Extremos
 
COLUNISTA JUS PRADO
 
A história por trás da primeira ascensão do Mont Blanc
 
texto: Jus Prado
31 de agosto de 2015 - 15:50
 
Jus Prado e Elias Luiz junto a estátua de Balmat e Saussure em Chamonix-Mont-Blanc.
 
  Jus Prado  

Em 1916, Chamonix mudou de nome para Chamonix-Mont-Blanc. Essa mudança foi concebida para enraizar, aos olhos do público, os laços estreitos que a cidade havia estabelecido e desejava preservar com o Mont Blanc, a montanha mais alta dos Alpes europeus.

Em 1760, Horace-Bénédict de Saussure visitou Chamonix pela primeira vez e encantado pelos picos nevados, até então pouco explorados por receberem a fama de Montes Malditos, publicou uma nota nas três paróquias do vale: Les Houches, Chamonix e Les Pélerins, afirmando que ofereceria uma boa recompensa financeira para quem pudesse encontrar uma rota de ascensão que chegasse até o cume do Mont Blanc (Monte Branco). Saussure, suíço de Genebra, era um aristocrata, físico, geólogo e viajante explorador dos Alpes que inclusive escreveu Les Voyages dans les Alpes (As viagens pelos Alpes) documentando suas aventuras pelas montanhas e pela ciência da terra. Muitos o consideram como o fundador do alpinismo.

Durante os próximos 15 anos, a sua proposta de recompensa não atraiu a atenção dos locais que achavam que a soma de dinheiro oferecida não era motivo suficiente para deixar de lado suas tarefas no campo durante o período mais ensolarado do ano. Além dos chamoniards (nome dado aos locais de Chamonix) não havia outros visitantes na época. Saussure formou algumas expedições e tentou escalar pelo lado italiano sem sucesso.

Quase 20 anos antes da visita de Saussure à Chamonix, os exploradores ingleses Windham e Pocoke, em 1741, avistaram a Mer de Glace e ficaram impressionados com tamanha beleza natural. A dupla de exploradores começou a espalhar a notícia por toda a Europa e em 1744 publicaram um artigo em francês contando como havia sido a expedição à Mer de Glace, o que pode ser considerada uma primeira faísca para o início do turismo em Chamonix que alguns anos mais tarde começou a receber visitantes que pagavam por um guia para ir ver os belos glaciares da Mer de Glace até o Talèfre. Observando esse novo interesse dos visitantes à cidade, os chamoniards pensaram que a ascensão ao Mont Blanc traria muito mais lucro para a região. Foi assim que em 1775 as tentativas para ascensão da montanha mais alta da Europa se iniciou com afinco.

Mas, foi somente no dia 8 de agosto de 1786, 26 anos depois de lançada a proposta de Saussure, que a recompensa foi clamada por dois locais que escalaram a montanha por Chamonix pela rota, atualmente desativada, Grands Mulets. Eles eram: Jacques Balmat, um caçador de chamois (cabra das montanhas) e garimpeiro em busca de cristais, nascido em Les Pélerins, vilarejo a menos de 10 km de Chamonix; e o doutor Michel-Gabriel Paccard, originário de Chamonix e médico da cidade. Eles subiram discretamente no dia anterior, 7 de agosto, após ambos terem tentado sem sucesso em ocasiões separadas no passado. Experientes, mas desta vez sem corda, sem piquetas e nem crampons, a dupla tinha objetivos semelhantes, porém nada que os tornassem rivais. Balmat queria sair da pobreza ganhando parte da recompensa financeira e o título de um guia renomado, enquanto Paccard queria fazer experimentos e adquirir o reconhecimento de um cientista do porte de Saussure, ambos buscavam a fama, mas somente a fama não seria suficiente para embarcar em tamanha empreitada, eles tinham no fundo um espírito aventureiro.

Uma estátua de bronze foi erguida no centro da cidade em 1887 para celebrar o centenário da primeira ascensão. Olhando por trás, a estátua é dramática: dois homens, um deles apontando para o Mont Blanc com o braço bem estendido. É possível sentir a comemoração inerente à postura da dupla.

Dando a volta pela estátua e olhando-a de frente somos surpreendidos ao descobrir que não se trata de Balmat e Paccard, os dois alpinistas pioneiros, mas de Balmat e seu “patrocinador” Saussure. E Paccard? Por que ele não fez parte dessa estátua de comemoração? Dizem que foi ele quem pagou Balmat para ajudar a portear seus instrumentos científicos, então, o que aconteceu?

Na nossa Era estamos familiarizados com o conceito de eventos e histórias que foram manipuladas para massagear o ego e promover uma pessoa em detrimento de outra. Mas mesmo assim pode parecer uma surpresa, ou no mínimo curiosidade, saber que o conto da primeira ascensão do Mont Blanc foi progressivamente mal contado e manipulado para promover um homem (Balmat) e depreciar seu companheiro (Paccard).

     
     

Quem instigou essa má interpretação dos fatos foi Marc-Theodore Bourrit, outro viajante explorador dos Alpes, rival de Saussure e Paccard, quem falhou ao tentar encontrar uma rota que o levasse ao cume do Mont Blanc, Bourrit sonhava em ser o primeiro a escalar e receber a fama, porém sua condição física não era compatível com a sua ambição. Após saber da conquista bem sucedida da dupla Balmat e Paccard, ele escreveu a história denegrindo o médico, seu rival, e proclamando o garimpeiro como o líder “mais valente e mais apto” espalhando essa versão para todo o vale e além. Ele escreveu inclusive para o rei da Sardenha (a região de Chamonix naquela época fazia parte do Reino da Sardenha) quem, com base nas informações recebidas por Bourrit, elogiou Balmat como “Balmat le Mont Blanc”.

Paccard não aceitou essa difamação de braços cruzados e reagiu pedindo à Balmat que assinasse uma declaração negando a versão de Bourrit dos eventos, pois ambos chegaram ao cume juntos. Saussure estava ao lado de Paccard e de duas testemunhas: Barão Von Gersdorf e Barão Carl Andreas Von Meyer, que afirmaram ter visto toda a última parte da subida através de um telescópio confirmando que os dois alpinistas chegaram juntos ao cume, além das testemunhas, havia diversas anotações pessoais de Paccard que nunca foram corretamente publicadas após terem passado pelas mãos de Bourrit. Saussure também não concordou com a difamação de Bourrit à Paccard e o intimou a corrigir os fatos, mas infelizmente, já era tarde para desfazer o mal entendido e o estrago estava feito. Balmat (apesar da declaração assinada para Paccard) continuou a vangloriar-se de uma forma vaidosa sobre sua parte na ascensão, e para a infelicidade de Paccard, Chamonix escolheu acreditar nele.

E por muitos anos depois disso, artigos e livros incluindo a própria autobiografia de Balmat continuou a promovê-lo sobre seu parceiro de escalada que muitas vezes nem era mencionado. Com esse conhecimento dos fatos, não é surpresa nenhuma que a estátua de bronze erguida no monumento do centenário efetivamente removeu Paccard da glória da primeira ascensão.

Foi apenas no bicentenário, em 1986, que a segunda estátua de bronze foi erguida para comemorar o doutor Paccard. A estátua de Paccard fica a poucos metros atrás da original na beira da praça.

Quando vejo essas duas magníficas estátuas de bronze fico sempre impressionada com o contraste entre elas. Paccard está sentado. Seu olhar também é direcionado para o Mont Blanc, mas não há nenhum triunfalismo sobre ele.

Seu comportamento é discreto, silencioso, estudioso, pensativo em contemplação, quase como se ele quisesse se distanciar da excitação de Balmat à sua frente gesticulando dramaticamente com o seu companheiro Saussure cujo olhar segue a ponta de seu dedo apontando para o Mont Blanc. Meu olhar sempre pousa na mão esquerda de Saussure, com seus dedos estendidos, é quase possível ouvi-lo jorrando louvor de excitação pelo animado e entusiasmado Balmat.

Em 1787, Balmat retornou ao cume com mais dois guias, Alexis Tournier e Jean-Michel Cachat “O Gigante”, para preparar a rota para a expedição de Saussure que, um ano após a primeira ascensão, subiu acompanhado de mais 18 funcionários e guias, inclusive Balmat. Essa foi a terceira expedição a alcançar o cume e a qual teve maior repercussão, onde Saussure realizou uma série de experimentos científicos, inclusive a medição da montanha permanecendo cerca de quatro horas lá em cima e chegando a conclusão de que a medida era de 4775m (errando por 35m a menos do tamanho oficial confirmado alguns anos mais tarde). Paccard em sua primeira ascensão ficou cerca de 35 minutos no cume e também tentou medir o tamanho da montanha, porém ele era um cientista amador e não tinha a fama nem a influência de Saussure, sua primeira medida de 4738m assim como o pioneirismo da primeira ascensão foram totalmente ofuscados pela terceira e posteriores ascensões de Saussure para estudos científicos que foram divulgados por toda a Europa.

Sabemos a algum tempo que o conto foi completamente distorcido, pois há uma série de provas escritas: a declaração a pedido de Paccard sobre a veracidade dos fatos assinada por Balmat; os testemunhos por escrito de Barão Von Gersdorf e Barão Carl Andreas Von Meyer assegurando que foi Paccard quem descobriu a rota e que os dois homens chegaram ao topo juntos; anotações próprias de Saussure; diários de Paccard e etc. Portanto, mesmo se Balmat realçou o seu papel para obter o prêmio prometido, Bourrit não podia ignorar a verdade e foi propositalmente que ele deu crédito excessivo para Balmat e menosprezou o médico.

E por quê? Por ciúmes sem dúvidas! Ego ferido. Mas, Bourrit também escreveu que ficou chocado ao ler o boletim de subscrição do médico que não havia mencionado Balmat: Bourrit, o Robin valente? Ou foi apenas para lisonjear Balmat, a fim que ele pudesse guiá-lo ao topo antes de Saussure como ele havia proposto em uma carta a Balmat? Quanto rebuliço!

Apesar de Paccard negar que não havia mencionado Balmat em seu boletim, da produção do certificado sobre a verdade dos fatos que foi assinado pelo “herói” da conquista, apesar da relutância de Saussure com Bourrit por sua falta de objetividade essa história distorcida encontrou com Alexandre Dumas um amplificador fantástico para o ponto que ainda hoje é repetido uma vez ou outra por autores mal informados. Em 1832, durante a sua viagem para os Alpes, Dumas, 31 anos, um dramaturgo de sucesso, convidou Balmat para jantar e depois de muita comida e vinho (três garrafas cheias para Balmat, então com 70 anos de idade) o guia deu a sua versão da primeira ascensão do Mont Blanc (Paccard havia morrido cinco anos antes) e é este conto, mais embelezado, que Dumas dá em suas impressões de Voyage en Suisse (Viagens pela Suíça), um estrondoso sucesso que contribuirá para confrontar a lenda de Balmat à custa de Paccard que não estava mais lá para se defender.

Com o passar dos anos, os historiadores, principalmente britânicos, não tiveram dificuldades em comprovar o papel importante de Paccard na primeira ascenção ao restabelecer a história, mas Charles Durier, presidente do Clube Alpino Francês, optou por reproduzir a história de Dumas em Le Mont Blanc, 1878, e desde então muitos franceses, incluindo os guias e sindicatos em Chamonix, ainda acreditam nesse conto onde Balmat é o herói quem encontrou a rota, escolheu Paccard para acompanhá-lo e atestar o seu sucesso – como sendo médico da cidade a sua palavra seria confiável – Paccard, desmoralizado, teria sido colocado por Balmat em um lugar protegido contra o vento enquanto ele ia para o cume sozinho, replicando assim o conto de Dumas o qual eles nem sequer mencionaram que Paccard também alcançou o cume!

Rejeitando as evidências, muitas pessoas preferem o mito. Para eles, a associação de Saussure, o rico estrangeiro educado e Balmat, o guia de Chamonix e caçador de cristal é um símbolo muito maior do que a associação de Paccard e Balmat, dois jovens aventureiros homens de Chamonix que fizeram sua primeira subida. Paccard não se enquadraria na figura como eles gostariam que fosse: ele não podia ser associado a um guia sendo um cientista amador ou para um cliente como sendo um local, ao contrário de Saussure e os britânicos de Cambridge e Oxford, que foram os primeiros alpinistas e clientes dos guias de Chamonix.

Eles até mesmo esqueceram o quão próximo as famílias de Paccard e Balmat eram: Paccard casou-se com a irmã de Balmat (10 anos após a sua ascensão) e seu bisavô foi Adolphe Balmat, um guia de Chamonix. Além disso, Paccard tinha dois primos, Francisco e Michel Paccard, que fizeram parte de várias das primeiras tentativas. Sua própria capacidade nas montanhas era tão boa quanto a de qualquer um dos moradores e Jacques Balmat, mas sua principal fraqueza parecia ser o fato de ele ser um médico e não um guia, um local e não um visitante rico, um cientista amador e não um cliente!

Entre os autores franceses para restabelecer recentemente a verdadeira história, Philippe Joutard, professor universitário e historiador publicou em 1986 o livro “A invenção do Mont Blanc” para o centenário da subida o qual ele escreve:

“Paccard era ‘indesejado’. A dupla Balmat-Saussure aparecia como o modelo de conexão, ligando o guia de Chamonix ao seu cliente estrangeiro”.

E acrescenta:

“Na segunda parte do século 20, com o enfraquecimento desse modelo, o protótipo volta para o lugar que merecia no sentido literal: a grande enciclopédia Larousse Cultural ignorou completamente Paccard como se Balmat estivesse escalado sozinho. É somente na edição de 1960 que o médico terá direito a uma pequena nota.”.

E foi graças a Charles Edward Mathews que Paccard foi incluído na história após a publicação dos “Anais do Mont Blanc” em 1898 na Grã-Bretanha, em seguida o livro “Paccard Balmat” em 1913 escrito pelo suíço Heinrich Dubi e “Primeira ascensão do Mont Blanc” em 1957 escrito por Brown e Beer, todos esses livros não foram publicados em francês e por isso foram totalmente ignorados pelos franceses. Entre esses autores, Ernest Hamilton Stevens (1864-1945), professor universitário de Londres e membro do Clube Alpino, publicou no Jornal Alpine Club de 1929 uma tentativa de reconstruir a participação de Paccard na vitória da escalada usando o diário de Paccard, cartas e vários depoimentos, especialmente os de Saussure, Bourrit, Von Gersdorf e etc.

Se Jacques Balmat exagerou no conto para prejudicar Michel Paccard seria errado não continuar a comemorar o seu feito com o seu companheiro, mas sob uma perspectiva diferente, pois eles subiram por inclinações de mais de 40º sem corda, sem crampons, sem piqueta, somente com um bastão pesado de madeira e os instrumentos científicos de Paccard que ainda ficou mais de meia hora no cume congelante tentando medir a montanha depois de mais de 14 horas de ascensão. Seja qual for a controvérsia o feito dos dois foi magnifico!

Em seguida e depois também como guia, Balmat se tornou um ‘caçador de tesouro’ até a sua morte. Ele preferia ir às montanhas em busca de minerais e ouro do que guiar. Deve-se lembrar também que, devido a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas, pouca atividade ocorreu entre 1788 e 1815. Os filósofos e turistas tinham outras coisas em que pensar do que fazer peregrinações pelos glaciares. E mesmo depois, a atividade de guia permaneceu limitada até a segunda metade do século: apenas 52 expedições chegaram ao cume do Mont Blanc até 1850, ou seja, em 64 anos. Muito longe de ser um trabalho em tempo integral. Portanto, a principal atividade de Balmat assim como os outros “guias” permaneceu sendo o seu trabalho de antes como camponeses.

Ao ler a história da primeira ascensão do Mont Blanc, para realmente compreender o que ocorreu com as personalidades envolvidas, suas motivações e na verdade, sua grande coragem e força física, mas também os seus interesses em conflito, deve-se procurar ter em mente a economia, a situação e formas de pensar da época. Lendo-a com os olhos de hoje só pode levar a mal entendidos.

E eu não poderia terminar essa história épica sem citar a décima ascensão de Balmat, em 1811, onde ele e uma equipe de seis chamoniards receberam a demanda de duas mulheres para acompanhá-los na aventura. Uma delas foi impedida de participar, pois havia um filho de sete meses para amamentar, a outra, Marie Paradis, foi aceita e juntos seguiram pela rota Grands Mulets. Marie sofreu de vertigem e se bloqueou em uma das passagens expostas, mas com a ajuda dos outros integrantes ela conseguiu voltar a andar e chegou ao cume se tornando a primeira mulher a escalar a montanha!

Tradução e adaptação: Jus Prado
- Descubra mais sobre Chamonix em: facebook.com/tempoviagem
- Texto original: lensscaper.wordpress.com
- Fonte: www.summitpost.org

Jus Prado
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