Extremos
 
COLUNISTA PEDRO ALEX
 
Tragédia na Cordillera Blanca
texto: Pedro Alex
9 de janeiro de 2019 - 16:40
 

Ruben Dario
 
  Pedro Alex  

Conheci Ruben Dario em outubro de 2015. Tinha acabado de chegar em Huaraz para ficar apenas quatro dias e buscava informação para escalar na Casa de Guias. Ele estava lá, alto para os padrões peruanos, veio conversar comigo. Me explicou o preço dos serviços e se mostrou a disposição para qualquer coisa. Logo depois sai para tomar um café e encontrei com ele novamente na sua agencia. Sentamos, ele trouxe um mapa e me mostrou as diversas possibilidades de trekking e escaladas “fáceis”. Disse que no outro dia estava saindo para guiar um cliente no Matteo (5150 m.s.n.m.), cume da parte baixa do nevado Contrahierbas e me convidou para ir junto por um bom preço. Eu estava a apenas um dia na cidade, com zero de aclimatação (tinha acabado de chegar de Lima, nível do mar). Não me sentia confortável para escalar, mas fiquei remoendo aquilo na cabeça.

Mais tarde procurei ele e disse que iria. Ele trouxe vários equipamentos para eu provar. Incluiu no pacote: calça e jaqueta impermeável, botas duplas, crampom, piolet, cadeirinha, capacete... tudo. Combinamos às 5 da manhã do outro dia na frente da sua agência. Passei uma noite infernal com febre, mas decidi ir mesmo assim. Um carro nos esperava. Fomos em 4: o motorista, ele, eu e um basco. O carro serpenteava subindo rumo a Punta Olimpica, o túnel que dá acesso a escalada. Eu não me sentia nada bem. Ele me deu algumas folhas de coca, nevava muito. Nos equipamos e começamos a subir pela morena. Eu fui piorando cada vez mais. Estava muito difícil acompanhar ele e o basco. Quando chegou no pé do glaciar, paramos para colocar o crampom. Disse a eles que não iria, pois estava muito mal aclimatado. Deitei no chão, a neve caia na minha cara. Lembrei da minha avó que tinha acabado de morrer. Pensei que se estava ali era para rezar por ela. Quando Ruben Dario disse que era “apenas” 30 minutos o cume dali, resolvi que iria tentar. Ele sorriu e disse “vamos”!

Eu avançava devagar. Dois passos e tinha que parar para respirar. O basco estava incomodado. Teria subido mais rápido se eu não estivesse. Chegamos ao cume. Um par de fotos, o barulho assustador das avalanches caindo no vale abaixo, descendo das encostas do Contrahierba. Começamos a descida. Ele sempre atento e fazendo nossa segurança. Em um trecho colocou um parafuso de gelo para garantir. Quando chegamos na morena de novo, o basco se apressou em descer. Eu estava completamente bêbado pela altitude, com dor de cabeça, me sentia muito mal. Ele amarrou a corda na minha cintura e desceu me segurando, para que não corresse o risco deu escorregar e cair no precipício.

Na volta, deixamos o basco e ele me convidou para almoçar um chocho (uma salada de feijão branco típica do Peru). Chegamos no bar e estava mais dois guias que ele conhecia. Sentamos e tomamos uma caixa de cerveja, demos muito risadas. Voltamos e fomos jantar frango. Depois dessa vez eu voltei mais 3 vezes para Huaraz. Sempre que chegava lá ia na sua agência e saímos para tomar cerveja. Sempre alegre, como Alvaro Walendowsky, amigo que fiz Huaraz, bem salientou. Seu sorriso e seu carisma era algo que contagiava. Gostava de uma piada e de uma cerveja.

Ele era guia experiente da Casa de Guias (certificado internacionalmente), também era guia de Rafting. Escalava montanhas de nível extremamente técnico. Tinha levado diversos clientes a cumes difíceis. Numa dessas nossas cervejas me contou que foi ele que começou a explorar o Matteo comercialmente, pois era uma forma fácil de levar clientes inexperientes para uma experiência de alta montanha. Quando fui a última vez em Huaraz, setembro de 2017, essa montanha tinha se tornado sua principal atividade e, consequentemente, seu ganha pão. O Matteo (5150 m.s.n.m.) não apresenta grandes dificuldades técnicas, mas nada é simples na Cordillera Blanca, sobretudo nessa altitude.

Ontem recebi a noticia que Dario estava guiando um grupo de quatro jovens espanhóis (todos com 26 anos) e sofreu um acidente na descida. Um dos clientes escorregou e fez desprender toda placa de neve que eles estavam em cima, provocando uma avalanche e levando eles diretamente para um precipício de 200m de queda. Conversei com Daniel Lliuya, outro grande guia e amigo, que participou do resgate dos corpos. Um dos espanhóis conseguiu sobreviver à queda e saiu para pedir ajuda. Dario estava distante duzentos metros dos outros corpos. Me disse que quando chegou Dario ainda estava com vida, mas morreu logo depois. Preocupado com seus clientes após a queda, ele se desencordou e tentou caminhar para pedir ajuda. Os ossos quebrados aumentaram a hemorragia interna. Segundo Daniel, se ele tivesse ficado parado provavelmente estaria vivo. Mas conhecendo bem Dario, seu trabalho como guia, sabia que ele tentaria ajudar seus clientes. Ao total foram quatro mortos, uma tragédia para o montanhismo e para a Casa de Guias que perdeu um gigante.

Quando fui escalar, naquele ano, a única coisa que me movia era morte recente da minha avó. Subir aquela montanha foi a espécie de uma oração. Talvez a única motivação que me fez seguir no estado que estava (depois descobri que minha febre era malária que tinha contraído na Amazônia peruana). Contei isso a ele. Ele me disse que tinha guiado pouco antes um grupo de católicos de Lima que tinham contratado seus serviços para pagar uma promessa, que consistia em rezar num cume nevado. Nas suas palavras, “eles não tinham nenhuma capacidade de chegar ao cume, mas a fé fez eles chegarem, foi incrível”. A montanha para Dario não era uma questão de fé. Era ganha pão mesmo. Uma vez perguntei, “por que você não vai fazer a temporada do Aconcagua?”. Ele me respondeu, “nessa época do ano eu planto trigo e batata na minha roça”. Por isso, cada vez mais acabou preferindo escalar o Matteo, tecnicamente fácil, próximo. A vida sempre tem essas contradições. Quem vive e vai na montanha sabe que o risco é inerente, que a morte vive ao lado. Ora ou outra, ela acontece. Lamentavelmente Dario e os espanhóis fazem parte dessa estatística agora, num dos lugares mais corriqueiros para ele. No entanto, tenho certeza que ele está em algum lugar fazendo alguém rir com suas piadas, levantando o copo e tomando um gole cerveja e rindo depois e um “salud”. Prefiro imaginar assim, questão fé – um sorriso sempre fica no coração e nas memórias de quem compartilhou.

Meus sentimentos,
Pedro Alex

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