Extremos
 
COLUNISTA THOMAZ BRANDOLIN
 
Brooks Range - a cordilheira esquecida do Alaska
 
texto: Thomaz Brandolin
8 de julho de 2013 - 9:50
 
Portage da canoa pela vegetação da tundra, até a beira do rio Noatak. Ao fundo o Monte Igikpak (2.593 metros), onde nasce o rio. Foto: Thomaz Brandolin
 
PREFÁCIO CAPÍTULO 1 CAPÍTULO 2 CAPÍTULO 3
 
  Thomaz Brandolin  

“Não volto nunca mais naquele lugar maldito! Uma chuva me encharcou assim que desci do avião e assim fiquei durante semanas, até o dia de ir embora! Tem um dos piores climas que já vi. Só consegui me secar quando voltei para a civilização, um mês depois!”.

Foi assim, na primavera do distante 1986, quando estava nas encostas geladas do Monte McKinley, no centro-sul do Alaska, que fui “apresentado” à Brooks Range por um exaltado alpinista americano. Só voltaria a “ouvir”, ou melhor, a ler sobre ela em 1993, quando li um relato na revista National Geographic de um americano que, acompanhado de seu cão, cruzou toda a cordilheira, de comprido(!!), a pé e de canoa, numa jornada de 1600 km, que levou mais de um ano e quase lhe custou a vida. Depois de caminhar mais de 1000 km, ele finalizou a travessia navegando toda a extensão do rio Noatak, que nasce no coração da Brooks, segue para oeste e deságua no mar. Fiquei tão maravilhado com seu relato, e admirado com sua façanha, que decidi que eu “tinha” que conhecer aquele lugar. A partir dali passei anos sonhando, pesquisando, planejando rotas, comprando mapas, fazendo orçamentos, contatando pessoas, devorando livros, garimpando fotos. Para ser mais exato, foram 19 anos sonhando até chegar ali. 19 anos! Sabe o que é isso?

A imensa cordilheira Brooks forma um arco, no sentido leste-oeste, no norte do Alaska, uns 200 km acima do Círculo Ártico. É considerada o lugar mais inóspito e intocado de toda América do Norte e dos mais preservados do mundo. Continua tão selvagem como em tempos imemoriais, quando era habitada por esquimós em séculos distantes. Vestígios indicam que os primeiros homens chegaram ali há 11 mil anos!

Hoje está dentro do imenso Arctic National Wildlife Refuge (79 mil km²) a leste, no Parque Nacional Gates of the Arctic (40 mil km², quase uma Suiça) no centro, e no Noatak National Preserve (26 mil km²) a oeste. Nenhum desses parques oferece qualquer estrutura, mínima que seja. Isto é, não existem trilhas, placas, cabanas, campings, lojinhas, nem conexão para enviar fotinhos pro Facebook.......nada!

Para ir de um vale a outro, muitas vezes é preciso transpor escarpados passos de montanha, cascalhentos e perigosos, às vezes cobertos de neve, mesmo no verão. E, claro, fazer travessia de rios, vários rios, sem uma pontezinha sequer. A vegetação da tundra é irregular, complexa e encharcada em vários pontos, dificultando o avanço; e o clima, como já mencionado, é instável, carrancudo e hostil. É por isso que a região recebe raríssimos visitantes a cada ano – que encontram apenas uma abundância infinita de espaço, luz e silêncio.

     
     

De certa forma, é bom que existam esses obstáculos. A tundra do Ártico é um ambiente tão frágil que, em várias partes, os centímetros de mata que pisoteamos com nossas botas podem levar anos para se recuperarem. E qualquer resto de comida que enterramos pode levar décadas para se decompor.

A Brooks é também habitat natural de animais de grande porte, como ursos, lobos e mais de meio milhão de caribous (espécie de alce), que dividem tranquilamente o espaço com uma infinidade de animais menores e muitos pássaros. Caminhar ou remar, e ter a sorte de ver um lobo aqui e um urso acolá, é uma das experiências mais fascinantes daquele lugar. Dizem os guarda-parques que é mais fácil você encontrar um urso por lá do que outra pessoa (bem, foi o que aconteceu comigo!). Com o detalhe que não tem nenhuma árvore para você subir se precisar fugir deles.

Coberta por neve e temperaturas polares boa parte do ano, é no curto verão – junho a setembro - que a vida explode na região da Brooks. É quando o ambiente se enche de luz e milhões de flores renascem; os ursos e outros animais saem das suas tocas em busca de comida e calor, os caribous e vários pássaros migram, e os rios se descongelam e voltam a correr com vigor, repletos de peixes. No verão as temperaturas ficam (quase) sempre acima de zero, os ventos são mais amigáveis, as chuvas ocasionais tornam a vegetação mais verde, o sol é uma delícia e os dias têm 24 horas de luz. Devidamente comemorados pelos mosquitos, que não dão trégua.

Noatak

As belas montanhas da cordilheira são berço de vários rios que nascem das suas encostas, e estes são as únicas “estradas” para se explorar a região. O mais importante deles é o justamente o Noatak, considerado o mais remoto do Alaska, pois percorre um trajeto de mais de 500 km sem passar por uma vila sequer, exceto perto do final, quando passa pelo vilarejo esquimó Noatak, pouco antes de desaguar na Baía de Kotzebue, no Mar de Chukchi, perto do Estreito de Bering.

Embora longo e remoto, uma característica desse rio é que é “fácil” navegar por ele. É classificado pelos canoístas como Nível I, com passagens (corredeiras) de Nível II, ideal para principiantes ou, pensei eu, para pessoas que navegam sozinhas.

     
     

Para quem gosta – como eu - de ser “largado” em lugares desertos e praticamente inacessíveis, para ver o que quase ninguém viu, ir para a Brooks e descer esse rio seria um prato cheio!

Como em muitos lugares do Alaska, que quase não tem estradas, os vales e rios da Brooks só são acessíveis por pequenos (diria minúsculos) aviões e hidroaviões fretados. O que encarece bem a empreitada. Como em milhares de quilômetros quadrados não existe um só guarda parque para pedir auxílio, para viajar e sobreviver ali é preciso ter experiência em lugares selvagens, e total autonomia em alimentos, combustível, vestimentas e equipamentos. Que precisam ser carregados nas costas ou num bote a remo. Se algo der errado, a única maneira de sair dali é usando um telefone via satélite para pedir ajuda ou chamar um avião. Mas telefones usam baterias, que se esgotam no frio. O que requer um painel solar. O mesmo acontece com o GPS e as câmeras fotográficas. Enfim, não é um lugar para principiantes.

No quesito segurança, a maior diferença desta expedição em relação às anteriores, quando eu tinha menos idade e menos responsabilidade, é que desta vez eu tinha uma filha. A Julia, amor da minha vida, nascida em 2003. Então prever, mensurar e encarar perigos tomou outra dimensão no projeto. Não me permitia mais enfrentar determinadas situações que pusessem a minha vida em risco. Segurança passou a ter um peso maior na empreitada. E segurança tem volume e “pesa” bastante, no orçamento e na mochila, dificultando meus deslocamentos.

O escopo da expedição foi surgindo aos poucos. Estava claro que nessa primeira vez eu iria sozinho. E que, sem companhia, a melhor maneira de explorar a região seria descer o Noatak, numa canoa. Para quem não sabe, viajar de canoa é reviver a saga dos primeiros exploradores. É “fluir” pelo meio ambiente em silêncio, sem causar impacto, na velocidade dos braços, e, melhor ainda, com ajuda da correnteza. É aprender a “ler” um rio, suas curvas e corredeiras. É não precisar carregar mochilas pesadas. É ter a chance de acampar em praias paradisíacas, longe dos mosquitos. É multiplicar por 10 a capacidade de carga, permitindo, por exemplo, me dar ao luxo de, pela primeira vez na vida, levar meu material de desenho e pintura para uma expedição. Na era da fotografia instantânea e digital, retratar calmamente uma paisagem no papel é uma verdadeira higiene mental, e me daria uma oportunidade rara, de “sentir” o lugar numa dimensão que eu jamais experimentei.

Mas nem tudo eram flores. Eu tinha algumas limitações. Dificilmente teria mais que uns 40 dias para fazer a viagem, e meus recursos financeiros eram limitados.

 
Lobo que tentou, mas não conseguiu pegar a caribou, ao lado do meu acampamento. Foto: Thomaz Brandolin
 

Ando devagar, porque já tive pressa

A solução, claro, seria buscar um patrocinador. Então, aqui, surgiu uma questão, digamos, filosófica. Embora até tenha aventado a hipótese, decidi que não queria o apoio de empresas! Ao contrário dos projetos anteriores, como a que liderei no Monte Everest, ou quando fui a pé até o Polo Norte, ou quando escalei montanhas andinas, onde havia um objetivo claro e específico, que exigia uma “performance”, que geraria retorno de mídia para os patrocinadores; desta vez eu queria degustar com calma o lugar.

Queria percorrer a região aos poucos, sem a menor pressa, me integrando ao ambiente. Observando detalhes. Eventualmente saindo do caminho principal para explorar cantos escondidos, totalmente despreocupado em chegar a algum lugar específico ou me impor distancias a serem percorridas. Nem ter a obrigação de ter que gerar “fatos” midiáticos, ou estar conectado pela internet (argh!!) para pessoas poderem me acompanhar.

Pelo contrário, não tinha a carência afetiva de ter alguém me “acompanhando”.

Queria ter paz de espírito e liberdade de parar para caminhar, pescar, ler, fotografar ou pintar minhas aquarelas. Ou subir uma montanha não planejada. Queria tranquilidade para degustar silêncios, saborear cheiros, conversar com o vento, desafiar chuvas e curtir momentos de solitude, parado no fundo de um vale ou numa praia deserta, eventualmente não fazendo absolutamente nada! Quem iria patrocinar uma expedição assim?

Mais que explorar uma região remota do planeta, essa viagem seria uma oportunidade para eu exercitar minha coragem e meu auto controle. Aprender a gerenciar minha ansiedade, aguçar os 5 sentidos e refinar minha sensibilidade. Reconectar-me com a natureza e comigo mesmo. Desplugar-me do mundo “moderno” e viver, por vários dias, como os animais da região, perambulando quieto, livre, leve e solto, por onde eu quisesse. Encarar meus medos, e mergulhar fundo em meus pensamentos e emoções. Precisava também resgatar uma calma interior, há muito perdida na vida urbana, e renovar minhas baterias existenciais.

 
Portage da canoa pela vegetação da tundra, até a beira do rio Noatak. Ao fundo o Monte Igikpak (2.593 metros), onde nasce o rio. Foto: Thomaz Brandolin
 

É, podia ser um romantismo ingênuo, mas para mim não fazia sentido fazer uma viagem dessas mantendo vínculos comerciais com uma empresa. Por isso, passei anos juntando o que precisava. Assim, decidi que descer o Noatak, até onde eu bem entendesse, e explorar os arredores já seria algo fascinante. Não teria que carregar mochilas pesadas durante semanas a fio, caberia no meu orçamento, me daria condições de desvendar alguns “segredos” da Brooks, e oportunidade de contemplar cantos inexplorados dentro de mim mesmo. O que mais eu podia querer?

Assim, um dia parei de sonhar, juntei minhas coisas e.....parti.

Namastê!
Thomaz Brandolin

comentários - comments