Extremos
 
COLUNISTA EDEMILSON PADILHA
 
Espírito dos Gerais
 
texto: Edemilson Padilha
fotos: Edson Vandeira
6 de julho de 2016 - 16:52
 
Na íntegra o filme Espírito dos Gerais, sobre a Conquista na Pedra da Lavra. | Filme de: Edson Vandeira | Edição: Gabriel Tarso
 
  Cacá Strina  

Era quinta-feira, já estávamos na batalha desde a sexta anterior, acordei meio “bugado”, devido aos acontecimentos da noite anterior. Uma parte da equipe já estava na pedra, a mais de 300 metros de altura, eu permanecia na barraca tranquilo, pois na minha inocência, pensava que naquele ponto da escalada o cume estava próximo e nada poderia dar errado. Mas na montanha, as coisas mudam num instante…

A Viagem

Para quem vive na região sul do Brasil, mais precisamente em Curitiba, uma trip para o leste mineiro/norte capixaba demanda dois dias de viagem. De maneira que partimos no sábado de madrugada e chegamos na pedra no domingo após o almoço, percorrendo 1500 quilômetros até a comunidade do Azul, divisa dos municípios de Água Doce do Norte, ES e Nova Belém, MG. Nosso time era composto de quatro escaladores: este que vos conta a história, Valdesir Machado, Ian Padilha e Alessandro Haiduke; e também o fotógrafo Edson Vandeira, responsável por registrar a aventura em foto e vídeo. Para mim foi uma trip diferente, pelo fato de estar acompanhado de meu filho Ian. Um misto de apreensão, pela responsabilidade de levá-lo conosco numa escalada deste porte, mas também um sentimento de satisfação por estar fazendo uma aventura deste nível com este personagem, que vi nascer, crescer e se tornar um ótimo escalador e uma pessoa com uma vibe incrível.

A Linha da Via

Depois de tantas horas de viagem, a primeira tarefa da equipe foi encontrar uma linha interessante na montanha que era nosso objetivo, a Pedra da Lavra. Perscrutamos todas as estradinhas dando uma volta inteira em torno da gigante pedra, olhando com binóculos para encontrar a “nossa” via. Para se ter uma ideia, esta montanha, até então, tinha apenas uma via que chegava a seu topo, por um flanco menos inclinado, na face leste. O primeiro contato que fizemos por lá foi com o Seu Simão, o qual não nos deixou partir sem tomar um café, e isso seria uma constante durante toda a viagem. De sua casa, rumamos para a face sul da pedra, aonde sabíamos existir uma linha perfeita, porém havia chovido na noite anterior e descia uma cascata por ela. Na face norte, um pouco menor, não tínhamos encontrado nada que nos chamasse a atenção, então miramos a face oeste. Sobe morro, desce morro e chegamos na base. Exatamente a 3 minutos de caminhada da pedra armamos nosso acampamento e fomos com algum equipamento iniciar imediatamente a escalada, não por pressa, mas sim porque tínhamos muitas dúvidas sobre a existência de agarras. Vista de baixo, a parede parecia completamente lisa.

     
De frente para a Pedra da Pavra.
Foto: Edson Vandeira
  A escalada.
Foto: Edson Vandeira
 

Mãos a obra

Gosto sempre de ser o primeiro a iniciar, sou muito ansioso, então me encordei, peguei um par de estribos, cliffs, algumas chapeletas pingo (recém lançadas e cedidas pela Bonier) e parti pra cima. Que maravilha, alguns zig zags e já tínhamos 30 metros de via toda em livre. Nem acreditava, descemos já noite para o acampamento e a cozinha estava fumegante. Desmaiamos logo depois da janta porque na montanha o despertador soa antes das 5 da matina. Café providencial servido com esmero pelo chef Ian, que queria mostrar serviço para que os dinossauros parassem de perturbar o novato.

À medida que progredíamos, o sol nos fustigava sem piedade e mandamos subir a arma secreta, o guarda sol. Fazia 30 graus e ao Xerife (Alessandro Haiduke) coube encabeçar mais um esticão. Lá pelos 40 metros de corda resolveu bater uma parada, mesmo com o Val reclamando que ao esticão estava muito pequeno. Eu sempre repito a mesma coisa: “quem guia es Dios”, e assim concordei com ele, mas depois vimos que teria sido melhor subir mais um pouco. Neste tipo de escalada, que é tensa por natureza, sempre ficamos fazendo piadas e tirando sarro um do outro, mas o Xerife levava a sério nossas brincadeiras, daí era bem pior, porque a zoação era constante. E fomos progredindo, entre uma palhaçada e outra, atingindo neste dia o grande platô que víamos de baixo, aonde iniciava um proeminente diedro. Antes do platô, fiz um esticão longo, pois estávamos com cordas de 70 metros, mas mesmo assim me faltaram 5 metros para chegar à plataforma, de maneira que o Xerife teve de guiar mais um pedacinho para poder bater outra parada no platô. Este dia se findou por aí, não antes de nosso fotógrafo e sherpa Edson Vandeira subir com uma mega mochila de equipamentos e provisões, adiantando o trampo. Desci contente pelo lindo pôr do sol por detrás da Pedra Riscada, mas também pelo fato que no próximo dia eu poderia descansar das guiadas, pelo menos na parte da manhã.

Soa o despertador, são 4 horas e 30 minutos da madrugada, todos levantamos e seguimos o ritual: café, escovar os dentes, pegar as coisas que precisam ser levadas pra cima, engatar o ascensor na corda e subir. Sempre temos de fazer o plano do dia para podermos calcular o que levaremos: água, comida, chapeletas, cordas, equipamentos de escalada, material de bivaque, etc. Neste dia subimos carregados e nossos corpos já davam sinais do cansaço acumulado de vários dias na estrada sem parar. Quando cheguei no platozão, o qual teoricamente seria nosso ponto para dormir nesta noite, o Xerife já havia passado o diedro e estava brigando com os cliffs. Diedro este que iniciava com uma fissura bem larga, quase chaminé e depois estreitava. A linha aberta pelo nosso parceiro ficou bem bacana, pois em um momento segue para a direita, dominando uma placa, também inteiramente em livre. Eu não poderia acreditar que esta parte mais vertical da via sairia toda em livre, pois olhando de baixo parecia não haver agarras. E assim fomos progredindo, buscado as formações que pudessem nos proporcionar um via em livre. Porém, devido a quase toda a via ser feita sem equipamentos móveis, as baterias da furadeira foram acabando e as nossas também. O Xerife lutou para terminar seu esticão, depois o Val abriu um outro bem duro que entrava no sistema de canaletas formado pela água das chuvas. Ao final do dia peguei o meu passe para a diversão e batalhei até a luz do sol desaparecer atrás da linda Pedra Riscada, completando em torno de 400 metros de extensão. Baterias acabando, decidimos descer e tomar o próximo dia de descanso, recarregar as nossas baterias e as da furadeira e depois vir terminar o serviço. Neste dia de trabalho, o Ian pode aprender a jumarear (subir pelas cordas com o uso de ascensores) e contribuiu com o time carregando água e equipamentos até grande platô existente a 200 metros de altura.

 
Ian Padilha no início da escalada. Foto: Edson Vandeira
 

Dia de descanso

Como é bom dormir despreocupadamente e poder acordar depois da 7 da manhã! Dia de descanso é dia de organizar a bagunça, tomar banho, alimentar-se bem, e ir em uma despedida de solteiro. Por essa ninguém esperava, mas quando fomos procurar um lugar para carregar as baterias da furadeira, os donos da casa, Seu Zé Modesto e a esposa, convidaram-nos para ir à tardinha na despedida de solteiro do seu filho, que casaria no final de semana. Muito doido, mas a despedida seria na casa dos pais e toda a família e amigos estariam convidados, e nós também, porque eles queriam apresentar os extraterrestres, que estavam subindo a Pedra da Lavra, para toda a comunidade. Eu, a princípio, não queria ir, mas ficar sozinho no acampamento me pareceu ser antissocial demais, então pensei que talvez pudéssemos fazer algumas imagens da festa para colocar no filme. Lá chegando, fomos os primeiros a chegar, já nos ofereceram cachaça e carne, como sou vegetariano, já dá pra imaginar que não deu certo a minha ida ao evento. Dali a pouco chegou o noivo e aos poucos surgiram mais e mais pessoas, e para todas tínhamos de contar que subíamos a pedra na unha mesmo, que só depois que subíamos na unha é que fixávamos as cordas. Como chegamos cedo, lá pelas 10 horas já pegamos o rumo da barraca, quando subíamos a estradinha, comecei a pensar no plano para o próximo dia e fiquei tranquilo, pois o Xerife e o Val teriam de conquistar cada um o seu esticão, para depois eu ir para a “punta caliente” da corda. Doce ilusão. Neste dia de descanso, o Ian e o Val também se empenharam em encadenar os dois primeiros esticões da via, que ficaram, segundo eles, muito delicados e emocionantes...

O ataque

Como já esperava, acordei “fora de prumo”, com uma baita dor de cabeça. O Val havia me dito que não tinha pressa, que poderíamos subir tranquilos um pouco mais tarde, no entanto, mal coloquei o ascensor na corda fixa e o desesperado companheiro já gritava que teríamos de subir logo porque faltariam chapeletas. Estavam Xerife guiando, Val dando segurança e o Edson já próximo a eles, quando eu e o Ian iniciamos o “jumareio” (subida pelas cordas fixas). Subir pelas cordas fixas é como fazer qualquer trabalho puramente braçal, tem de se conformar com o esforço físico seguir adiante. De repente, a meio caminho entre o chão e meus parceiros, ouço um barulho, olho para cima e vejo terra e folhas caindo, percebendo que alguém havia levado uma queda. Em alguns minutos vem a confirmação – o Xerife havia caído conquistando mais um trecho e ele e o Val desceriam para se dirigirem ao hospital. Fiquei preocupado, mas o Val me tranquilizou que o parceiro estava bem. Organizamos a descida deles para que fosse o mais breve possível, pois o voo rendera a nosso amigo muita escoriações pelo corpo e queriam ir ao hospital para fazer exames e ver se não havia quebrado nada. “E agora, que fazemos?”, perguntei ao Val, ao que me respondeu que seguíssemos adiante, pois achava que o processo de ir levar o Alessandro tardaria, e nosso prazo estava ficando exíguo. De maneira que partimos pra cima, com a alma meio abalada pelo acidente, mas também com a missão de levar o time ao topo.

 
Uma música para o final do dia. Foto: Edson Vandeira
 

Como é tenso continuar um esticão em que seu parceiro acabou de se quebrar. Encordei-me na ponta da corda e subi cuidadosamente pela mesma canaleta em que o Alessandro acabara de cair; ela estava cheia de terra, pois foi um pequeno platô de bromélias que se desgrudara da pedra, ocasionando o desastre. E lá fui eu encontrando o meu caminho pela rocha, ganhando novamente a confiança a cada metro, até que finalizei o esticão. Foi muito trabalhoso, mas o que veio depois foi ainda mais exigente, mesclando canaletas incríveis em que escalava usando técnicas de diedro e chaminé e arestas afiadas, cheias de pequenos cristais de rocha. Um jogo extenuante tanto física quanto psicologicamente. Ao final deste esticão, encontrei uma fissura e pedi para meus parceiros me mandarem um friend (peça móvel que usamos em fendas para proteger em caso de queda), eles porém me responderam que os haviam deixado na parada de baixo. Eu vendo o platô aonde havia de chegar para bater a reunião e “puxar” meus parceiros, mas não queria sair dali sem colocar uma proteção. Bater uma chapeleta não estava em minhas opções, pois seria completamente anti-ético. Entretando, sempre há uma solução perfeita para todos os problemas e este foi fácil de solucionar – peguei um cordelete, fiz muitos nós, um sobre o outro, entalei-o na fissura e pronto, estava protegido o lance.

Com os últimos raios de um sol magnífico se pondo atrás da Pedra Riscada, assisti a meus parceiros Ian e Edson subirem animadamente pela corda que acabara de fixar. Eles estavam exultantes porque achavam que o cume estava ao alcance das mãos, mas a inclinação da parede não diminuía em nada, muito pelo contrário, parecia bem empinada por um longo trecho ainda. Eu que achava que teria um dia de desfrute, no final de minhas forças, engoli o choro e me mandei pra cima, com a vibe dos parceiros que me incentivavam a cada movimento, foi quando a noite nos abraçou. Com ela veio a solidão de estar na ponta da corda sem que meus parceiros observassem a minha batalha, metro a metro, com aquela montanha que não dava tréguas. Desde os primeiros metros, até ali, a quase 600 metros de via, tínhamos nos deparado com um muro cheio de ranhuras e formações desconectadas que fomos juntando para formar aquele lindo quebra-cabeça. Agora faltava pouco para desvendarmos seu segredo. Foi quando escutamos o barulho do carro e os gritos do Val dizendo que estava tudo bem com o Xerife e que mandavam a vibe pra gente atingir o cume naquela noite. A notícia foi, ao mesmo tempo, um alívio e um alento. Com a energia revigorada, fui fazendo muitos zig zags, buscando cada agarra com a luz de minha lanterna, até atingir o final do esticão e bater a parada.

     
Ian Padilha se preparando para jumarear.
Foto: Edson vandeira
  A Via Espírito dos Gerais.
Foto: Edson Vandeira
 

O cume

Falei para meus atordoados parceiros que a parede finalmente deitava e que em breve estaríamos no cume. Eles não me acreditaram, talvez nem eu cria firmemente nessa afirmação. Aos poucos a parede deitou e percebi que o cume estaria próximo. Bati uma chapa, fiz uma costura em uma árvore e a corda esticou bem onde a rocha dava lugar à mata de cume.

Que alívio, poderíamos enfim descansar. Subimos todos para o topo da Pedra da Lavra, o qual está em meio a um matagal super fechado que tínhamos que amassar com os pés para atravessar. Chegando lá decidimos que passaríamos a noite ali mesmo. Fomos olhar nas mochilas e descobrimos que na confusão os sacos de bivaque haviam ficado lá embaixo. Tínhamos apenas nossos anoraques, um litro de água e um monte de porcarias para comer; mas éramos brindados com um céu super estrelado e uma noite que parecia que não seria muito gelada. Bom, isso é uma ilusão, não é? As noites na montanha são sempre geladas e nos amontoamos num lugar protegido do vento, sobre a vegetação amassada, com os pés dentro da mochila. Tiramos uma foto de cume ao amanhecer e iniciamos os rapéis, descendo tudo o que havia na parede, como cordas, equipamentos e mantimentos. Tudo muito trabalhoso, mas nós três nos esforçamos para fazer os procedimentos com o máximo de cuidado, um sempre de olho nos outros dois, como uma equipe deve trabalhar na montanha.

     
Ian Padilha, Edson Vandeira e Edemilson Padilha no cume da Pedra da Lavra.
Foto: Edson Vandeira
  A equipe toda com a Pedra da Lavra ao fundo.
Foto: Edson Vandeira
 

No meio do dia alcançamos o chão, aonde o Val nos esperava; e uns instantes depois, a sombra da mangueira que marca nosso acampamento, aonde o Xerife, já recuperado, esperava-nos com o almoço pronto. No final, deu tudo certo e batizamos a via, de 630 metros, com o nome Espírito dos Gerais, fazendo uma alusão ao fato da montanha estar bem na divisa dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Felizmente o Xerife não teve nenhuma fratura no grande voo que tomou, apenas muitos ralados por todo o corpo e dores pelas pancadas, pois desceu quicando pela canaleta. O Ian e o Edson tiveram um batismo de fogo nas grandes paredes, e eu, apesar de triste por meus parceiros Val e Xerife não atingirem o topo, fiquei imensamente feliz de poder chegar com meu filho lá em cima! Que possamos ainda por muito tempo viver esta vida intensa de montanha juntos. Valeu Ianzin!!!

Croqui

 
Clique na imagem para ampliar. Foto: Edson Vandeira



Edemilson Padilha
www.conquistamontanhismo.com.br

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