Extremos
 
COLUNISTA FABIANA ATALLAH
 
Um ano no mundo das montanhas. O que aprendi.
 
Texto: Fabiana Atallah
18 de junho de 2014 - 13:53
 
Descanso antes da subida ao cume do Pequeño Alpamayo, Bolívia.
 
  Fabiana Atallah  

Mais um ciclo se fecha. É tão clara e, ao mesmo tempo, misteriosa, essa eterna sequência de etapas em nossas vidas. Às vezes podemos nem sentir muito quando elas têm início mas, quando terminam, quando chegam realmente ao fim, percebemos a marca que esse período deixou dentro de nós. Em maior ou menor intensidade, o fim de um ciclo sempre nos leva a refletir, a repensar, a olhar para dentro e para fora, tentando enxergar, com clareza, para quê tudo isso serviu.

Há cerca de oito meses, aqui neste mesmo espaço, contei um pouco de como tinha sido a grande mudança que ofereci a mim mesma no meu processo de reinventar a vida e a minha maneira de viver, saindo da rotina de prazos da advocacia para o dia a dia da montanha onde, em lugar do relógio e das leis do homem, é a natureza quem estabelece horários e dita as regras do jogo. Esta aí. Nisso enxergo minha primeira lição – nós, seres humanos, não somos os donos da verdade. No ledo engano de termos nossa vida “sob controle”, nos deixamos levar pela impressão de que, se planejamos com cuidado, tudo vai acontecer do jeito que almejamos. Puro engano. Pode até acontecer, mas não porque nós fizemos assim. Não temos controle de nada. O que fazemos, e devemos mesmo fazer, é tentar projetar as consequências de nossas decisões para que possamos, da melhor forma possível, nos preparar para elas. Mas como e quando as coisas acontecem, sobre isso, decididamente, não temos poder algum. 

     
     

Quando iniciei minha nova jornada, há exatamente um ano, a sede de buscar o novo me movia de forma impressionante. A vontade de ter os pés nesse novo “chão”, com o vento do não-conhecido no rosto, era, como se diz por aí, algo mais forte que eu. Por outro lado, o medo do desconhecido também me fazia, cada vez mais, olhar para dentro de mim mesma, analisando minhas forças e, principalmente, minhas fragilidades. A outra lição, logo de cara, se apresentava – quanto mais ousarmos e arriscarmos, mais teremos a descobrir sobre nós mesmos. O problema é que essas descobertas nem sempre nos trazem algo prazeroso. Podemos descobrir que somos capazes de ir além do que imaginávamos, mas também nos deparamos com nosso lado mais sombrio. Lidar com ele gera a necessidade de tentar criar um tal poder que faça com que nosso lado mais medroso, mais fraco, mais preguiçoso - que nos puxa para baixo quando queremos alçar voo - não se sobreponha à nossa autoconfiança, à nossa imensurável habilidade de trabalhar as dificuldades internas e externas para não desistirmos daquilo que nos propusemos a atingir.

     
     

Todo esse processo de tentar desenvolver uma melhor maneira de perceber e aproveitar as oportunidades que se apresentavam foi acompanhado pela necessidade de colocar a mão na massa. Isso porque toda essa nova realidade tinha também o caráter de dever, de trabalho, integrado, comandado e conduzido por um fator externo de enorme importância. Esse elemento externo pode ser traduzido, de maneira bem simples, pela palavra “pessoas”. De um ano para cá, para além das viagens relacionados a projetos pessoais, também participei de todas as viagens oferecidas pela Morgado Expedições, guiando trekkings e escaladas ao lado do Manoel, que tanto me ensinou. Assim, além de cuidar de mim, também aprendi a cuidar de pessoas. Aprendi a ouvir além das palavras, a enxergar além dos gestos, a perceber os sentimentos pela simples linguagem corporal. Aprendi que só posso ajudar a quem se permite ser ajudado, que só tenho como ensinar se existe a vontade de aprender. Aprendi que é cuidando de pessoas que descobrimos, de fato, que quanto mais se sabe, mais se sabe que não se sabe nada. As pessoas sempre nos surpreendem, sempre têm algo a nos ensinar, seja de maneira sutil, agradável, seja mexendo com nosso brio, balançando nossas crenças ou “pisando no nosso calo”. 

     
     

Uma das lições mais incríveis e deliciosas que também obtive nesse período veio até mim de forma absolutamente paradoxal. Afinal, foram nesses doze meses em que não tive carro, nem casa, nem o monte de coisas que vêm junto a ela, que me senti mais rica. Sinto que nesse último ano a fartura, a plenitude e a abundância inundaram minha vida, justamente quando tudo o que eu tinha cabia em dois duffle bags. Nada me faltou. Sinto que, sinceramente, me sobrou liberdade. Sentir-se livre da necessidade do “ter”, e do ter de cuidar de tudo que se tem, nos dá um espaço enorme para “ser”. Começamos a dar valor para o que realmente é relevante e o resto se torna prescindível. Não defendo, como nunca defendi, que não devamos ter as coisas que desejamos, que nos são úteis ou que nos trazem, de alguma forma, algum prazer, mas que ficar sem uma boa parte dessas “coisas” torna a vida muito mais simples, mais leve e, de certo modo, mais feliz, disso não tenho dúvidas.

"Escalar uma montanha é, acima de tudo, estar na montanha, viver na montanha e viver a montanha, e isso envolve não só a atividade de escalada em si, mas também todos os desconfortos dela decorrentes. Lá, estamos à mercê do clima, da qualidade da nossa barraca, do nosso saco de dormir, da comida, da possibilidade ou não de tomarmos banho. Tudo parece pequeno diante do propósito maior – a escalada, mas essas características, inerentes à atividade, também acabam fazendo parte do pacotão “escalar uma montanha” e podem, para o bem ou para o mal, nos afetar psicologicamente. Por isso considero essencial à boa preparação de alguém que almeja tornar-se montanhista, realmente fazer o que determina a própria palavra – estar na montanha."_ Fabiana Atallah

Durante este último ano recebi inúmeras manifestações de admiração pela coragem que tive de deixar tudo o que eu havia construído na advocacia, assim como por eu ter deixado tudo o que tinha, para viver algo completamente novo e incerto. Não há dúvida de que, realmente, a decisão demandou uma grande dose de coragem. No entanto, não posso deixar de dizer o que constato e aprendo agora. Neste momento, posso dizer que foi ainda maior a coragem que tive de ter para reconhecer o encerramento de mais uma etapa na minha vida e decidir voltar. Enfrentei medos para ir e ainda mais medos para definir que não vou mais seguir pelo mundo como vinha fazendo. De novo, aprendi.

 
Bolivia - Voltando do cume do Pequeño Alpamayo.
 

A montanha já é, sem volta, parte da minha vida, disso estou certa. O próximo projeto está para acontecer daqui a 40 dias, quando terá início a expedição ao Monte Lenin, de 7134 metros, no Quirguistão, da qual vou participar. Mas, acima de tudo, a montanha estará presente na minha vida não somente nas minhas próximas escaladas. Ela se fará ali a todo momento por meio de tudo o que nela aprendi e que, com humildade e afinco, vou procurar inserir em meu novo cotidiano, seja ele qual for, onde for. Daqui para frente, nem sempre poderei estar na montanha, mas a montanha estará sempre em mim.

_ Fabiana Atallah

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