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COLUNISTA GUILHERME CAVALLARI
 
Highlands Tandem Kalapalo
GUILHERME CAVALLARI E ADRIANA BRAGA EM UMA TRAVESSIA DE 850 KM PELAS TERRAS ALTAS DA ESCÓCIA
 
 
Fim da expedição!
 
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30.05.2016 - 16:45

Podcast 123 - Highlands #4 - 18 dias - 708 km

No último Podcast da cicloexpedição as Highlands escocesas, Guilherme Cavallari e Adriana Braga falam sobre: Praia azul, monolitos, Broch, as Blackhouses, livrarias e muito mais. Ouça e comente!

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22.05.2016 - 17:00

Fim da viagem, meio da jornada

  Guilherme Cavallari  

Às vezes acho que tenho um pé na depressão. Acabei de completar uma viagem de 18 dias de bicicleta numa tandem (bike dupla), com minha esposa, por mais de 700 km pelas Highlands da Escócia e não consigo comemorar.

Nada deu errado. A bike não quebrou, nenhum dos dois ficou seriamente doente, o clima foi amigável, conhecemos um monte de pessoas simpáticas, comemos e dormimos bem mesmo nos vários acampamentos que fizemos, nos demos bem durante todo o percurso e, mesmo assim, tudo o que consigo sentir no momento é dúvida, incerteza e insegurança.

Agora tenho que transformar a experiência vivida, junto com todo o imenso volume de informação que acumulei e ainda vou acumular lendo dúzias e dúzias de livros, num relato de viagem que seja autêntico, verdadeiro, empolgante, instrutivo e divertido. Sei que vou passar muitos meses obcecado e enclausurado, estudando, escrevendo, pesquisando e tentando tecer com palavras uma trama complexa de experiências e sensações, recordações e percepções, informações e fatos, unindo fios individuais e solitários numa textura harmoniosa e coesa.

 
Em visita ao Museu Nacional em Edinburgh, vimos essa bike de quatro lugares e já começamos a imaginar outra viagem, com mais duas pessoas… Quem topa?
 

Será que consigo?

Mas por que me imponho tanta pressão? Por que transformar uma viagem – que para a maioria é sinônimo de férias, diversão e lazer – numa mistura de circo, laboratório e sessão de psicanálise? A resposta simples – porque esse é meu trabalho, porque desejei ser (e agora sou) um escritor de literatura de viagem – não me basta. Rótulos não são a origem dos problemas.

De um lado, gosto de desafios. Viajar, para mim, é um processo de mapeamento no qual, além de mapear a geografia por onde passo, desenho também o mapa de mim mesmo. E se viajar é minha forma de autoconhecimento, não pode haver viagem superficial.

“Você é intenso!”, diz Adriana, minha esposa, e fico sempre esperando que ela complete a frase com o advérbio “demais”, que felizmente até hoje não veio. Tenho medo que ela não aguente essa minha intensidade. Às vezes nem eu mesmo me aguento.

Descanso, prazeres e penitências

Desde o último post no blog, quase uma semana atrás, não pedalamos mais. O clima virou quando estávamos em Ullapool, começou a chover com frequência, a temperatura caiu, mas o que de verdade nos desanimou foi a perspectiva de pedalar por uma movimentada rodovia estreita de asfalto, por 100 km em no máximo dois dias, até Inverness apenas para pegar um trem até Edinburgh. Pegamos um micro-ônibus com um trailer para bicicletas acoplado atrás e não nos arrependemos.

Em Inverness começamos a recuperar os quilos perdidos durante o pedal, comemos melhor do que vínhamos comento até então, bebemos vinhos e cervejas artesanais, caminhamos pelas ruas mais turísticas da cidade. Visitamos o Victorian Market, um mercado em forma de galerias cobertas construído em metal e madeira em meados do Século XIX. Em outra rua entramos numa livraria de livros usados, um sebo, instalado há décadas numa antiga igreja. Leakey’s é um estabelecimento tradicional que merece uma visita de gente que, como eu, idolatra livros.

De volta a Edinburgh, ao mesmo hotel onde já havíamos nos hospedado duas noites no começo da viagem, sentimos como se estivéssemos voltando para casa. Depois de tantos lugares novos e desconhecidos, um pouco de familiaridade foi como um afago materno.

     
Um pequeno pedaço do Castelo de Edinburgh, visto entre os dosséis das árvores do parque aos seus pés.

O prédio, que já foi uma igreja, da livraria de livros usados Leakey’s, em Inverness, Highlands, Escócia.

A balsa que nos levou de Stornoway, na Ilha de Lewis, até Ullapool, no corpo central da Escócia, ancorada na pequena e charmosa Ullapool.
 

Descansamos, dormimos um pouco mais, experimentamos comidas e bebidas. Levei a Adriana para conhecer uma loja de queijos, embutidos, pães artesanais e saímos de lá com uma baguete rústica, queijo de cabra cremoso, toucinho defumado de javali selvagem e tomates secos frescos mergulhados em azeite de oliva, sentamos num banco na praça de Grassmarket e comemos ouvindo extremistas cristãos pregando o evangelho de cima de um minúsculo palco de concreto. Esse espaço existe para que qualquer um possa dar seu recado.

Apesar do barulho ser incômodo e de eu acreditar que a melhor fé, por definição, é individual e silenciosa, achei interessante a diferença no discurso de radicais evangélicos escoceses e brasileiros. O pregador que urrava com a Bíblia na mão em Grassmarket anunciava o fim do mundo, o Juízo Final, a existência do inferno para os adúlteros e mentirosos, mas, ao mesmo tempo, berrava que “somos todos iguais aos olhos de Deus, brancos, negros, asiáticos, homens, mulheres, homossexuais ou heterossexuais”. O problema estava em trair a esposa e, não coincidentemente, enquanto ele se esguelava sua esposa, com uma bebê num carrinho, pontuava o discurso com vários “Amém!”

Outro pregador bíblico foi além e bradou aos quatro cantos, para meu deleite e surpresa, que “não existe igreja, Jesus nunca desejou que se criasse uma instituição em seu nome, mas que houvesse uma comunidade cristã vivendo os valores cristãos de igualdade, fraternidade e compaixão”. Esse pelo menos parece que leu e entendeu a Bíblia, concluí.

 
O interior da livraria de livros usados Leakey’s, em Inverness, Highlandas, Escócia… Talvez o sebo mais bonito que já visitei.
 

Conclusão

Sei que muita gente espera uma conclusão, um balanço final, ao término de uma viagem como essa. Sinto muito, mas acho que vou desapontá-los. Estou longe de concluir qualquer coisa, muito pelo contrário. Sinto que preciso digerir tudo o que vi, vivi e ainda estou vivendo no que diz respeito às Highlands da Escócia. Então tenham paciência! Daqui a um ano, quem sabe, eu talvez tenha um livro e um filme que me ajudem a dizer tudo o que penso…

 
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18.05.2016 - 20:50

História, pré-história e um pouco de maresia

  Guilherme Cavallari  

Chegamos a Stornoway, capital da grande Ilha de Lewis, e completamos 708 km pedalados em 18 dias ininterruptos de viagem. Daqui zarpa a moderna balsa para veículos e passageiros que nos levará a Ullapool, de volta ao corpo principal da Escócia e o trecho final de nossa cicloviagem. Comecei a escrever dentro da embarcação, um grande navio de 117,9 metros de cumprimento, que atravessa o agitado pedaço de mar conhecido como The Minch.

Comecei a escrever e tive logo que parar porque meu estômago resolveu falar mais alto que meus pensamentos… Ou eu parava de escrever no mar ou logo cobriria o teclado do notebook de restos mal digeridos de um quiche de queijo, cebola e bacon. O texto foi terminado em terra firme, em Ullapool, onde estive em novembro enquanto fazia a Cape Wrath Trail.

 
Por do sol no “bothy” The Lookout, onde passamos uma noite protegidos do frio e do vento do Atlântico Norte.
 

Segundo nossa programação original, Stornoway seria o fim da nossa jornada de bike, mas como decidimos estender o pedal até Inverness, teremos ainda mais 100 km partindo de Ullapool. E a previsão do tempo diz que teremos muita chuva no caminho…

Desde o último post no blog, sete dias atrás, fizemos muita coisa… Terminamos de cruzar a Ilha de Skye, visitamos a Ilha de Harris e cruzamos quase toda a extensão da Ilha de Lewis de sul para norte e toda sua extensão de oeste para leste. O arquipélago onde essas ilhas todas estão localizados é conhecido como as Ilhas Hébridas (The Hebrides Islands, em inglês) e soma mais de 100 ilhas localizadas a oeste e noroeste do corpo central da Escócia. Essa região foi dominada pelos celtas, pelos vikings e finalmente pelos ingleses. E todos deixaram suas marcas.

Na Ilha de Harris visitamos praias de areias brancas e águas de cor turquesa que pareciam tropicais, até a gente colocar o pé n’água… Na Ilha de Lewis fomos conhecer Callanish, um círculo de monólitos, de pedras colocadas em pé há 5.000 anos, por uma civilização extinta e que não deixou muitos outros vestígios… Na mesma e não muito distante do círculo de pedras, conhecemos um Broch, uma complexa construção vertical da Idade do Ferro (entre 1.200 AC e 1.000 DC), feita de pedras sobrepostas sem nenhum tipo de cimento que alcançava até 15 m de altura. Dentro, esses “edifícios” primordiais continham plataformas de madeira formando andares com corredores circulares no interior de sua estrutura interna de paredes duplas… E ainda na mesma região, na costa oeste da ilha, ficamos hospedados numa antiga vila de Blackhouses (“Casas pretas”, em português) onde pescadores viveram do começo do Século XIX até a década de 1970. O lugar foi restaurado para se transformar numa pousada com chalés e um albergue.

     
Lukenstyre, uma praia de areias brancas e mar turquesa, fica nas Highlands da Escócia e os banhistas, como nós, vestem gorros e cachocóis, hehehe.
The Blackhouse Village, a vila de pescadores fundada no começo do Século XIX, onde nos hospedamos por uma noite na Ilha de Lewis, nas Highlands da Escócia. Adriana dormindo no “bothy” The Lookout, ao norte de Uig, na Ilha de Skye, nas Highlands da Escócia… Esse beliche era todo o espaço disponível para dormir no pequeno barracão.
 

O clima foi gentil conosco até agora. Passada a onda de calor e céu aberto, voltamos a conviver com céu nublado e ameaça de chuva. A temperatura está sempre bem perto de 10? C, que é ótimo para pedalar se não houver muito vento e se não chover. A bike continua firme e forte, apresentando os mesmos probleminhas mecânicos de pedivela disco dianteiro de freio soltos, que eu aperto de tempos em tempos. O pneu traseiro já perdeu mais da metade da vida, em apenas 700 km, enquanto o dianteiro ainda apresenta os “pelinhos” de quando era zero quilômetro.

Adriana e eu estamos saudáveis (ouso dizer “cada dia mais saudáveis”, se isso é possível) e felizes um com o outro. Em viagens anteriores juntos já ficamos mais estressados e nos desentendemos mais. Acho que o cansaço físico ao fim de cada dia e o trabalho em equipe que a tandem exige de nós acalma os ânimos e promove a compaixão. Eu sei a dor que ela sente na bunda porque minha bunda também dói. Ela sabe que a musculatura que dói nela também dói em mim. Enfim, agora não só o amor, mas também dor nos une.

Nossa cicloviagem juntos está chegando ao fim. Aos poucos imagens e sensações mais marcantes vão ocupando lugares de destaque na minha memória, flashes de cenários e cenas vão sendo emoldurados e pendurados na galeria da minha mente, mas uma cena rápida vive se repetindo no meu pensamento…

Estávamos na cidade portuária de Tarbet, na Ilha de Harris, no último dia de sol escancarado no céu que tivemos. Havíamos chegado à vila já fazia algumas horas, já tínhamos tomado banho, vestido roupas mais limpas e saímos do albergue onde estávamos hospedados para comprar comida para nosso jantar. Adriana iria cozinhar algo especial e delicioso, como sempre, e já havíamos decidido que tomaríamos uma garrafa de vinho tinto. Na porta do albergue, caminhando pela calçada, nos demos as mãos. O vento soprava gelado do sul e o sol baixo no horizonte aquecia nossas costas. Um senhor, cabelos brancos desgrenhados pelo vento, nos olhou atento e disse: Love is a great thing.

E não temos como negar, “O amor é uma coisa grandiosa”.

     
Num longo dia de mais de 50 km de vento contra, frio e ameaça de chuva, paramos para comer nosso lanche nesse ponto de ônibus e nos proteger do clima por 15 minutos…


Enquanto os egípcios construíam as pirâmides de Giza, um povo extinto erguia círculos de pedras onde hoje é estão as Highlands da Escócia… Caillanish é um dos mais importantes monumentos pré-históricos desse canto do mundo. Difícil acreditar que uma praia de aparência tão tropical seja tão fria e esteja nas Highlands da Escócia… Lukenstyre fica na Ilha de Harris e já foi confundida com a Tailândia.


 

13.05.2016 - 17:36

Podcast 118

  Elias Luiz  

Guilherme Cavallari e Adriana Braga já percorreram 562 km em 14 dias pelas Highlands da Escócia. Falamos sobre a cultura local das ilhas, os bothies, camping, banhos e muito mais. Ouça e comente!





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09.05.2016 - 13:33

Highlands de tandem... realidade e fantasia

  Guilherme Cavallari  

Oitavo dia de viagem, mais de uma semana pedalando pelas Highlands da Escócia e apenas a segunda postagem que faço no blog. Bom sinal. Se não sobra tempo para escrever é porque muita coisa está acontecendo…

Da cidade de Avimore, de onde escrevi a primeira postagem, no quarto dia da viagem, Adriana e eu pedalamos mais 165 km. Ou seja, pouco mais de 41 km por dia em média. No total já percorremos 342 km dos 850 km inicialmente previstos.

 
A caminho do bothy Ruigh Alteachain, acompanhando o Rio Feshie.
 

Estamos hospedados numa pousada às margens do Loch Cluanie, num quarto de casal (vamos dormir a primeira noite em cama de casal desde que chegamos na Escócia, há onze dias atrás), com uma cama extra de solteiro onde jogamos toda nossa tralha. Temos uma pia, mesinhas de cabeceira, gaveteiro com televisão, escrivaninha com chaleira elétrica, um guarda-roupas, sinal de internet, telefone, banheiro, toalhas, sabonetes, xampu, condicionar de cabelo e duas lindas poltronas de couro marrom claro. Tudo muito chique.

As três noites anteriores nós dormimos, primeiro, num bothy gelado acomodados em “prateleiras” que cumpriam o papel de beliche triplo. Uma fresta de uma janela mal bloqueada ventou a noite toda em nos ouvidos, mas não reclamamos. Dividimos o abrigo de montanha, chamado Ruigh Alteachain, com um cicloturista inglês chamado Ritchie e um montanhista escocês chamado Craig. Os dois mantiveram o velho fogão a lenha do bothy queimando na potência máxima a noite toda e encheram a casa de fumaça azulada. Nossa fresta de vento gelado também era nossa única fonte de ar puro.

 
Nem sabia que a Adri havia feito essa foto… Depois de pedalar o dia todo, escrevo e descrevo o dia no meu inseparável diário. Vida dura, hehehe…
 

A segunda noite dessa sequência, nós acampamos no jardim de uma família de imigrantes canadenses residentes há oito anos da Escócia. Estávamos no largo vale do Rio Spey, em direção à sua nascente. Num extremo tivemos o pôr do sol e, no outro extremo, assistimos ao nascer do sol num dos dias mais quentes e ensolarados até o momento.

A terceira noite, ontem, montamos nossa barraca no gramado de um camping estruturado com banheiros, chuveiros, lavanderia e sinal de WiFi na cidadezinha de Fort Augustus, na ponta sul do grande Loch Ness (aquele do monstro).

 
Nossa preferência por caminhos de terra nos leva muita vezes por pontes esquecidas no interior das Highlands da Escócia.
 

Toda vez que fico acomodado num lugar mais chique, como agora, depois de passar algumas noites “na dureza”, lembro do Rock do Segurança, a canção do Gilberto Gil, onde ele diz:

“Essa aparência de um mero vagabundo é mera coincidência. Deve-se ao fato de eu ter vindo ao seu mundo com a incumbência de andar a terra, saber por que o amor, saber por que a guerra. Olhar a cara da pessoa comum e da pessoa rara…”

E a parte que eu sempre canto, alto, geralmente dançando, quando me vejo por cima da carne seca depois de vários apertos:

“Um dia rico, um dia pobre, um no poder! Um dia chanceler, um dia sem comer!”

Hahahahaha! E estou rindo a toa porque hoje é meu dia de chanceler!

 
Corrieayairack Pass, o passo de montanha considerado um desafio para ciclistas locais.
 

Nem tudo é fantasia

De Avimore até o bothy Ruigh Alteachain tivemos um dia de mountain bike como poucos que já tive na vida! Foi uma sequência de trilhas em singletrack e double track, trilhas estreitas e trilhas mais largas, cortando bosques de pinheiros escoceses altos e grossos. A tandem não vencia todos os obstáculos e eu suava para manter a bike na linha correta, mas tudo era diversão. Até empurrar a bike era legal. Chegando no bothy descobrimos que uma enchente do Rio Feshie em dezembro havia levado a ponte em frente ao abrigo e duas partes da trilha. Em alguns trechos tivemos que carregar a tandem com toda a bagagem nos ombros.

Do bothy até o vilarejo de Laggan, onde acampamos no jardim dos canadenses, refizemos os trechos difíceis do dia anterior, pedalamos por estradas de reflorestamento, por rodovias de asfalto e por dentro de cidadezinhas pacatas. Foi um dia longo que nos deixou bem cansados.

 
Esse bothy, chamado Melgarve, foi um dos mais bonitos que já visitamos. Um grande mezanino acomoda três quartos espaçosos com uma bela escada de madeira.
 

E então veio o Corrieayairak Pass, o passo de montanha de Corrieayairack que sobe mais de 200 metros verticais em menos de 2 km e é um desafio para os mountain bikers locais. Obviamente não pedalamos todo o percurso, mas boa parte dele. Em compensação, a descida do outro lado fizemos feito dois kamikazes.

De Fort Augustus para cá tivemos 12 km de trilhas por bosques e 40 km de asfalto por rodovias pouco movimentadas. Nada de muito especial, como às vezes acontece em cicloviagens. E chegando à pousada havia um motociclista acidentado no asfalto a espera do resgate de helicóptero. Ele já havia sido socorrido por amigos, motoristas e o próprio dono da pousada onde estamos hospedados. Não foi legal ver o cara estendido no asfalto.

 
Ruigh Alteachain, o bothy onde dormimos em “prateleiras” que serviam de beliches triplos, sufocados por fumaça ou resfriados pelo vento gelado… Um dia chanceler, um dia sem comer!
 

Nem tudo é realidade

Amanhã teremos um dia longo de alta quilometragem com uma serra para vencer, mas também estamos pensando em descansar à beira-mar. Quero visitar um lugar fictício chamado Camúsfearna, situado num lugar real chamado Sandaig, onde o escritor escocês Gavin Maxwell escreveu seu best-seller Ring of Bright Water.

Maxwell criou e conviveu anos com lontras domesticadas que ele tratava como animais de estimação e grandes amigos. Escritor talentoso, nascido numa família nobre, amigo de membros da família real britânica, aventureiro consagrado com expedições na Sicília, Marrocos e nos pântanos do sul do Iraque, ele viveu uma vida cheia de experiências contraditórias. Homossexual num tempo que que a homossexualidade era crime passível de prisão na Grã-Bretanha, perdulário incontrolável, incapaz de controlar seus desejos ou entender a relação de custo-benefício de suas vontades, artista reverenciado, escravo de valores sociais, a lista de suas características marcantes é quase infinita.

Ring of Bright Water é uma importante obra da literatura de língua inglesa e foi transformado em filme por Walt Disney na década de 1950 (disponível no YouTube). Maxwell fez muito pela proteção animal, tanto com sua obra quanto com sua iniciativa de criar um santuário para as lontras. Camúsfearna é um misto de cenário ficcional e paraíso real. Eu gostaria muito de passar uma noite acampado ali.

 
Sabe aqueles espelhos convexos, que servem para ver o trânsito da rua para quem vai sair da garagem? Então, esse serviu de moldura para nossa foto… Em Fort Augustus, Highlands, Escócia.
 

03.05.2016 - 15:26

Um começo difícil

  Guilherme Cavallari  

Estamos em Avimore, a principal porta de entrada para o maior parque nacional do Reino Unido. Para chegar até aqui, Adriana e eu pedalamos 177 km em 4 dias. E acho que agora, somente agora, estamos finalmente confortáveis em nossa bike.

O projeto dessa cicloviagem de mountain bike, numa tandem (bike dupla) especialmente construída e montada para nós, é percorrer cerca de 850 km pelas Highlands da Escócia com visitas e pernoites no maior número possível de bothies no caminho. Bothies são abrigos rústicos (para o padrão europeu), gratuitos, situados em locais remotos e abertos ao público.

 
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Começamos a pedalar da cidadezinha de Pitlochry onde, para ganhar energia e entrar no clima, apresentei à Adri meu prato favorito da culinária escocesa: Cullen Skink. Essa sopa de hadoque defumado (Melanogrammus aeglefinus, um peixe parecido com o bacalhau), batatas, alho poró e creme de leite, mantém os pescadores do Atlântico Norte vivos e ativos em pleno inverno. O certo seria termos tomado a sopa com algumas doses de uísque escocês single malt (de apenas um malte, em vez de blend, onde vários maltes são misturados), mas preferimos nos manter sóbrios para o longo dia seguinte.

De Pitlochry pedalamos 67 quilômetros até um bothy chamado Callater Stable, onde fomos os únicos hóspedes. Acho que exagerei um pouco na distância do primeiro dia e exagerei com certeza na quantidade de comida que carregamos na bike. Não posso dar a desculpa de ser um cicloviajante inexperiente, mas essa é a primeira viagem de bike que faço com minha esposa. Aliás, estamos comemorando 20 anos de casamento nesse pedal. Pesei a mão no desejo de conforto.

Passamos quase dez horas na função, dormimos como defuntos a noite toda e, na manhã seguinte, Adri me deixou alarmado:

 
Esse é o bothy Gelder Stables, um antigo estábulo transformado em abrigo de montanha. Nossa tandem estacionada na frente.
 

– Estou com os dois joelhos inflamados. Acho que é tendinite, talvez por eu ter condromalácia patelar. Vou tomar um anti-inflamatório e vamos ver o que acontece.

disse Adriana Braga

Que traduzi, em português simples: “fodeu!”

E isso depois de ela ter ido a um pronto-socorro na capital escocesa, Edinburgh, dois dias antes da gente começar a pedalar. A médica diagnosticou uma infecção vaginal leve e receitou antibióticos por cinco dias.

Pelo menos a bicicleta chegou inteira depois do vôo desde São Paulo.

Um deserto de gente

Até o começo do Século XIX, as Highlands eram uma região densamente povoada. Mas os proprietários de terra, lordes e ladies na maioria, queriam ganhar mais dinheiro do que os inquilinos de pequenos lotes rurais conseguiam pagar, e começou uma intensa política de despovoamento conhecido como The Highlands Clearances – “a limpeza das Highlands”. A terra seria ocupada por incontáveis cabeças de ovelha, que produziriam carne e lã e muito dinheiro. Mais ou menos o que o Brasil faz hoje em relação ao gado bovino e à soja.

Centenas de milhares de Highlanders foram despejados, às vezes brutalmente, e deslocados para povoados à beira-mar ou imigraram em massa para a América do Norte. O número de pessoas que chegou ao Canadá, por exemplo, determinou que o extremo sudeste do país ficasse conhecido como “Nova Escócia”.

Essa é a explicação para o fenômeno de maior impacto para quem viaja pelo interior das Highlands: praticamente não se vê pessoas, construções, estradas, absolutamente nada que lembre ocupação humana! E é por isso, também, que a região é tão popular como destino de turismo de aventura. Mountain bikers, trekkers, escaladores, esquiadores, pescadores, caçadores, remadores e todo tipo de amante da natureza são atraídos para o norte da Escócia como agulha de uma bússola.

Foi isso o que me atraiu para cá em outubro do ano passado, quando fiz sozinho o roteiro de trekking CAPE WRATH TRAIL, considerado “o mais difícil da Grã-Bretanha”. Terminei a caminhada no farol de Cape Wrath, no extremo noroeste da Escócia, com uma certeza: eu voltaria às Highlands e isso não demoraria muito.

 
Tivemos que empurrar a tandem por toda a extensão desse lago, por uma trilha estreita (singletrack) impossível para nossa bike dupla.
 

Dormi como um rei

Nosso segundo dia de pedal nos levou até a propriedade da Rainha da Inglaterra na Escócia, o Castelo de Balmoral. Num ponto isolado da grande área privada existe um pequeno aglomerado de árvores, pinheiros e cedros na maioria, com uma casinha construída com pedras, como é típico na região. Esse é o Gelder Shiel Bothy, que pertence ao monarca britânico. A porta está sempre destrancada, como acontece em todo bothy. Dentro não existe luz elétrica, água encanada, sistema de aquecimento ou móveis. Nesse bothy, em particular, existe o luxo indescritível de uma torneira do lado de fora e de uma latrina aberta no chão, além de cinco beliches sem colchão, uma mesa e algumas cadeiras. Coisa de reis e rainhas...

Todo bothy tem dono e muitos são administrados por uma associação sem fins lucrativos que, através de doações e de mão de obra voluntária, reforma e mantém as casas em bom estado. Os mutirões de trabalho que atuam nesses lugares ermos às vezes reúne dezenas de pessoas por vários dias consecutivos, numa verdadeira “operação de guerra”. Às vezes helicópteros do Exército Britânico são usados para transportar material e equipamento. Uma parte do dinheiro doado vem dos próprios donos da casa, que normalmente se encontrava em péssimo estado antes de virar bothy.

No caminho para esse abrigo, quando pedalávamos por uma estrada de terra pouco usada, um atalho que descobri num mapa local, apareceram três carros vindo na direção oposta: dois Range Rovers pretos e um Bentley, também preto, o 4x4 mais caro e luxuoso do mundo. Com certeza algum membro da família real inglesa estava a bordo.

Tivemos a companhia de cinco jovens ingleses, que chegaram no fim do dia. Para muita gente, visitar bothies é uma das mais importantes atividades de lazer.

Planos foram feitos para serem mudados

O susto dos joelhos inflamados da Adri me ensinou uma lição óbvia: sem flexibilidade não existe viagem. Pedalamos o terceiro dia até uma vila chamada Toumintoul, onde passamoa a noite em um Bed and Breakfast (um tipo de pousada que serve apenas café da manhã) de um casal de sul-africanos. A ideia inicial era esticar 82 quilômetros e chegar a Avimore um dia antes.

Mas essa parada não programada não foi a única mudança nos planos. Também redesenhei o percurso da viagem. Vamos pedalar por mais asfalto e estradas de terra. Vamos evitar os singletracks (trilhas estreitas) e trechos sem trilha alguma. Empurrar uma tandem é muito duro e cansativo. Pensei o seguinte: “Se estamos aqui para comemorar 20 anos juntos, preciso desenhar essa viagem para agradar também a Adri”.

De qualquer maneira, estamos um dia adiantadas em nosso cronograma inicial, descarregamos cerca de 4 kg de comida extra no bothy da rainha, transferi peso dos alforjes da bike para minha mochila e estou concentrado em ser muito gentil e carinhoso com minha esposa.

Para quem, como eu, trabalha naquilo que lhe dá mais prazer e vive daquilo que um dia já foi seu hobby, é muito fácil confundir trabalho com lazer e, pior, lazer com trabalho. Tenho uma certa tendência de colocar muita energia, pressão, estresse e expectativas naquilo que faço e, não demora muito, tudo vira obrigação e dever. Essa viagem de bike com a Adriana, nossa primeira juntos, poderá me ensinar a relaxar mais e aceitar com mais bom humor o inesperado.

Uma coisa já aprendi: pedalar uma tandem é muito parecido com cuidar de um casamento. Acho que no próximo post vou discorrer um pouco mais a fundo sobre isso.

 
Guilherme Cavallari e Adriana Braga na entrada do Castelo Braemar. Nós acreditávamos que a construção ao fundo era o castelo, mas era apenas a portaria!!! hehehe
 

30.04.2016 - 09:15

Começou

  Elias Luiz  

Guilherme Cavallari e Adriana Braga iniciaram hoje a expedição de travessia das Highlands da Escócia pedalando uma bike tandem. Acompanhe o progresso dos primeiros dias pelo FIND ME da SPOT acima. Em breve teremos fotos e podcasts da expedição.






 

15.04.2016 - 17:42

Podcast 111 - O projeto

  Guilherme Cavallari  

Depois de três anos envolvido com o Projeto Transpatagônia, que gerou o livro TRANSPATAGÔNIA, PUMAS NÃO COMEM CICLISTAS e o premiado filme-documentário TRANSPATAGÔNIA, decidi iniciar um novo ciclo de exploração e pesquisa, que representam o cerne do meu trabalho à frente da KALAPALO EDITORA.

As possibilidades e alternativas eram tantas quanto existem países no mundo! Optei por conhecer profundamente as Highlands da Escócia. Por que? Por que não? Minhas preferências são sempre por regiões pouco habitadas, ricas em história e cultura, ainda com resquícios de natureza selvagem. As Highlands da Escócia atendem perfeitamente os requisitos.

 
DOWNLOAD DO PODCAST 111
 

Comecei percorrendo sozinho e de forma autossuficiente os 450 km da trilha considerada “o trekking mais difícil da Grã-Bretanha”- a CAPE WRATH TRAIL. A ideia inicial era transformar essa experiência em mais um livro e mais um filme com a minha assinatura. Aconteceu então que descobri que as Highlands da Escócia tinham muito mais a oferecer que apenas o trekking que fiz. A cultura outdoor da região é forte, inspiradora e rica em detalhes. Comprei mais de 70 livros sobre o norte da Escócia, comecei a estudar e fiquei apaixonado. Era preciso voltar para continuar a pesquisa.

Agora, seis meses mais tarde, estou voltando às Highlands com minha esposa, Adriana Braga, para pedalarmos juntos pela primeira vez numa ciclo-expedição. Mandamos construir uma tandem, uma mountain bike para duas pessoas, que teve o apoio da SHIMANO e da FOX, e desenhamos um roteiro exploratório de 850 km percorrendo toda a extensão leste-oeste das Highlands.

Uma peculiaridade dessa viagem, totalmente autossuficiente, é que vamos pernoitar sempre que possível em bothies – casas rústicas restauradas e mantidas para uso público, gratuito, em locais remotos. Essa inclusive foi uma das características da cultura outdoor das Highlands que mais me encantou. Vamos levar também barraca de acampamento, para o caso de não chegarmos a algum bothy ou encontrarmos a casa lotada.

Enfim, essa expedição é mais um passo na minha longa jornada de autoconhecimento, que faço através dos esportes de aventura, do contato próximo com a natureza, da vida simples e autossuficiente.

Mais sobre meu trabalho no site da KALAPALO EDITORA: www.kalapalo.com.br

 

 
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