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Chapada Diamantina
 
Texto: Ernesto Stock
9 de setembro de 2014 - 22:50
 

Trilha para Águas Claras. Foto: Ernesto Stock
 

Fazia muito tempo que tínhamos vontade de conhecer a Chapada Diamantina e seus arredores, mas sempre acabávamos desencorajados com comentários bastante desanimadores a respeito dos preços e de dificuldades de locomoção. Não há nenhuma dúvida que não se trata de um destino barato e muito menos de fácil deslocamento, mas é possível conhecer a Chapada gastando bem menos do que você imagina, contando com um pouco de bom senso, coragem e disposição.

 

Juntando o útil ao agradável, eu e a Andreza resolvemos levar as bicicletas. Além do prazer e do privilégio de pedalar por um dos destinos mais bonitos do país, acabávamos minimizando custos e facilitando a locomoção de um ponto ao outro. Como a área do parque é enorme e tínhamos apenas quinze dias, resolvemos concentrar nossas energias nas atrações localizadas ao norte do parque.

Apesar de suas inúmeras vantagens, levar a bicicleta para uma viagem pode acarretar uma série de problemas que devem ser antecipados para evitar complicações. Diferente de realizar uma viagem onde se sai de sua casa pedalando, “levar a bicicleta pra viajar” pressupõe uma bagagem volumosa e pesada, que deverá ser transportada em aviões e outros meios de transporte menos preparados. Um planejamento cuidadoso evitará maiores dores de cabeça. As empresas devem ser avisadas com antecedência. Companhias aéreas têm limite de bicicletas que podem ser transportadas por vôo, por exemplo, e você pode ter sérios problemas para embarcar se não realizar os procedimentos exigidos antecipadamente.

Terra da Felicidade

Desembarcamos em Salvador por volta das nove horas da manhã e precisávamos ir até a rodoviária. Os táxis credenciados que operam dentro do aeroporto cobram R$ 90,00 tabelados para te levar até o terminal de ônibus. Logo em frente é possível tomar um táxi na rua por cerca de R$ 30,00. Outra opção é tomar um ônibus circular por R$ 3,00 e que passa de uma em uma hora no ponto atrás do estacionamento. Por ser uma linha bem movimentada, talvez você tenha alguma dificuldade para embarcar se estiver com muita bagagem, principalmente duas bicicletas. Nada que um pouco de paciência não resolva. Optamos pelo táxi.

Manuel, motorista, nos ambientou rapidamente a Bahia. Com uma imagem de São Jerônimo (santo católico sincretizado como Xangô no Candomblé) e uma guia do próprio no pescoço, era negro e desfilava uma malícia saída dos livros de Jorge Amado. Quando passamos perto da Fonte Nova, contou sobre a copa do mundo e toda a maluquice vivida na cidade. Assistira aos jogos de graça, convidado por alguns gringos que levou até o estádio. E tinha uma mulher. E tinha a lavagem do Bonfim. E tinha uma estrela vermelha junto a outro fio de Oxalá que pendurava no retrovisor. Quem sabe o aeroporto volte a se chamar Dois de Julho. Sim, a Bahia, especialmente Salvador, é negra, sensual e mística e é aí que reside a maior parte dos seus encantos.

     
     

Os ônibus para a Chapada Diamantina (Lençóis e Palmeiras) são operados pela Rápido Federal e partem da rodoviária às 7h00, 13h00, 17h00 e 23h30. Custam R$ 63,00 e demoram de seis a oito horas. Por conta de um acidente em Feira de Santana, demoramos onze. O atraso foi compensado por uma parada providencial em Itaberaba, que agora soubemos ser a terra do abacaxi. Uma caminhonete vermelha com a caçamba repleta vendia a iguaria por R$ 1,00 e espalhava o cheiro por quilômetros (exageros a parte). Um australiano que estava com a gente no ônibus não conseguia acreditar no preço e no gosto de mel. Comeu quatro em minutos.

Acabamos desembarcando em Palmeiras quase meia noite. A cidade inteira estava fechada e deserta, a exceção de uma Kombi que esperava para levar quem quisesse até o Vale do Capão por R$ 10,00. Optamos dormir por aí e no dia seguinte pedalar até as grutas que ficam a cerca de 40 km, em Ibicoara.

São poucas as opções de hospedagem. O único albergue da cidade custava mais do que pretendíamos. Depois de procurar um pouco, acabamos ficando na Pousada MPB, bastante simples, mas que oferecia quarto de casal com banheiro por R$ 40,00. O dono do lugar era uma espécie de sósia do Tommy Lee Jones e cuidava de tudo junto com a esposa e a irmã. Como avião e ônibus cansam bem mais que pedalar, desmaiamos em minutos.

Acordamos ansiosos, montamos as bicicletas e partimos. Pedalamos cerca de 40 km para chegar á propriedade particular onde estão localizadas a Gruta Pratinha e o Lago Azul. O proprietário cobra R$ 20,00 de entrada e oferece uma estrutura com restaurante, loja de artesanato e banheiros. Pagando este valor você pode nadar no rio e observar a gruta e o lago. Todas as outras opções, como flutuação no interior da caverna ou a tirolesa, são pagas a parte. Fizemos o pacote básico. O lago azul deve ser visitado por volta das três horas da tarde, horário em que o sol incide sobre a entrada da gruta e provoca um efeito maravilhoso sobre as águas.

No caminho de volta passamos pela entrada da Torrinha, também em uma propriedade particular. Por ser a maior da região, visitá-la é um pouco mais complexo. A contratação de um guia é necessária e fazer o circuito completo, que inclui a observação das famosas flores de aragonita (formações raras e delicadas), custa R$ 120,00.

Voltamos para Palmeiras e jantamos uma gostosa carne seca com mandioca cozida no restaurante Cheiro de Pimenta, com vista para a praça. Dormimos como anjos, embora um tanto quanto bêbados.

Fomos despertados por um feirante que anunciava suas ofertas em um megafone. Laranjas. - Chupa minha senhora, chupa que é doce e só faz bem, aconselhava. O conselho se misturava ao som do sino, profanamente, anunciando sete da manhã. Da janela do quarto, o largo do mercado fervia de caminhões e vendedores de fruta. O sol projetava sobre o chão de pedra sombras anguladas e definidas demais para o horário.

Inspirados, carregamos os alforjes e resolvemos conhecer um pouco mais da cidade, tendo em vista que só pedalaríamos 30 quilômetros naquele dia. Partimos depois do almoço. O caminho de terra é lindo e segue margeando o rio até a Vila de Conceição dos Gatos, onde bifurca para a direita no sentido do vale. Apesar da curta distância, uma longa subida de 10 quilômetros acaba exigindo um pouco de quem carrega muito peso. Nada muito complicado. Já era início da noite quando avistamos as luzes da Vila de Caeté Açu.

Vale do Capão

O Vale do Capão esta situado entre as Serras do Candombá e da Larguinha e tem a maior parte de seu território protegido pelo Parque Nacional da Chapada Diamantina.

A vila de Caeté Açu tem a maior infra-estrutura do vale, com mercados, restaurantes, pousadas, campings e agências de viagem (muitas com preços exorbitantes). Conta com aproximadamente 2.000 habitantes, boa parte deles estrangeiros que migraram para a região em busca de uma vida mais conectada com a natureza e longe da maluquice da sociedade contemporânea urbana. A vila transborda ofertas de terapias alternativas, artistas de circo, massagens, produtos naturais e comidas vegetarianas. Como tudo conta com seu lado negativo, o excesso de cosmopolitismo sufoca um pouco a cultura local e fica difícil perceber os cheiros da Bahia por lá. Fora alguns pratos típicos da culinária como a picado de palma, o palmito de jaca e o universalmente nordestino cuscuz, o que se vê por lá em termos culturais é, majoritariamente, o mesmo que encontramos em outras vilas parecidas e essencialmente turísticas, como São Jorge (Chapada dos Veadeiros) ou San Pedro do Atacama, lá no Chile. Da arte ao sotaque.

Um exemplo bastante interessante neste sentido é a deliciosa e imperdível feira que acontece aos domingos no largo em frente á igreja. A simplicidade e naturalidade do comércio de vegetais e quitandas, em sua maioria de produtores locais, acabou adquirindo uma aura um pouco desmesurada e publicitária de “feira de produtos orgânicos”, procurando atrair esse novo consumidor. Os produtos oferecidos são “orgânicos por natureza” e insistir em ressaltar essa qualidade acaba por roubar um pouco seu sentido original. Os produtos expostos nas janelas, cultivados nos quintais e comercializados ou mesmo trocados com outras “janelas”, dão um tom especial.

Outra estrela da produção local é o mel, que tem até certificado de qualidade e prêmios internacionais. Dezenas de apicultores, organizados em uma cooperativa treinada e qualificada, administram todo o mel extraído de mais de 1.200 colméias que é embalado e distribuído nos mercados com o rótulo de mel orgânico do capão. Apesar de delicioso, confesso que fico um pouco contrariado de não poder comprar direto do produtor. Simples assim.

Em nosso primeiro dia por lá, resolvemos deixar a bicicleta de lado e conhecer o topo da Cachoeira da Fumaça, talvez a mais emblemática atração da região. O visual é incrível, tanto do lado esquerdo quanto do lado direito (fique atento para esta opção). A trilha até o mirante da cachoeira é bastante simples e muito movimentada, descartando qualquer necessidade de guia, mesmo que tentem te convencer do contrário. Esse talvez seja o ponto mais polêmico e delicado do turismo na região. As agências de turismo e a os centros de informação recomendam guias para todos os passeios realizados por lá. Os guias estão organizados em uma associação. Como o preço de um guia credenciado é de cerca de R$ 100,00 por dia e por pessoa, tudo acaba ficando muito caro. Outro problema decorrente desta articulação é a total falta de informação, placas, indicações ou mapas confiáveis das atrações e não é raro que algumas pessoas até se neguem a explicar ou esclarecer alguma dúvida. De modo geral, as trilhas são simples e até mesmo as mais longas como o Vale do Pati são possíveis de serem realizadas sem acompanhamento com um pouco de conhecimento de navegação e equipamentos adequados. Claro que como toda atividade realizada ao ar livre oferece riscos, mas estes podem e devem ser minimizados com a experiência e o fundamental reconhecimento dos seus limites. Nunca banque o super-herói.

Importante ressaltar que o Parque Nacional da Chapada Diamantina é um parque público e restringir sua visitação somente a quem pode pagar caro é, no mínimo, contraditório. Consiste em um erro primário e bastante comum acreditar que facilitar responsavelmente a circulação das pessoas sem a necessidade dos guias, prejudicaria a estrutura planejada e acarretaria prejuízo financeiro (menos lucro) para as agências e consequentemente para a população local. A visitação com e sem guia consistem em níveis de experiência e vivências diferentes e legítimas, que tem um público característico e particular. Mesmo acabando com a obrigatoriedade muitas pessoas continuariam contratando os serviços, sendo por comodidade ou para saber um pouco mais sobre a fauna e a flora. Um exemplo bastante interessante neste sentido é o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, onde você pode optar entre as experiências e se escolher percorrer o parque sem um condutor, deverá assistir a um vídeo sobre as características da região e assinar um termo de responsabilidade. Em troca você recebe uma carta detalhada e com dicas e informações importantes sobre os circuitos e atrações.

Na manhã do dia seguinte, seguimos de bicicleta até a Vila de Bombas e de lá para o Poço Angélica e a Cachoeira da Purificação. São cerca de 10 quilômetros de estrada de terra até a vila e uma hora e meia de caminhada até a cachoeira, passando pelo poço. A trilha começa no final do povoado e deixamos nossas bicicletas estacionadas na casa do Seu Pedro, que gentilmente nos cedeu o quintal e nos apontou a direção. Atravessamos o rio três vezes seguindo uma picada bem marcada que encontra a placa que marca o início do parque nacional e da travessia “Pati – Guiné/Andaraí”. Você deve pegar a direita ao avistar a placa e seguir margeando o rio até o poço Angélica, perfeito para banho. De lá, se deve atravessar o rio e seguir pela outra margem até a cachoeira.

Como não estávamos dispostos a pagar a exorbitante quantia de R$ 2.000,00 (casal) para realizar a travessia até Andaraí (esse é o preço que os guias cobraram pelo passeio, incluindo comida e hospedagem) e tínhamos decidido fazer sozinhos na próxima manhã, aproveitamos para explorar um pouco mais a área e entender o que nos aguardava. Seguimos morro acima até o primeiro mirante para reconhecer o terreno. Encontramos por lá um casal de argentinos que fazia o caminho no sentido inverso e nos confirmou que tudo era muito simples. Uma avenida, segundo eles. Em contrapartida, encontramos um casal de franceses, bastante acostumados a caminhar que estavam indignados com a exploração e com os valores cobrados. Acabaram não conhecendo o vale e apesar da beleza incontestável, disseram que nunca mais voltariam.

Retornamos ao Capão no final do dia e passamos no mercado para comprar a comida para enfrentar o famoso trekking. Os mercados fecham durante o almoço e só reabrem as cinco da tarde, assim como todo comércio. Abastecidos e com as bicicletas preparadas, partimos pela manhã.

     
     

Vale do Pati

Situado entre as cidades de Guiné e Andaraí o Vale do Pati abriga o cenário de uma das travessias mais bonitas do planeta e que pode ser realizada em dois ou mais dias, dependendo do tempo e da disposição. Habitado por cerca de vinte famílias, aproximadamente cem pessoas em vinte e três moradias, quase todos com alguma relação de parentesco. Ocupado inicialmente durante a fase áurea do garimpo de diamantes, hoje sobrevive exclusivamente do turismo.

Como fica bem difícil fazer a trilha de bicicleta, novamente as deixamos na casa do seu Pedro, que extrapola na gentileza e na elegância. Seguimos sentido mirante, cruzando com a variante que vai para o poço e onde se localiza a placa que indica o início da caminhada. Existem três caminhos para se chegar a Ruinha, nosso destino neste primeiro dia. Não existe nenhum segredo, basta ter noção de navegação, equipamentos e estar preparado para imprevistos. Caminhando cerca de duas horas por um terreno fácil e marcado, chega-se a primeira bifurcação. Pelo lado esquerdo o caminho é mais longo e passa pela Cachoeira do Calixto. Pela direita segue sentido das Gerais do Rio Preto. Optamos pelo mais curto. Depois de cruzar o segundo córrego depois da bifurcação (Açucena) existe um rancho onde se pode pernoitar. Deste ponto, você pode seguir a trilha por dentro do vale, conhecida como caminho das mulas (bastante úmida e com vegetação mais densa) ou pegar a direita e subir o “Quebra Bunda” até o alto da serra que se estende a sua direita (caminho mais conhecido e fácil). Indo por baixo, você sai bem em frente á porteira que delimita a Ruinha. Pelo caminho de cima, continua pelo platô até a “rampa”, uma descida íngreme, quase uma “escalaminhada”, que termina atrás da igreja.

A Ruinha é uma pequena propriedade que conta com uma igreja, um mercadinho, uma cozinha de uso coletivo, banheiros e alguns quartos para alugar. Os preços por lá são os seguintes: R$ 15,00 por pessoa para acampar, R$ 20,00 pra bivacar (dormir sobre o isolante em local coberto) e R$ 25,00 o colchão. Se quiser usar o gás da cozinha, R$ 8,00 por dia. O mercado oferece macarrão, algumas frutas e legumes, ovos e bolachas, além de cerveja (R$ 6,00 a lata). João, proprietário do lugar, construiu toda a estrutura para servir ao turismo, que agora é sua única fonte de renda. Entre goles de cachaça com banana e a escuderia do Seu Nono, um dos mais velhos moradores da região, nos contou que no auge do cultivo do café o Pati chegou a ter uma população de mais de 2.000 pessoas. As sucessivas crises na lavoura cafeeira acabaram promovendo uma intensa migração para os centros urbanos mais próximos. O golpe final veio no fim da década de sessenta, com o projeto do governo federal conhecido como Programa de Erradicação do Café. Na “tentativa” de evitar o colapso econômico da região, passou a incentivar a utilização de novas variedades da planta, oferecendo treinamento e facilitando o crédito dos pequenos agricultores junto ao Banco do Brasil. O projeto foi um fracasso em todos os sentidos e os agricultores, endividados e sem alternativa, acabaram perdendo as terras para o banco, que na impossibilidade de vendê-las as doou para o IBAMA.

Os poucos moradores que resistiram, viram qualquer possibilidade de subsistência independente do turismo evaporar com a criação do parque nacional em 1985, proibindo qualquer tipo de cultivo ou criação de animais nas áreas protegidas. A falta de diálogo e entendimento entre as populações nativas e a direção dos parques nacionais é um problema que se repete por todo território brasileiro. Por mais que se façam esforços para desenvolver planos de manejo sustentável, o que se vê ainda é uma enorme carência de projetos funcionais e relevantes.

Dentro do vale, é possível realizar uma série de caminhadas incríveis, como o Cachoeirão (queda de 230 metros que pode ser avistada por cima ou por baixo), a subida do Morro do Castelo e a Cachoeira dos Funis. A melhor maneira de explorar a região é pernoitando na casa dos poucos moradores. A maioria das casas oferece pernoite com jantar e café da manhã por R$ 90,00. Do vale é possível seguir até Guiné, aproximadamente quatro horas a partir da Ruinha, ou percorrer cerca de 20 quilômetros em uma caminhada deslumbrante até Andaraí. Pode se dividir o percurso em dois dias, dormindo uma noite na casa do Jailson, em frente ao Morro do Castelo, em um lugar conhecido como Prefeitura. Como tínhamos que resgatar as bicicletas, fizemos tudo em um dia, rápido e sem peso, e retornamos caminhando até a Ruinha.

Retornamos ao Capão pelo caminho tradicional pelas Gerais do Rio Preto e descemos pelo famoso Quebra Bunda. O trajeto pode ser percorrido em cerca de seis horas e oferece um visual lindo do vale visto do alto.

Capão – Águas Claras – Pai Inácio

Do Vale do Capão seguimos com as bicicletas carregadas por uma trilha que corta por dentro do parque e termina na estrada em frente ao Morro do Pai Inácio. Começamos a pedalar já na hora do almoço. Nosso plano era seguir até a Cachoeira de Águas Claras, acampar e seguir na manhã seguinte. Retornando sentido Conceição dos Gatos, você deve passar pela entrada da Fumaça e adiante, depois de um pequeno comércio, você deve pegar uma saída á direita. A melhor coisa a fazer é perguntar por lá. Depois são cerca de trinta minutos de pedalada até uma placa que marca o início do percurso.

Logo no começo, quando cruzávamos o primeiro de muitos rios que cortam o caminho, encontramos um casal de ciclistas que vinha do sentido oposto e nos alertou sobre a dificuldade de pedalar com os alforjes em boa parte do trajeto. Eles tinham razão. A trilha é, em sua maioria, um “single track” apertado e técnico, delicioso para bicicletas descarregadas. Como as dificuldades só contribuem para valorizar o passeio, o visual compensa cada vez que tivemos que empurrar as bicicletas...

Chegamos á Águas Claras três horas depois e montamos nossa barraca em uma área demarcada. Paraíso. Não havia alma viva por lá e a sequência de poços para banho que se formam entre as pequenas quedas é sensacional. Um jantar recompensador com macarrão, cebola, calabresa e creme de leite.

Muita atenção para montar e desmontar o acampamento por aqui. É expressamente proibido fazer fogueiras, por mais que você saiba de todos aqueles conhecidos procedimentos para evitar que o fogo se espalhe. A região é muito seca e incêndios e queimadas são comuns por aqui e trazem um prejuízo irreparável para o meio ambiente. Carregue de volta todo o seu lixo, incluindo o papel higiênico usado. Se tiver que ir ao banheiro, caminhe o máximo que puder para longe do curso d’água e da trilha. Enterre todos os dejetos. Você deve deixar o lugar exatamente do jeito que você encontrou e mesmo resíduos considerados orgânicos devem ser levados. Quando chegamos por lá, um monte de restos de cuscuz estava jogado na beira do rio, o que atraia uma enorme quantidade de formigas e inviabilizava acampar por perto, além do mau cheiro. Não existe pé de milho por ali e qualquer elemento de fora causa um evidente desequilíbrio.

O dia amanheceu lindo, com o sol iluminando o Morrão bem a nossa frente. Tomamos café com abacaxi (carregado a duras penas) e acabamos ficando até uma hora da tarde nas piscinas que cercavam luxuosamente nossa barraca. Durante muitas viagens aprendi que o maior erro que podemos cometer quando estamos viajando é se apegar demasiadamente ao tempo e ao planejamento. Se tudo correu exatamente como você planejou, alguma coisa deu errado. Acabamos partindo um pouco tarde demais do acampamento, mas infinitamente satisfeitos.

Quando avistamos os primeiros carros na estrada que seguia para Lençóis ainda de dentro do parque, a primeira vontade foi a de voltar correndo (pedalando!) para trás. Refeita a calma, em meia hora estávamos no posto de gasolina que fica na estrada, um quilômetro antes do inicio da subida para o Pai Inácio. A demora no paraíso cobrou seu preço, que eu pagaria de novo se fosse necessário, e como eram mais de quatro e meia da tarde, não pudemos subir no famoso mirante aquele dia. O acesso fecha às 17h. Por isso, fique atento: para se ter a experiência completa do visual que o topo do Pai Inácio proporciona, o céu deve estar limpo e o melhor horário é o que permite assistir ao por do sol lá do alto. A entrada custa R$ 5,00.

Depois de um tempo pensando no que deveríamos fazer, decidimos seguir pelo asfalto até a cidade de Lençóis, cerca de 25 quilômetros adiante. Outra opção era seguir por uma trilha por dentro do parque, cortando a região conhecida como Barro Branco, que sem dúvida seria mais bonita, mas nos custaria mais algumas horas de single track, carregados e no escuro.

     
     

Lençóis

Um dos motivos que nos fez optar por seguir naquele mesmo dia até Lençóis foi que o nosso dinheiro em espécie (rs) havia acabado depois de mais de dez dias. Ela é a única cidade da região que conta com caixas eletrônicos e a maioria dos estabelecimentos fora da cidade não aceita cartão. Portanto, planeje bem seus gastos.

Logo que passamos da placa que marca a entrada da cidade, percebemos que algo estava errado. A cidade estava inteira sem energia elétrica e a previsão de volta não era nada otimista. Não que tenha medo de escuro e talvez até ache mais confortável, mas a falta de energia significava que aquele jantar acompanhado de cerveja gelada pago no cartão teria que esperar um pouco mais.

Chegar á cidade, ainda mais no escuro, foi um choque a primeira vista. Bastante diferente dos outros lugares que visitamos, um mar de turistas tomava o centro antigo repleto de restaurantes. Mesas ocupavam as ruas de pedra e clientes eram servidos a luz de velas. Apesar da beleza e do inusitado da cena, incontestáveis, a imagem acabava por alimentar certo preconceito que carregávamos sobre a cidade sem ao menos conhecê-la. Alguns amigos tinham nos dito que Lençóis era uma cidade grande, essencialmente turística e sem o charme e a naturalidade do Capão ou do Pati. Fomos deliciosamente surpreendidos.

Na manhã seguinte, energias retomadas, resolvemos conhecer algumas cachoeiras que não exigissem muito das nossas pernas. Optamos por visitar o circuito Poço Halley, Salão das Areias Coloridas, Cachoeirinha e Cachoeira da Primavera, todos subindo o rio Lençóis em direção ao bairro “Serranos”. O passeio é bastante tranqüilo, embora os guias insistam em cobrar R$ 80,00 e enumerar os perigos mais variados. Fizemos sozinhos, em poucas horas e sem nenhum problema.

Logo que saímos do camping, mesmo envoltos em toda aquela confusão turística, a Bahia dava suas caras no casario antigo, nas pessoas sentadas a beira do rio, nos cheiros e na fala. Quanto mais nos distanciávamos do centro, mais a cidade fervia viva, verdadeira e repleta de referências e cores autênticas.

A impressão ganhou força quando atingimos o começo do caminho que leva as cachoeiras. Logo no início do rio, que escorrega sobre as pedras cuidadosamente esculpidas, coloridas através de milhares de anos e que formam uma espécie de mosaico impressionante, dezenas de mulheres lavavam suas roupas e as estendiam sobre a margem. Outras que encontramos pelo caminho, carregavam carrinhos de pedreiro cheios de trabalho. As roupas do vizinho, da pousada, dos restaurantes. Carybé. O preconceito escorria por terra, junto com a água. Independente dos preços um tanto quanto caros e do turismo massivo, a cidade carrega nos seus prédios e no seu povo uma verdade e uma história que enchem os olhos e que acabaram sendo dissolvidas em outros recantos. Além da espetacular beleza natural (e tudo que visitamos contribuiu para comprovar essa característica) a cidade vibra e vale a visita.

Outra atração bastante popular e de fácil acesso é o Ribeirão do Meio, alcançado em uma hora de caminhada a partir do centro de Lençóis e oferecendo aos visitantes uma bela cachoeira e poço para mergulho. Seguindo paralela ao caminho do ribeirão está a trilha que leva a Cachoeira do Sossego, mais complicada e exigente, cerca de duas horas a mais de caminhada.

Marimbus

No dia que antecedia nossa volta para São Paulo, resolvemos pedalar pela antiga estrada Lençóis Andaraí, que agora só permite a passagem de veículos 4x4 e, evidentemente, bicicletas. Percorremos cerca de 20 quilômetros até a foz do Rio Garapa, atravessando o Ribeirão de Baixo, o Rio Capivari, Capivara, o Rio Roncador, (este último e sua foz o mais bonito de todos), com ótimas paradas para banho e paisagens impagáveis. O caminho é feito quase todo tempo por dentro do parque e apresenta uma realidade geográfica bastante diferente da que se vira até agora, com grandes áreas alagadas, espécies de pântanos conhecidos por aqui como Marimbus.

A estrada, que tem sua geografia marcada por inúmeros sinais de exploração de diamante, lavras e garimpos abandonados, muita areia carregada por antigas dragas e outras marcas, margeia duas comunidades remanescentes de antigos quilombos, onde é possível comer e conhecer uma derivação do candomblé conhecida como Jarê, original da região. Para se visitar a comunidade quilombola do Remanso é necessário ainda percorrer duas horas de canoa a partir da foz do Roncador. Outra opção é seguir pela estrada que parte de Lençóis e segue paralelamente aos limites do parque.

Saideira

Durante a noite, enquanto nos acabávamos em uma das mesas dispostas pela rua, que agora não tinham mais velas, devorando um bodó (prato tradicional, espécie de cozido de carnes com banana), assistíamos a uma procissão de mochileiros, guias e comerciantes. Todos um tanto quanto afoitos. Dona Joaninha, que do alto dos seus quase 60 anos nos servira o café por volta das 7h da manhã, ainda se ocupava do jantar no restaurante da frente. Sentados conosco, alguns guias dividiam experiências e trocavam idéias sobre como equalizar as visitas guiadas e autônomas. A Bahia fala por si.

Gastamos cerca de R$ 50,00 por dia e por pessoa, incluindo hospedagem, alimentação e passeios. Vale cada centavo. Deixamos o restaurante e caminhamos no escuro até o alto do rio lá Lençóis, lá no “Serranos”. A cidade esparramava lá em baixo, silenciosa daqui. Era dia 29 de julho e uma cinematográfica chuva de meteoros cortava o céu perfeito. Além de cachoeiras que desafiam a gravidade e sobem, a chapada conta ainda com objetos celestes voadores. Disseram que eram vistos em todo mundo, mas eu acho que é mentira. É coisa de céu baiano, misterioso. E por mais que não tenha preço, é de graça.

Boas caminhadas e aguardo comentários,
Ernesto Stock

 
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