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O francês que seguiu Chris McCandless ao Alasca
 
texto: Brendan Borrell
tradução: Giancarlo Zambiazzi
2 de julho de 2015 - 13:30
 

François Guenot com sua bicicleta e o trailer feito de lata de lixo, rumo a Homer, no Alasca.
 

Quando François Guenot desapareceu em um litoral selvagem e remoto do Alasca no último verão, muitos no estado consideraram-no como mais um novato despreparado. Mas uma viagem revelatória com o pai e irmão de François mostrou que ele era alguém especial: uma pessoa resistente, um viajante de alma nobre cuja história ressoa com as grandes tradições da natureza bravia americana.

 

Na manhã de 26 de maio de 2014, dois biólogos estaduais do Alasca estavam em um hidroavião Cessna contabilizando peixes da janela, enquanto o piloto os levava para a Península do Alasca: um grande arpão curvado de terra que projeta-se em direção a Rússia pelo sudeste. Então, eles estavam em uma área em frente à Baía Kamishak, na costa norte do Parque Nacional Katmai.

Vista de cima, a paisagem da península parece um suflê derretido, uma tundra musgosa, rachada e enrugada perfurada por centenas de lagos de tinta. À distância, os biólogos podiam ver geleiras torcendo-se nos flancos do Monte Douglas, o vulcão de 2.140 metros que é a sentinela de uma das passagens de água mais perigosas do Alasca: o pinball marítimo conhecido como Estreito de Shelikof. Nenhuma estrada levava para dentro ou para fora de onde eles estavam, e para chegar à vila mais próxima eram necessários vários dias abrindo caminho através de matas de amieiros infestadas de ursos-pardos.

De repente, um dos homens avistou os flutuadores brancos de uma rede de pesca. “Opa! É uma rede de emalhar”, gritou Glenn Hollowell ao seu companheiro, Ted Otis, por cima do zumbido do motor. A rede foi esticada transversalmente ao Ancoradouro Amakdedori, bloqueando sua entrada por completo. Eles olharam incrédulos para o que era uma violação tão descarada às regras de pesca, em um local onde uma grande migração de salmões estava para acontecer em duas semanas. O mar estava notavelmente calmo, e o piloto sugeriu pousar na água sobre os pontões do hidroavião.

Quando os biólogos pularam na praia, foram saudados por um homem com um sorriso desarmante e um forte sotaque francês. “Sou François!”, ele disse, apertando sua mão. François era um cara à parte, musculoso em seus trinta e poucos anos, com um nariz queimado pelo sol, uma barba desgrenhada e uma bandana enrolada em sua cabeça quase calva. Suas roupas eram sujas e esfarrapadas, e ele exalava fumaça de madeira e odor corporal. Ele parecia um órfão selvagem, um Pequeno Príncipe jovem que ficou muitos anos abandonado no Saara.

     
     

À medida que François levava os homens à rede, contou-lhes que ele a havia armado e que havia pego apenas um linguado estrelado. “Não acho que ele entendeu que aquilo era ilegal”, diz Otis, que vem trabalhando na região desde o fim da década de 1980. Otis falou a François que ele era obrigado a confiscar a rede e a contar aos guarda-parques estaduais o que havia visto. “Você tem algum documento de identificação?”, ele perguntou.

François nada disse em resposta a isso, mas os levou a uma cabana em ruínas em uma escarpa coberta de gramíneas sobre a praia. A cabana foi remendada com madeira seca trazida pelo mar e por redes de pesca laranjas, azuis e verdes.

Otis inclinou-se para dentro da estrutura cheia de rangidos e observou François vasculhar por entre suas malas no chão. Ele tinha uma quantidade surpreendente de coisas em seu acampamento, incluindo um caiaque coberto de panos que já havia visto dias melhores. François procurou por materiais em um depósito de lixo e remendou os rombos com sacolas plásticas derretidas e seiva de árvore. A abertura do assento do caiaque era grande o bastante para caber três pessoas, e ele o tornou à prova de spray d'água do mar utilizando pouco mais que folhas de plástico fino. A característica mais incrivelmente porcaria da embarcação era seu leme, que François improvisou de materiais encontrados. Em vez de pedais para condução do leme, ele enrolou duas linhas ao redor de seus pés. Havia outra linha extendendo-se da vela, a qual ele poderia conduzir com seu corpo ou com os dentes. “Não era o tipo de equipamento que eu sairia em uma aventura”, diz Otis.

François não encontrou seu passaporte. Não se sabe se ele não pôde ou não queria encontrá-lo – a esta altura, o passaporte estava expirado há um ano. Após 20 minutos no chão, Otis e Hollowell estavam ansiosos para voltar ao avião antes que o tempo piorasse. Enquanto saíam, Otis pegou seu celular e tirou uma foto ruim e mal iluminada do francês misterioso que haviam acabado de conhecer.

O nome completo de François é François Guenot. Sabemos disso porque seu passaporte e pertences – incluindo seu barco – foram descobertos em 19 de junho de 2014 dispersos em uma praia de Katmai, cerca de 30 quilômetros ao sul de onde os biólogos o haviam encontrado. O esqueleto de madeira e metal de seu caiaque cutucou através do tecido vermelho como uma fratura exposta. Dois sacos-estanque estavam a menos de meio quilômetro, cheios de arroz e lentilhas que valeriam para diversas semanas. Dias atrás uma tempestade perversa havia varrido a costa, com rajadas de vento acima de 100 quilômetros por hora. Foram erguidas ondas escuras com cristas brancas altas o suficiente para engolir um ônibus. A guarda costeira vasculhou o oceano por dois dias, mas falhou em encontrar François, vivo ou morto. Os oficiais cancelaram a busca.

A primeira vez que ouvi sobre François foi no website do Alaska Dispatch News, o maior jornal do estado. Na história sobre a busca, um homem chamado Gary Nielsen, dono de uma pequena loja de conveniências e que conheceu François, disse que ele era “perigosamente ingênuo” e que “não entrava em sua cabeça as distâncias envolvidas aqui”.

A maior realização de François era enxergar as virtudes das pessoas que ele encontrava e ele, por sua vez, era recompensado por isto. “Alasca é uma terra vasta e emotiva”, escreveu em seu diário. “Relacionamentos me deixam centrado”.

Os comentários sobre a história a respeito de François foram duros. Muitos habitantes do Alasca o viram como mais um tolo sem raízes no espectro caipira que vai desde Chris McCandless ao grisalho Timothy Treadwell. Comecei a perguntar-me se a audácia de seus feitos na natureza selvagem o colocam em uma categoria diferente. Passei a acreditar que ele era mais que apenas outra alma perdida e despreparada. Ele era um artista de rua cujo ponto de trabalho ocorreu de ser o interior do Alasca. Além disso, ele era engenhoso e durão: algumas das coisas que fez e as distâncias que cobriu são perturbadoras. E sua jornada era obviamente feita para inspirar pessoas. Ele deixou claro em suas anotações e em suas conversas, era uma reprimenda contra o excesso capitalista de viciados em equipamentos, que são convencidos de que necessitam de apetrechos de ponta para apreciar completamente a natureza selvagem.

Ao ler o blog de curta duração de François, estudar diários e mapas encontrados em seu caiaque, rever a trilha de fotos e vídeos que deixou em computadores emprestados, e ao conversar com pessoas que o encontraram, soube que ele havia, de alguma forma, coberto mais de 4800 quilômetros em esquis emprestados, bicicletas baratas e barcos improvisados. Após começar suas viagens em Quebec, em 2011, sua bússola apontava mais ou menos em direção à Península Kamchatka, na Rússia, mas ele rapidamente desviou-se. Ele imergiu no deserto do sudoeste dos Estados Unidos, subiu através da Califórnia e seguiu ao leste para Yellowstone, ao norte para Yukon, e ao sudoeste para o Alasca. Em um certo momento, construiu um trailer para bicicleta feito de uma lata de lixo com rodinhas, e o rebocou com 30 quilos de comida e equipamento.

“Ele era um filho da mãe cabeça-dura, que simplesmente ia em frente”, diz Colter Barnes, um diretor de uma escola na cidade de Kokhanok, onde François viveu rudemente por nove meses, a partir de 2013. “Ele o desafiava a viver de forma diferente”.

     
     

“François não era tão obcecado com seu objetivo a ponto de deixar as coisas que aconteciam ao seu redor passarem”, diz Bretwood Higman, um explorador e geólogo bem conhecido sediado em Seldovia, outra cidade do Alasca onde François acabou passando. “Na verdade, foi basicamente o que ele fez: interagir com os lugares e as pessoas que ele encontrou pelo caminho. É principalmente isso que eu respeito nele”.

François cresceu nas montanhas de Jura, na fronteira francesa com a Suíça, onde eu teria passado minha infância. Em 1990, meu pai fez um curso de negócios lá e moramos à sombra de Salève, um maciço de rochas calcárias conhecido como a Varanda de Genebra.

A Suíça era uma chance melhor que minha vida suburbana em Houston; assim como François, lá tive minha primeira experiência de aventura, o que o fez muito mais intrigante para mim. Além disso, aprendi a falar um francês aceitável.

Pesquisando na internet durante uma manhã no mês de julho passado, encontrei o website de uma empresa chamada Moteurs-Loisirs (“Motores Recreacionais”), na cidade francesa de Maîche. O site apresentava coloridas imagens de motosserras, assopradores de neve e grandes cortadores de grama, mas os produtos-chave são quadriciclos e snowmobiles. “Provedores de Puros Sentimentos!”, dizia o slogan. A loja pertencia por um homem chamado Robert Guenot, quem eu assumi ser o pai de François.

Certo dia, liguei para descobrir. “Você é o pai de François?”, perguntei em francês.

“Le père de François”, ele disse, como se isto fosse seu título profissional. Disse-me que não via seu filho desde que ele deixou a França há quase quatro anos. Depois da guarda costeira ligar com a notícia do encontro de seu barco, Robert decidiu que iria viajar ao Alasca com o irmão mais novo de François, Philippe. Imaginei que ele apenas fosse pegar os pertences de François, mas ele pretendia ficar por um mês.

“Eu já havia planejado passar as férias com...”, ele começou. Então, sua voz embargou-se e tudo o que saiu foi ofegante e trêmulo. “Eu já havia planejado passar um mês de férias com François”, ele continuou. “Para mim, ele ainda está vivo. Ele irá me encontrar entre 18 e 20 de julho”.

 

O caminho aproximado percorrido por François Guenot de canoa, bike, carona e avião. Arte: Elias Luiz / Extremos
 

Robert havia comprado sua passagem há meses. A viagem, como originalmente planejada, seria uma chance de finalmente entender o que seu filho distante havia se tornado. “O manterei informado caso eu mude meus planos”, François lhe disse por email. “Beijos. Amo você”.

Faltava uma semana para 18 de julho, e eu duvidava que François havia sobrevivido. Ele não havia sido visto no litoral por quase dois meses, e seguir para o interior do continente teria requerido atravessar uma cordilheira de montanhas coberta de gelo, para então caminhar à sede do Parque Nacional Katmai – um feito que podia levar mais que um mês. Ainda assim, eu queria entender o que levou François a assumir tamanhos riscos. O melhor jeito de fazer isso era me juntando à sua família no Alasca.

Anchorage não estava abençoada com tamanha abundância de aluguel de carros quando fui para lá: turistas de verão haviam tomado todos eles, evidentemente. Quando cheguei para pegar os Guenots em uma minivan surrada e da cor de uma banana madura, começaram a rir. “Isso tem freios?”, Robert perguntou.

“Oui”, disse Philippe. “Este é um carro François”. O carro que seu irmão voltou para casa era tão destruído que você só conseguia pará-lo apoiando contra uma parede de pedra. “Nós sempre queríamos improvisar não importa o que encontrávamos”, Robert disse. “É assim que François gostaria”. Enquanto saíamos do estacionamento do hostel em nossa lata velha, fumaça branca de óleo queimado saía do capô do motor.

Robert, 63, ostentava uma camiseta de moto de neve e uma nuca branca, graças a vários dias sem se barbear. Ele era breve, com um comportamento reservado estilo Buda. Philippe, 32, estava enfeitado com roupas ganhadas de sua loja: um boné de beisebol e uma jaqueta da Can-Am. Ele é mais alto, esguio e mais angular que seu pai, com cabelo estiloso e escuro e óculos de plástico um tanto quanto futuristas.

No dia anterior, os Guenots me chamaram ao seu alojamento para vasculhar entre duas caixas de papelão cheias de coisas que pertenceram a François e que haviam sido recuperadas na praia. “Assim eram suas roupas em Maîche””, disse Philippe, segurando uma cueca boxer esfarrapada que parecia uma moita de algas marinhas. Nós retiramos luvas que eram mais buracos que tecido, um scao de dormir que parecia uma colcha de retalhos, dois aparelhos de GPS antigos e um painel solar. O equipamento estava em estado deplorável, mas fez François parecer mais preparado do que qualquer um de nós teria esperado. Ele até tinha duas camisinhas em um saquinho de ziplock.

Robert me disse que teve seu próprio encontro com a morte em sua juventude. Em março de 1992, ele viajou a Quebec para participar de uma expedição de snowmobile de três semanas para a Baía Hudson, uma aventura narrada em um livro de 2012 escrito por Romulad Previtali, chamado Amarok Trail: The Wolf Track. No capítulo de abertura, Robert fica encalhado no gelo rachado sobre o Rio Leaf, enquanto seus companheiros assistem à cena, desamparados. “São quatro horas de domingo, 14 de março”, escreve Previtali, “menos vinte e cinto graus, Robert permanece imóvel sobre uma delicada camada de gelo pronta para, ao menor movimento, engolir tudo”.

Quanto perguntei novamente a Robert sobre qual era seu objetivo nesta viagem que fazíamos juntos, ele respondeu sem hesitar: “Para lhe dizer a verdade, ainda esperamos encontrá-lo vivo. Já que a Guarda Costeira não encontrou seu corpo, há uma pequena chance”. Ele e Philippe também queriam experimentar o mundo através dos olhos de François, e me viram como parte dessa missão. Eles falavam apenas algumas palavras de inglês, e já os havia ajudado a chegar aos amigos de François. “A viagem é melhor com você”, disse Robert. “Vamos descobrir muito mais do que se estivéssemos sozinhos”.

 

François Guenot.
 

Nosso plano era dirigir ao sul para Homer e então pegar uma balsa para Seldovia, que fica no extremo sul da Península Kenal, no lado leste da Baía Kachemak. François passou um ano lá, do outono de 2012 ao verão de 2013, antes de atravessar a Enseada de Cook em seu caiaque improvisado e, eventualmente, partir em sua malfadada exploração da Península do Alasca. Depois que deixamos Anchorage, nós dirigimos ao longo de um pedaço do fiorde da enseada, subimos por um passo de baixa altitude e descemos para uma floresta nebular úmida. Essa foi a mesma rota que François fez de bicicleta com sua lata de lixo rolante. Na maior parte do caminho, notamos que quase não havia acostamento.

Robert e Philippe estudaram um mapa no qual François havia precisamente marcado seus locais de acampamento. Ele cobriu 50 ou 65 quilômetros por dia. “Pessoas disseram que François não podia compreender as distâncias no Alasca”, disse Robert. “Nós pensamos que sim, ele sabia”.

Paramos em uma placa de marco de quilometragem onde François havia tirado uma selfie; Robert e Philippe saíram para tirar a mesma foto. “Não me sentia tão perto assim de François em anos”, disse Philippe.

Ele creditou a François a ajuda que o deu a escapar de um impasse, o encorajando a passar um ano na República Dominicana em 2009. “A única barreira em nossas vidas somos nós mesmos”, disse François a ele certa vez. Após dirigir por cinco horas, armamos acampamento em uma campina, sob uma luz arroxeada de fim de tarde e sentamo-nos ao redor de um anel de fogo. Através da água espelhada da Baía Kachemak, podíamos ver uma cadeia de montanhas com dentes pontiagudos e o dedão branco de uma geleira. Philippe fumou um cigarro. Robert mexeu nervosamente em seu celular, à busca de notícias. Não havia nenhuma.

Contei a Robert que Gary Nielsen, o homem cético citado no Alaska Dispatch News, havia me mandado um e-mail e dito que também não havia desistido de François. “Nós não achamos que ele se foi”, escreveu. “Nós achamos que ele está caminhando”.

“É bom saber, não acha?”, disse Robert. “Que mais alguém pensa assim”.

Quando François tinha seis anos, pulou de uma mesa de jantar e pousou sobre sua cabeça. Seu cérebro inchou com sangue, e os médicos rasparam seu longo cabelo loiro para serrar seu crânio.

Durante as duas semanas que passou sob cuidados intensivos, Robert foi vê-lo todos os dias, temendo ser seu último. François recuperou-se e, conforme foi crescendo, acabou tornando-se um atleta natural. Robert o incentivou a ser um esquiador cross-country competitivo. Talvez tenha sido duro demais no incentivo. Com 15 anos, François tinha uma estante cheia de troféus, mas havia cansado do esporte. Certa tarde, ele veio para casa e os jogou todos fora. “Eles não significam nada”, disse.

No fim de sua adolescência, François virou-se para a vida ao ar livre, bebendo e fazendo festa com amigos por vários anos. Ele tinha 21 e penava na faculdade com seus pais divorciados. Ele permaneceu próximo de sua mãe, Martine, que se importava com o filho mais velho, mas via Robert apenas esporadicamente. Após sua formatura, ele teve problemas em achar trabalhos que gostava. Em 2006, aos 28, ele viajou de carona para a Áustria e ficou em uma comunidade religiosa durante seis meses.

François não falava muito sobre a experiência, mas os amigos e família acreditavam que foi transformadora, inspirando sua ânsia por simplicidade. Mais tarde, quando François visitou Robert em Maîche e o ajudou a limpar o jardim de uma casa de campo do século 19 que estava restaurando, ele repreendeu seu pai com perguntas sobre materialismo. Por que você trabalha? Por que você compra roupas novas? Por que você mora em uma casa? “Gosto de viver a vida de uma certa maneira”, Robert respondeu secamente. “Nada era muito simples com François”, ele disse. “Eu não o entendia”.

Loic Deforet, um amigo de François, diz que ele via seu pai como um homem muito severo que estava sempre pensando sobre dinheiro. Em 2007, Loic e François moraram juntos em uma fazenda comunitária, Le Redondance (“A Redundância”), e François ganhou dinheiro extra ensinando esqui nórdico nos Montes Jura. Os dois estudaram para tornar-se guias de montanha e fizeram aventuras independentes, incluindo uma viagem de quase 3 mil quilômetros para a Estônia em 2009.

Na fazenda, o apelido de François era Gross Sac (“Grande Saco”), porque ele passou vários dias comendo muita comida porcaria, como um urso preparando-se para hibernar, e zarpou em uma aventura de vários dias sem nenhum alimento. Ele correu riscos. Certa vez, enquanto caminhava ao longo de um penhasco à margem de um rio, ele largou sua mochila no chão de terra e pulou 6 metros na água, sem saber nada sobre a profundidade. “Quando ele queria fazer algo, ele simplesmente fazia”, diz Loic. “Plutot mourrir dans l’ocean qu’accocher dans un bureau”, François costumava dizer. É melhor morrer no oceano que ficar preso em um escritório.

 

François durante uma viagem ao interior com Evers. Foto: Nicole Evers
 

A aventura norte-americana de François nasceu em 2010, durante um jogo de tabuleiro que jogou com Loic e três amigos na fazenda. Depois de jogar, eles pegaram o tabuleiro do jogo – que traz um mapa estilizado do mundo – e rasgaram em pedaços para os jogadores guardarem. Eles juraram reunir-se em Kamchatka dois anos mais tarde e jogar de novo. Sua mãe depositou 2 mil dólares em sua conta no banco para mostrar aos oficiais canadenses que tinha suporte financeiro para um visto, mas ele nunca retirou um centavo.

Em 6 de janeiro de 2011, François voou para Montreal e viajou de carona ao sul e ao oeste, rodando pelo Grand Canyon, subindo para a costa da Califórnia e para o Parque Nacional Yellowstone.

Os detalhes dessas viagens vêm de amigos e de um atlas com marcas rudimentares deixado para trás. Mas é sabido que até o verão ele havia ido para Vancouver, onde economizou dinheiro trabalhando como lavador de louças e como aprendiz de cozinheiro no Hummingbird Pub na Ilha Galliano, acampando na floresta. Sua aventura selvagem parece ter começado a sério alguns meses depois, quando ele chegou à cidade de Lake Louise, dentro do Parque Nacional Banff do estado canadense de Alberta.

François passou um mês caminhando ao longo da espinha das Montanhas Rochosas para Jasper, que fica a 200 quilômetros ao norte. Então, ele desceu de canoa o Rio Fraser por 320 quilômetros para Prince George, British Columbia. E então, ele flutuou para o norte por 800 quilômetros através dos lugares mais raramente visitados da província. A certo ponto, ele emborcou em corredeiras e perdeu grande parte de seu equipamento. Moradores locais lhe deram alguns itens básicos para continuar, e ele passou a crer que podia sempre viver sem os excessos e os desperdícios da sociedade moderna. “A aventura tornou-se a minha vida do jeito que eu queria desde a minha infância”, ele escreveu para um antigo professor na França. “Os índios e esquimós da América do Norte sempre me auxiliaram em minha jornada”.

Após atravessar para o Yukon, François enjambrou diversas bicicletas em um lixão e pedalou 800 quilômetros ao norte desde a Klondike Highway até a cidade de Pelly Crossing. Situada a meio caminho entre Whitehorse e Dawson City, esse antigo posto avançado da Companhia Baía Hudson é agora um lugar lúgubre com os problemas comuns enfrentados pelas primeiras comunidades da nação: desemprego, álcool e drogas. Mensagens escritas à mão na beira da estrada dizem: REPRIMA OS TRAFICANTES DE CRACK (em inglês: Crack down on crack dealers).

Eddie Tom Tom, um residente de longa data de Pelly Crossing, estava limpando a neve de uma tarde de novembro de 2011 quando viu o brilho de uma lanterna de cabeça a distância. A temperatura estava abaixo de zero e, conforme o homem se aproximou, Eddie pôde ver pedaços de gelo agarrados à sua barba loira. Ele carregava uma pequena mochila esfarrapada e um par de alforjes caseiros amarrados no paralamas de sua bicicleta de ferro velho. Ele procurava um lugar para pendurar sua lona – o único abrigo que carregava.

Eddie convidou François para entrar e se esquentar em seu fogão a lenha. “Ele me contou sua história até aquele ponto”, Eddie lembrou, acrescentando que as façanhas de François o lembravam de contos que ouviu de anciões tribais. “Deveríamos ter feito aquilo há cem anos”, disse Eddie. “Muitos de nós tornaram-se confortáveis demais em nosso estilo de vida sedentário, em nossa cultura de sofá”. François logo mudou-se para um trailer com um professor chamado Gabriel Ellis e, ao longo dos próximos seis meses, deu ao povo de Pelly um pouco do seu otimismo inexorável.

A idosa mãe de Eddie, Rachel, ensinou a François a técnica Athabaskan de emboscar coelhos e lhe mostrou como cozinhar bannock – um alimento de sobrevivência feito com farinha, sal, gordura e água. Ele a chamou de avó e ela lhe fez luvas, botas de pele de foca chamadas mukluks e um chapéu aparado com pele de castor. François ensinou culinária francesa no centro comunitário local e então mandou para Rachel um par de mocassins que ele mesmo havia costurado. “Eu ainda os uso”, ela disse.

O pai de François, Rober Gunot, disse sem hesitar: “Para lhe dizer a verdade, ainda esperamos encontrá-lo vivo. Já que a Guarda Costeira não encontrou seu corpo, há uma pequena chance”.

Enquanto François prosperava entre seus amigos, suas veias pulsavam com um poderoso mix de adrenalina e anticongelante. Durante o natal, Eddie, o guru dos mapas da tribo, ajudou François a planejar um trekking de quase 50 quilômetros, e a comunidade lhe emprestou um par de raquetes de neve, uma faca com cabo de chifre e uma nota de 20 dólares.

François se perdeu, porém, e passou dez dias tentando encontrar o caminho de volta. A temperatura estava abaixo de zero enquanto ele arrastava-se pela nevasca das 2 da tarde às 10 da manhã para manter-se aquecido, dormindo durante o dia. Ele sobreviveu apenas racionando uma única lata de feijões cozidos da Heinz que pegou de uma cabana de caça. Em sua aproximação final à cidade de Mayo, ele atravessava o Rio Stewart quando o gelo cedeu, encharcando-o em água glacial rasa. Quando o jornal local entrevistou François sobre sua provação, ele manteve-se efusivo e horrorizado. “Na Europa, você vê as marcas do homem em todos os lugares”, ele disse. “Aqui, é terra aberta. É selvagem”.

Implacável, François pegou emprestado um par de esquis e partiu novamente, tentando chegar a uma fonte de água termal sagrada a mais de 100 quilômetros de distância. Era abril e o degelo estava ocorrendo, portanto ele teve que arrastar seu trenó e os esquis. Ele conseguiu chegar e passou vários dias relaxando nas fontes termais. Em seu retorno, teve pouca escolha senão esquiar ao longo do gelo velho das margens do Rio Pelly. Quando o gelo virou águas abertas, ele construiu uma jangada utilizando um pedaço de compensado e uma viga de madeira que extraiu de uma cabana velha. Ele conseguiu voltar à cidade após 17 dias sozinho.

Ellis, o professor, gostava da companhia de François, mas estava furioso em relação a sua imprudência. François, por sua vez, zombava de Ellis, chamando-o de “Homem-Fácil”, pois ele assistia à TV e frequentava uma sauna. Na visão de François, a sociedade moderna havia se tornado preguiçosa, corrompida por alimentos industrializados e combustíveis fósseis. “O que para mim era imprudência, era ele desenvolvendo suas habilidades”, disse Ellis. Quando perguntei a Ellis o que motivava François, comentou que achava que François provavelmente estava “tentando superar seu pai”.

Os amigos de François ainda planejavam encontrar-se na Rússia em setembro de 2012, e ele precisava se mexer. Ele juntou dinheiro cortando madeira e comprou uma canoa usada em Whitehorse, equipou-a com uma vela de lona e navegou pelo Rio Yukon por quase 1400 quilômetros, chegando a Ruby, Alasca, em 24 de julho.

François comentou a algumas pessoas que planejava continuar a oeste pelo Estreito de Bering, mas ele deve ter pensado melhor a respeito, pois deu meia-volta abruptamente. Ele pegou carona em um pequeno avião para Fairbanks, a segunda maior cidade do Alasca, e vendeu sua canoa por algumas centenas de dólares.

No início de agosto, enviou seu passaporte de volta à França como parte de sua solicitação para um visto russo. Enquanto esperou, ele pegou uma carona com um caminhoneiro que ia ao norte; seu objetivo era cruzar o Círculo Ártico e caminhar pela Cordilheira de Brooks. Então ele voltou ao Rio Yukon para recomeçar de onde havia parado. Foi lá que construiu o trailer de sua bicicleta, escrevendo FAIRBANKS OU FRACASSO com fita adesiva. Quando conseguiu cobrir os quase 100 quilômetros até Fairbanks, ele adicionou OU HOMER. Homer era 1050 quilômetros ao sul.

Em seu blog, François escreveu sobre a insensatez de sua jornada. “Que bicicleta bonita, não?”, lia-se na legenda sob uma foto a respeito de seu equipamento deselegante, tendo como plano de fundo os suntuosos picos da Cordilheira do Alasca. As rodas de plástico de sua lata de lixo ficaram corroídas com protuberâncias irregulares do terreno, e ele tentou alongar a vida delas com fita adesiva. Esses reparos duraram cerca de um quilômetro antes que elas partissem em dois. Um Bom Samaritano – François o chamou de Lixologista – fixou um eixo adequado na base da lata de lixo e lhe deu um par de rodinhas emborrachadas e “carnudas” para continuar. Quando chegou a Homer, em 12 de setembro, François instalou uma placa de carro do Alasca ao lado de um refletor vermelho. Ele logo soube que sua solicitação para o visto russo havia sido negada. Ele considerou construir um barco e velejar ilegalmente até a Rússia, mas seus amigos o convenceram a não fazê-lo. Duas semanas depois, pegou um caiaque de plástico emprestado e remou até Seldovia.

Robert, Philippe e eu pegamos uma balsa para Seldovia em 21 de julho. É uma pequena vila de pescadores com mais ou menos 165 residentes e, em antecipação à nossa chegada, alguns deles desfraldaram uma bandeira da França sobre uma passarela de madeira perto do porto. Leões marinhos lançavam-se na água e tomavam sol. Era um dia perfeito.

Saímos da balsa com nossas mochilas e fomos para a Trilha Otterbahn por um túnel de cicutas e abetos. Robert usava uma das camisetas de manga comprida de François, verde limão com o logo da Buckwheat Ski Classic. Quando emergimos da floresta para a praia, Robert pegou um molusco aquecido pelo sol e mastigou ruidosamente seus sumos salgados, como certa vez havia visto seu filho fazer em um vídeo no YouTube. “Só uma provada”, ele disse.

“Não está fresco”, alertou Philippe. Robert jogou o molusco fora e caminhamos para um lugar plano com gramíneas onde armamos acampamento. Philippe vestiu uma boina preta, acendeu um cigarro e brincou que tudo o que precisava era um baguete e ele seria um clichê ambulante.

Enquanto eu fechava o zíper da minha barraca, um quadriciclo surgiu roncando e vimos um homem de cabelo branco com um boné de beisebol com as iniciais F.A.R.T. na frente. “Autre père de François!”, ele resmungou, apertando a mão de Robert. Esse era Kirby Corwin, o auto-proclamado Rei do Caiaque da Seldovia, nativo de Long Island, estado de Nova Iorque, que dirigia uma loja de equipamentos chamada Kayak' Atak. “François era doido”, disse Kirby. “Se eu não fosse tão velho, provavelmente teria feito a mesma coisa”.

Kirby nos contou que Seldovia é um lugar que acolhe a todos que chegam. Um travesti metaleiro chamado Sadi Synn costumava pavonear-se pela rua principal em seus sapatos de salto e minissaia estampada de pele de leopardo e as únicas pessoas que o aborreciam eram alguns imbecis de fim de semana que vinham de Anchorage. Uma razão para a vibe de vale-tudo da cidade: é isolada do resto do Alasca por geleiras e só pode ser alcançada por barco ou avião.

Em janeiro de 2013, Kirby ajudou François a transformar um barco a remos de alumínio em um barco a velas decrépito chamado A Pérola. “O barco era uma merda”, disse Kirby. Uma vela marrom-escura pendurava-se em um mastro de 4 metros e meio – um tronco de árvore que ainda tinha a casca. O barco de fundo chato não tinha quilha, então François transformou duas portas de compensado em estabilizadores laterais retráteis, anexados às laterais do casco como asas dobradas. Por hora, François havia atraído um grupo de jovens amigos que estava querendo nadar pelado no inverno e juntar-se a ele em aventuras tolas. Eles ficaram presos no A Pérola mais de uma vez e tiveram que remar de volta à praia. “Papai!”, François teria dito a Kirby. “Eu sou um filho da puta estúpido”.

     
     

Kirby era um bom anfitrião, nos levando para andar de caiaque e organizando um piquenique. Ele vinha dizendo às pessoas da cidade que estava começando uma arrecadação de dinheiro para doar a Robert e Philippe pelas suas despesas de viagem. Certa noite, parei no Linwood Bar e o vi bebericando uma cerveja no balcão. “A família de François tem dinheiro?”, ele disse.

“Robert tem um negócio bem sucedido”, lhe contei, citando um avião ultraleve que possuía. “Oh, merda, ele tem um avião? Nós não iremos juntar dinheiro para eles! Talvez possamos ir para a França e sugá-los por um tempo”.

Conforme encontramos outras pessoas que conheciam François, percebi que seu relacionamento com a cidade era misto. É claro, ele era sempre parceiro para saltar de esqui de um penhasco ou fazer um backflip, mas os habitantes de Seldovia, como muitos moradores do Alasca, orgulhavam-se de sua autoconfiança e de seu trabalho duro para fazer dinheiro e manter suas propriedades. Uma vez que os locais entenderam que François não estava apenas de passagem, mas sim planejando ficar para o inverno, tornou-se o único sem-teto problema da cidade.

A maior parte da vida diária de François em Seldovia era devotada à aquisição de calorias que precisava para sobreviver. Ele perambulava com um saquinho de farinha em seu bolso e fazia bannock em cozinhas emprestadas. Ele ficou entusiasmado quando soube dos bidarkies, moluscos intertidais. Raspava os moluscos das pedras com sua ferramenta multiuso e os comia cru ou os assava sobre a lenha. Na maior parte das vezes, porém, estava à caça de convites para jantar.

“François estava sempre com fome. Isso é um fato. Nós aceitávamos isso”, disse um local chamado Walt Sonen. “Ele andava por aí, esperando você recebê-lo para jantar. Se você tivesse outros planos, era melhor avisá-lo”.

Essa tendência de ficar além do tempo era um tema recorrente nas viagens de François. “Ele tinha muita presença de espírito”, disse John Miles, um idoso de Homer que velejou para a Rússia há muitos anos e que sobreviveu ao naufragar seu barco em uma rocha no Estreito de Shelikof. “Ele meio que assumia que deveríamos reverenciá-lo só porque ele era algum tipo de aventureiro. Nós não vivemos dessa maneira. Você tem que garantir o seu futuro. 'Hora de seguir em frente, François' ”.

Certa tarde em Seldovia, Tobben Spurkland, um engenheiro ianque nascido na Noruega e que tinha um bigode branco tipo Muppet, nos convidou para a sua casa arejada de dois andares. Ele e sua esposa, Tania, uma americana com cabelo cor de palha, nos serviu uma generosa pasta de iogurte, frutas silvestres e salmão defumado. O casal acolheu François assim que ele chegou à cidade e Tobben riu da vez em que François deixou sua bicicleta na floresta durante uma expedição de 10 dias de rafting. Quando ele voltou, um porco-espinho havia roído o banco de couro marrom da bicicleta. François estava tendo aulas de trabalho com couro e consertou o banco com fio dental. “Ele tirava vantagem de cada um de nós, e não nos importávamos”, disse Tobben. Mais tarde, quando François pediu a Tobben para emprestá-lo equipamentos de sobrevivência, incluindo um macacão impermeável para sua travessia oceânica então planejada, foi longe demais. “Não”, Tobben lhe disse. “Não quero ser parte da sua auto-destruição”.

No fim de nossa visita, Robert me pediu para traduzir uma declaração que queria fazer. Ele pôs a mão em seu peito e disse, “Du fond de mon coeur, je vous remercie de le prendre comme un fils.”

“Do fundo do meu coração”, eu disse aos Spurklands, “os agradeço por acolhê-lo como um filho”. Tobben deu um sorriso tenso da maneira nórdica. Ocorreu-me que ele nunca esperou ser retribuído por sua generosidade, em ações ou palavras. Ele viu François como ele era: uma pessoa simpática, confusa e jovem, desatado de sua terra natal. A maior realização de François, percebi, era enxergar as virtudes das pessoas que ele encontrava e ele, por sua vez, era recompensado por isto. “Alasca é uma terra vasta e emotiva”, escreveu em seu diário. “Relacionamentos me deixam centrado”.

A alguns quilômetros longe da cidade fica a cabana onde François passou a maior parte do inverno, sem pagar aluguel. Ela é sombreada por um denso dossel de árvores e é posicionada na beirada de uma enseada profundamente erodida que leva à costa. À medida que o terreno desce, uma abertura na floresta lhe dá uma visão através da Enseada de Cook até as encostas nevadas do Monte Iliamna. “Isto deve ter sido o paraíso para ele”, Robert disse quando visitamos o lugar, estourando uma frutinha silvestre madura em sua boca.

Lá dentro, encontramos traços da estadia de François, incluindo um mapa cor de pastel apoiado sobre a soleira de uma janela. Olhando mais perto, vi que o mapa era da Rússia oriental, mas os nomes eram em francês: Sibérie, Mongolie, e assim por diante. Então percebi – era seu quadrante do jogo de tabuleiro. “É o jogo”, disse a Robert. O jogo que simbolizava todos os lugares remotos que François queria explorar, a jornada que iria fazer para ficar o mais longe possível de sua família e, ele esperava, da influência da vida moderna. “Pode levá-lo para a França com você”, eu disse.

Robert passou o mapa a Philippe sem dizer nada. Philippe correu sua mão pela borda do mapa e examinou seu pai. Então, colocou-o de volta à soleira. “Não”, ele disse. “É melhor que isto fique aqui”.

Às quatro horas de uma manhã em julho de 2013, François subiu em seu caiaque improvisado, zarpou do porto de Seldovia e ergueu sua vela azul. Partir era sempre duro para ele. Assim que passou pela última bóia sinalizadora, ele apontou a câmera para si. “Obrigado, Seldovia”, ele disse. “Obrigado a todos, pois este inverno foi incrível. O vento está comigo. Isso é bom”. Do outro lado da Baía Kachemak, ele percebeu que seu caiaque não estava fazendo curvas. Ele virou-se para ver o leme de esguelha, que tocava de leve a superfície. Ele balbuciou alguma coisa e o vídeo termina abruptamente.

Após reparar sua embarcação em Homer, François cruzou a Enseada de Cook em uma investida de 17 horas, pegando os ventos e marés ideais. Em 29 de julho, por volta da meia noite, um pescador avistou François navegando em uma baía e perguntou se ele precisava de ajuda. François disse que estava bem e seguiu remando. Ele seguiu a linha costeira ao sul e fez portagem de seu caiaque por 25 quilômetros pela rodovia até o Lago Iliamna, quando um caminhão parou no acostamento e ele, relutantemente, aceitou uma carona. “Eu meio que me escondi, mas então eles me ofereceram cervejas”, ele disse por e-mail a um amigo.

O Lago Iliamna é imenso, com aproximadamente 130 quilômetros de largura, em forma de cometa indo para o oeste. É um lugar de beleza assustadora, um dos únicos lagos de água doce do mundo que tem uma população residente de focas. Os locais dizem que as focas passam o inverno em cavernas subterrâneas. Também, eles acreditam que as profundezas do lago abrigam um monstro pré-histórico.

François balançou entre costas lacustres e costas de água salgada por uns dois meses. Fez cume em uma ilha-vulcão chamada Monte Augustine. Em setembro, conheceu Nicole Evers, uma voluntária na fazenda de uma propriedade muito peculiar, a única cidade no lado sul do lago. Ela havia recém ordenhado uma das cabras quando o viu descer de uma tenda de peles, usando ceroulas comidas por traças.

“Ele estava uma desgraça”, ele me contou. O dono da fazenda era o diretor da escola local, Colter Barnes, apelidado Chewbacca devido à sua barba alaranjada estilo lenhador. Colter havia convidado François para ficar com eles. “No começo, tentamos não nos aproximar demais dele”, lembrou Nicole. “Pensamos que ele estava de passagem. Ele manteve todas as suas coisas em sua mochila, avaliando o que faria em seguida”.

As coisas começaram a mudar quando Nicole e sua irmã, Danielle, juntaram-se a François em uma viagem de vários dias a uma montanha chamada Seven Sisters. Elas subiram ao cockpit de seu caiaque e rebocaram sua carga em um bote inflável cinza. Uma manhã, abriram a aba de sua barraca após uma tempestade e tudo o que viam era branco. Nicole era de Maine e era forte e independente, traços que François obviamente admirava em uma mulher.

Tarde de uma certa noite, após uma caixa de vinho tinto, eles compartilharam histórias sobre sua juventude e fizeram amor. Nicole foi transferida para o Peace Corps no Panamá e pensou que François ia empacotar suas coisas e partir a qualquer dia.

“Isso não significa nada”, ele lhe disse.

“Eu não costumo ter namorados”, ela lhe disse.

Ele cozinhou panquecas para ela e as cortou em formato de um coração. Ele ajudou na fazenda construindo um abrigo para coelhos, passando breu em um telhado, abatendo porcos. Colter e Nicole gostaram de seu trabalho, mas ele era implacavelmente teimoso. “Eu não gosto de petróleo”, ele o teria dito, recusando-se a dirigir um quadriciclo. Ele acreditava que seus animais deveriam ser mantidos em liberdade. Certo dia, Nicole encontrou-o do lado de fora do galinheiro, perturbado. “Mais non! Mais non”, ele repetia. Ele havia deixado a porta aberta, e um cachorro havia massacrado suas galinhas.

No Natal, ocorreu em François que Nicole estava também transando com Colter, e ele estava confuso. “Estávamos todos tentando ser amigos nessa comunidade hippie, amor livre e tudo isso”, disse Nicole. “Ele mostrava essa vibe de que ele era assim, mas lá no fundo ele era um menino pequeno muito sensível e familiar”. François respirou fundo e desceu as escadas para a oficina. Nicole ouviu o rugido abafado dele amaldiçoando. “Putain!”, ele gritou.

Colter tentou argumentar com François, explicando que eles estavam apenas se divertindo antes de cada um seguir seu caminho na primavera, mas François não estava satisfeito. “Não sou como vocês americanos”, ele disse. No fim de janeiro, escreveu a Nicole uma carta enfeitada com palavrões que nunca enviou, e partiu.

Durante seu exílio, François dedicou-se ao aperfeiçoamento, passando um tempo com Gary Nielsen, um homem corpulento que geria a loja de departamentos local. “Ele estava sob uma árvore a cerca de meio quilômetro de distância”, Nielsen me disse enquanto sentou no sofá em sua sala de estar. “Ele se mudou para cá e estava ficando em minha sauna”.

 

Nicole Evers, Colter Barnes, Jesse Davis, e François Guenot. Foto: Nicole Evers
 

François estava alimentando os cães de trenó de Nielsen no inverno e os mantendo em forma com um trenó que ele mesmo construiu. Então, quando o gelo quebrou no início da primavera, ele partiu em uma viagem. Ele carregou uma pequena mochila e caminhou para o oeste pela margem do Lago Iliamna. Os locais haviam parado de caminhar sobre o gelo há uma ou duas semanas, e eles o avisaram para ficar fora do gelo. Após 32 quilômetros, ele virou para o norte e cruzou o lago à foz de um rio, onde o gelo é mais fino. Quando ele chegou à outra margem, pareceu um milagre.

François continuou alegremente, visitando alojamentos na rota. Quando serpenteou de volta a Kokhanok, 45 dias depois, sentiu-se rejuvenescido. “Fiz alguns amigos ao longo de minha caminhada e conectei-me com os espíritos dos lugares que visitei”, ele escreveu. “Os aldeões do lago sempre me acolheram, me deram comida, às vezes aceitaram minha ajuda, e descobri seu modo de vida”.

Antes do amanhecer de um dia do início de agosto, Philippe recebeu uma ligação de um número desconhecido, mas havia apenas silêncio no outro lado. Ele tinha certeza que teria que ser François, mas quando ligou de volta, o número estava desligado.

Neste tempo, eu já havia partido sozinho para continuar relatando. Entretanto, Robert e Philippe encontraram uma mulher que falava francês que estava convencida que a busca por François foi inadequada e, então, ela os ajudou a arranjar uma reunião com as tropas do estado do Alasca para tentar iniciar uma nova caçada na região. Robert e Philippe fizeram um apelo por ajuda no jornal Dispatch, mas o Alasca havia seguido em frente. Em 17 de agosto, voltaram à França.

Três semanas depois, Andy Schroeder, o diretor executivo do Kodiak Island Trails Network, estava navegando sozinho em um barco Zodiac de 13 pés, patrulhando locais para limpeza de detritos marinhos que sua organização faz todos os anos. Quando saltou na praia em uma pequena ilha ao norte de Kodiak, ele viu o que parecia ser um corpo estirado na água rasa. Era pouco mais que um esqueleto, mantido intacto por botas de neoprene e uma jaqueta de chuva verde. Estava tão decomposto que Schroeder não conseguiu distinguir se era um homem ou uma mulher. Seguindo as instruções das tropas do estado que tinha no celular, ele enrolou o corpo em uma lona e o arrastou acima da linha da maré.

Registros dentários confirmaram que era François. Em janeiro de 2015, seus restos mortais foram cremados e enviados de volta a Maîche, onde realizou-se uma cerimônia em uma pequena igreja. “Como pais, não deveríamos nos arrepender de ter concluído nossa missão de ter criado nossos filhos para serem homens livres, independentes e autônomos”, Robert disse no funeral. “Temos uma vida para cruzar. Alguns a cruzam mais rápido do que outros”.

Quase tudo o que sabemos sobre os últimos dias de François vem das anotações que encontramos em seu saco-estanque na praia. Ele partiu de Kokhanok em 22 de maio de 2014, uma mochila sobrecarregada sobre suas costas, com velharias balançando do lado de fora como enfeites de Natal. Ele tinha uma pequena coleção de livros de bolso, incluindo Never Cry Wolf do ambientalista canadense Farley Mmowat, além de uma coletânea das histórias de Victor Hugo. Antes de François sair, escreveu um poema em inglês para Nielsen sobre sua ânsia de estar no mar. “Cada onda é um recipiente da minha alma. Torna minha vida realmente verdadeira!” Ele assinou “o francês maluco”.

Em sua primeira noite, François acampou perto do Lago Gibraltar e abriu caminho para a costa através de amieiros, cânions rochosos e represas de castores. “Voila, o primeiro dia de minha aventura ao Oceano”, ele escreveu em seu diário. Um piloto de avião local largou seu caiaque e provisões em uma cabana costeira decrépita.

Após passar alguns dias lá, remou ao norte, acampando e pescando na Baía Bruin antes de virar ao sul novamente no começo de junho. Ele estava descendo para Chignik ou talvez planejando caminhar através da Península do Alasca até Egegik. A única coisa que sabia com certeza era que estava indo ver a “famille Guenot”.

Folheando o diário em Seldovia, Robert ficou cativado com todos esses detalhes. Perguntei, então, se ele estava começando a entender seu filho. “Ele descobriu um jeito verdadeiro de viver”, me disse. “Esta viagem deu-me bastante tempo para refletir”.

“Você acha que vai mudar coisas em sua vida?”, perguntei.

“Vou atribuir menos importância ao mundo material.”

Robert virou a página. No começo de junho, o diário dizia que o clima na água provou ser imprevisível. François esperava remar 20 quilômetros por dia, mas ele estava tendo que abrir caminho pelo vento e fazendo menos da metade disso. “Fiz muito pouco progresso”, escreveu desanimado ao chegar no norte do Cabo Douglas em 14 de junho. Ele escondeu seu equipamento debaixo de um penhasco e tentou pescar. “Há muito vento nesta noite”, ele escreveu. “O Oceano Pacífico me conforta. As ondas compridas e altas me fazem imaginar lugares distantes”.

 

À beira-mar François em 2012. Foto: Cortesia da família Guenot
 

Ele sabia que o único jeito de encontrar seu pai a tempo era remando para longe da costa, onde ele poderia arriscar-se nas rápidas e imprevisíveis correntes do Estreito de Shelikof. Às 13 horas, no dia 15 de junho, ele escreveu sua última entrada antes de contornar o cabo e apontar para o mar aberto. O céu estava limpo e a água quieta, mas ele sabia onde estava se metendo. “Merda, sou um tolo”, ele rabiscou. “Completamente maluco. Vou continuar. Veremos”.

“François, você percebe a vida com uma acuidade particular, a beleza de um encontro, a beleza de uma paisagem.
Com o tempo, nas voltas de um caminho nos encontraremos na beleza de um lugar a sua memória intacta habitando em nós François, você foi um filho formidável que deixou uma marca indelével entre todos aqueles que esbarram com você.
Você nos deu uma grande lição de vida François, você é verdadeiramente uma boa pessoa e você ficará para sempre em nossos corações.”
Robert Guenot
o pai

Brendan Borrell (@bborrell)
escreve para a Scientific American e a Smithsonian.
Vive em Brooklyn, Nova Iorque.

 
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