebemos durante a trilha (‘vocês são fortes’, ‘estão muito preparadas’, ‘estamos impressionados com a disposição de vocês’, ‘já falei que vocês são foda?’) foi substituída por um calor no coração que continua nos impulsionando a fazer com que mais mulheres possam ter essa experiência. Até o dia em que um grupo de mulheres numa travessia desafiadora não seja só ‘impressionante’, mas também muito normal.

 

Fim da Travessia da Serra Fina

 

Pra elas

Às mulheres que desejam se inspirar com essa aventura, deixo a explosão de amor que veio do coração da Priscilla Nobres assim que retornamos da montanha.

‘Finalizando a Travessia da Serra Fina, um colega de trilha questionou a minha filosofia pra fazer uma Travessia considerada uma das mais temíveis do Brasil. Não consegui dar de imediato a resposta... E independente do grau de dificuldade o desafio é sempre questionado. Por que sair da zona de conforto? Sem discussão, dias na montanha são purificadores. Trilhar com gente com visão de mundo semelhante à sua, cruzar com gente com histórias hilariantes e cheia de disposição. A experiência é pessoal e intransferível, fotos, relatos, vídeos... nunca darão a dimensão do que é estar lá. Vai faltar o vento frio no rosto, o peso de se carregar numa mochila tudo o que se precisa, a palavra amiga que diz: Vamos lá, falta pouco!!! As marcas superficiais somem rápido, a mão cortada pelo capim, o nariz tostado pelo sol, os lábios secos, as bolhas nos pés, os hematomas pelo corpo... O aperto de dividir a barraca, a alegria de comer algo quentinho, dividir e fazer amizades com um bom chá... Lá não importa se aqui embaixo você tá com a vida complicada, ou se tem algum status. Por um tempo nos igualamos nas necessidades, coisas como saber quanto tempo falta para o próximo ponto de água ou se vai ter vaga no abrigo que seja bem protegido do vento... E nessa certeza de que somos passageiros, por mais que uma paisagem seja sedutora, não há desejo de permanecer ali, a vontade é seguir sempre. Até o próximo vale desgastante ou uma subida de tirar o fôlego que nos levará a mais uma paisagem ainda mais bela que a anterior. Anicca, anicca... cansativo ou lindo, tudo passa. Não devemos nos apegar e, finalizando a trilha, o primeiro pensamento é: não quero voltar tão cedo. Mas aí você reencontra as pessoas que conheceu lá em cima e elas carregam um brilho diferente e agora algo que você também conquistou, uma montanha. Sim, eu sou apaixonada por elas. E o amor, como disse Gabriel Garcia Marquez, diversas vezes se confunde com cólera. Não nego meus três dias de diarreia, mas até isso já passou. Talvez minha filosofia seja seguir até a próxima montanha, pra então aprender a ter um pouquinho do que elas me passam: estabilidade e serenidade pra uma vida melhor e mais leve.’

Priscilla Nobres

O site

Conheça o site Mochilando com Elas.

Agradecimentos

Nosso agradecimento aos apoiadores dessa expedição: Snake | Deuter | Casa Marlin.

 
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