Extremos
 
COLUNISTA ROBERTO VÁMOS
 
O surreal Tolar Grande e o sagrado vulcão Llullallaico
 
texto e fotos: Roberto Vámos
1 de novembro de 2016 - 9:00
 

Ojos del Mar - Tolar Grande | Foto: Roberto Vámos
 
  Roberta Abdanur  

Tolar Grande é uma pequena aldeia literalmente perdida no meio do nada no norte da Argentina, a 3.500 de altura ao lado do terceiro maior salar do mundo. O vilarejo mais perto, Pocitos, que tem apenas 20 famílias morando em um punhado de casas, fica a 84 Km. Depois de Tolar Grande não há mais nada por uns 300 Km de caminho de pedra.

Para chegar lá, tomamos a Ruta 51 saindo de Salta e subimos a cordilheira até San Antonio de los Cobres, onde passamos a noite. Depois continuamos em direção à fronteira do Chile, compartilhando a estrada com um grande número de caminhões carregados de lítio andando a mais de 100 por hora numa estrada de terra cheia de abismos. Nós, por precaução, andávamos apenas entre 60 e 80 km por hora. Mas quando pegamos o desvio para Pocitos, não havia mais ninguém na estrada. Éramos nós, as vicunhas, as pedras e o calor intenso do início da tarde.

Ao chegarmos a Pocitos, nos apontaram o caminho para Tolar Grande. Os primeiros 20 quilômetros são uma reta atravessando o Salar de Pocitos. Mas depois.... Depois você chega em Los Colorados, formações de arenito vermelhos e laranja que mais parecem uma paisagem de Marte. Nunca vi nada igual. Deu vontade de ficar no meio dessa paisagem a tarde inteira, mas havia ainda muito caminho pela frente e precisávamos chegar a Tolar Grande antes do pôr do sol. Aliás, toda a paisagem dessa região é absolutamente surreal: um vasto deserto repleto de cores que mais parece ter saído da imaginação de um escritor de ficção científica.

Continuamos no caminho sem cruzar com ninguém. Após muitas curvas e subidas e descidas, a aldeia de Tolar Grande surgiu no horizonte como um pequeno aglomerado de casas no meio de um imenso mar de pedras e sal. É impressionante como o ser humano conseguiu ocupar, sobreviver e até prosperar nesse ambiente tão árido e inóspito. Aqui é quente durante o dia, congelante à noite e desprovido de água e oxigênio. No entanto, esta região é ocupada há centenas, provavelmente milhares de anos por povos que tinham como único recurso natural as pedras e animais que encontravam.

Tolar Grande hoje ainda existe por ser um local de interesse estratégico para o governo argentino - fica perto da fronteira com o Chile e quase todos os adultos são hoje funcionários da prefeitura. Mas antes esta aldeia já foi maior. Aqui existia uma estação e oficina de trens, pois havia uma estrada de ferro que atravessava o altiplano até o Chile. Também havia uma mina grande de enxofre - La Casualidad - a 100 km de distância, e o caminho até lá passava por Tolar Grande.

Ojos del Mar - Tolar Grande. Foto: Roberto Vámos   A paisagem surreal de Tolar Grande. Foto: Roberto Vámos
   

Com uma população de aproximadamente 3.000 habitantes, a pequena Tolar Grande está tentando se reinventar através do turismo. Uma cooperativa de turismo local reúne moradores que transformaram suas casas em hospedarias e refeitórios. Procuram atrair os turistas que buscam aventura e paisagens insólitas, completamente fora do comum.

Encontramos alojamento em uma casa de uma nativa e fomos fotografar o pôr do sol no Salar de Arizaro - terceiro maior salar do mundo. Para tanto nos recomendaram ir a um lugar chamado Caipe - um depósito de combustível abandonado a meros 70 km de distância!!! Chegando lá, o vento estava tão forte que derrubou minha máquina fotográfica montada no tripé. A vastidão deste lugar é arrebatadora.

No dia seguinte visitamos os Ojos del Mar, três poços de água azul no meio do salar a 3 km de Tolar Grande. Ao voltar para a aldeia, visitamos o chefe da comunidade, Flávio, que além de ter uma hospedaria, é guia de alta montanha, tendo já subido o Llullallaico, vulcão sagrado para os Incas e os Kolla, que é a etnia da maioria dos habitantes nativos do norte da Argentina. Combinamos de ir com ele até a base do Llullallaico, a 4.800 metros de altitude e aonde só se chega em veículos 4x4 parrudos.

À tarde retraçamos parte da estrada até Pocitos, aproveitando para parar muitas vezes para fotografar na linda luz dourada do entardecer. A última parada foi no topo de um morro de onde se tinha uma ampla visão de uma planície recheada de arenitos vermelhos e formações rochosas que remetem a outros planetas.

A paisagem surreal de Tolar Grande. Foto: Roberto Vámos   A mina abandonada de La Casualidad. Foto: Roberto Vámos
A paisagem surreal de Tolar Grande. Foto: Roberto Vámos   A paisagem surreal de Tolar Grande. Foto: Roberto Vámos
   

Foi ali que a Guida se deparou com um puma. Eu tinha ido armar minha câmera a uns 300 metros do nosso carro, e por causa do forte vento não ouvia seus gritos de alerta. Infelizmente, ela não conseguiu tirar foto do bicho, que a ficou espreitando por alguns minutos antes de desaparecer entre as pedras em busca de caça mais interessante.

Llullallaico – a montanha sagrada

Saímos cedo em direção à uma das montanhas mais sagradas da América do Sul, o Vulcão Llullallaico. Com 6.739 metros de altitude, este vulcão era reverenciado pelos Incas e outros povos que habitam e habitaram oaltiplano Andino. Em seu cume foram construídos vários abrigos, onde inclusive foram encontradas as três múmias mais bem preservadas do mundo. Trata-se de três crianças que foram sacrificadas como oferendas ao deus sol pelos Incas. Por causa do intenso frio, do pouco oxigênio e da absoluta falta de humidade no topo do Llullallaico, seus corpos ficaram tão bem preservados que parecem que morreram há poucas horas. As múmias estão hoje no Museu de Arqueologia de Alta Montanha em Salta.

O caminho até o Llullallaico é longo e lento. Primeiro são 130 km de estrada de terra até a abandonada mina de enxofre La Casualidad, um percurso estreito repleto de inúmeras paisagens espetaculares, mas quase sempre à beira de um precipício. A descida até a mina parece então uma verdadeira aventura off-road. Durante mais de 30 anos esta mina abrigava uma verdadeira cidade com milhares de habitantes, escolas, hospital, etc., mas foi fechada em 1979 e agora é uma cidade fantasma, habitada apenas por vicunhas e pássaros.

Depois de La Casualidad a estrada se transforma em praticamente umatrilha - íngreme com pedras altas e pontudas e muita areia e pedrinhas soltas que nos obrigaram a usar a tração 4x4 para não derraparmos e vencermos as subidas. Passamos na ida rapidamente pelo Salar de Llullallaico, pois nosso guia Flávio estava apurado para chegar ao lugar do acampamento base antes que os tradicionais ventos da tarde começassem a soprar com muita força. Depois de passar o salar, começamos a subida da face leste do Llullallaico. Tratava-se de uma grande rampa de pedras onde não havia estrada - seguimos as trilhas feitas por outros carros no passado até chegarmos a 4.930 metros de altitude. Alí paramos para montar acampamento.

Los Colorados - Paisagens marcianas no caminho a Tolar Grande. Foto: Roberto Vámos   Na base do Llullallaico. Foto: Roberto Vámos
Paisagens marcianas no caminho a Tolar Grande. Foto: Roberto Vámos   Paisagens marcianas no caminho a Tolar Grande. Foto: Roberto Vámos
   

O vento já estava forte e incomodava muito. Como o pôr do sol nessa época do ano é só por volta das 8 da noite, ainda tivemos bastante luz e calor para montar as barracas e cozinhar nosso jantar. Eu comecei a sentir muita mal de altitude, com uma forte dor de cabeça e náusea. Felizmente, já estive muitas vezes em altitudes como essa e conheço meu corpo - sabia que iria reagir. Tomei duas neosaldinas e fui me deitar, até porque o vento estava tão forte que inviabilizava qualquer outra atividade. E com o pôr do sol a temperatura rapidamente despencou.

Acordei pouco antes da meia noite com o silêncio: o vento havia parado e minha dor de cabeça desaparecera. Botei a cabeça para fora da barraca e mergulhei num mar de estrelas. Flávio roncava alto e Guida tentava dormir no frio, mas eu não tive dúvidas. Cacei minhas botas e fui montar meu equipamento fotográfico enquanto a lua minguante nascia e iluminava o Llullallaico. Fiz várias fotos e voltei sorrindo para a barraca - Pachamama estava ajudando.

Acordamos às 6 da manhã do dia seguinte, ainda no escuro. Enquanto Guida e Flávio faziam e comiam café, fui trocar baterias e cartões de memória e montar a filmadora e o equipamento fotográfico para registrar o espetáculo do amanhecer. Céu limpo, pouco vento, muito frio, clarão no leste e ansiedade pelos primeiros raios de sol a bater no Llullallaico. Foi um amanhecer lindo, mas rápido. Logo desmontamos o acampamento e descemos até o Salar de Llullallaico, onde paramos para observar os flamingos e fotografar as cores das algas e plantas que sobrevivem neste ambiente. Depois voltamos direto para Tolar Grande, parando rapidamente só para comer.

Salar de Llullallaico. Foto: Roberto Vámos   Vulc�o Llullallaico. Foto: Roberto Vámos
   

Nem ontem nem hoje cruzamos com uma viva alma em todo o caminho. Ou seja, se algo tivesse acontecido com nosso carro, teríamos que nos virar por conta própria - exatamente como faziam os viajantes e exploradores do passado. Nosso Duster passou com louvor por este teste, apesar desse caminho que percorremos ser recomendado apenas para veículos mais altos e mais bem equipados. Valeu a pena? Se valeu! Aventura por centenas de quilômetros de paisagens sem igual no resto do mundo.

Roberto Vámos
www.robertovamos.com

 
comentários - comments