Extremos
 
COLUNISTA CARLOS SANTALENA
 
Percepções no Kilimanjaro
 
texto: Carlos Santalena
2 de outubro de 2017 - 14:00
 
Carlos Santalena guaindo Eduardo Soares, o primeiro deficiente visual brasileiro a escalar o Kilimanjaro.
 
 
  Carlos Santalena  

Kilimanjaro é a maior montanha do continente africano com seus 5.895m erguidos sobre a savana. Para os Chaggas, povo que desde os primórdios habita vilarejos aos pés do monte, o nome se origina da junção de duas palavras “Kilima + Kiaro”, que no dialeto local significa difícil de ser conquistada. A lenda local dos Chaggas ainda conta que havia um demônio próximo da montanha, pois desconheciam o mal da altitude e notavam que muitos homens que se arriscavam morriam ou se sentiam mal quando tentavam se aproximar dela. Além dos Chaggas, havia também os Massai, outro grupo étnico da África, que a nomeavam de “Kilima + Jaro”, a montanha branca, por ter seus enormes glaciares que se iniciavam aos 3000m antigamente, mas vem desaparecendo consideravelmente por conta do aquecimento global. Estudiosos afirmam que a calota gelada daquele local deve durar mais 20 anos.

Dentre as 121 tribos que habitam a Tanzânia podemos perceber o significado da palavra união, pois nunca estiveram em conflito. Todos tem liberdade de casar entre si e são aceitos em diferentes tribos. O Swahilli é a língua local que busca unificar a comunicação entre todas as tribos, que por sua vez tem dialetos próprios. A frase mais conhecida “Hakuna Matata” significa “Sem problemas” e descreve bem a convivência dos africanos.

Após inúmeras tentativas tribais de se aproximarem da montanha, os colonizadores e exploradores alemães foram os primeiros a escalar o gigante. Clement Gillmans, em 1821, alcançou 5.681m e se tornou o primeiro a relatar o que viu: a cratera do vulcão adormecido existente no topo. Após Gillmans, o cientista alemão Hans Mayer se tornou o primeiro homem a pisar no cume em 1889, acompanhado de Lawuo, um tanzaniano de 17 anos que trabalhava na expedição, junto com mais 5 carregadores locais. A rota utilizada foi a Marangue e a partir deste momento de conquista iniciou-se a subida por outros povos e novos exploradores. Atualmente, aproximadamente 60.000 visitantes frequentam o Kilimanjaro anualmente e, deste numero, 85% conseguem atingir o objetivo de alcançar o topo, colocando assim o Kili na categoria de uma das três montanhas mais escaladas do planeta, estando junta do Mont Blanc, na França, e dos Pichinchas no Equador.

O vulcão adormecido teve sua última erupção há 200 anos, portanto não podemos considerá-lo extinto. Muitos guias locais afirmam ainda sentir cheiro de enxofre quando vulcões da mesma região de montanhas exercem suas atividades, fato este, comprovado com este ultimo grupo que acompanhei.

 
A via Coca-Cola do Kilimanjaro
 

Costumo dizer que o que se vive na montanha está atrelado diretamente as pessoas que compõem a expedição, e neste caso não foi diferente. Chegamos à Tanzânia no dia 4 de setembro, em um total de 14 participantes, 12 clientes e 2 guias brasileiros, eu e Aretha Duarte.

Logo na chegada foi possível sentir que estávamos entrando em um ambiente muito próximo de partes do nosso país, ambiente seco, casas de barro, alguns bares espalhados, natureza exuberante e agricultura de subsistência.

Fomos bem recebidos pelos tanzanianos e ficamos em um hotel muito interessante em meio à savana e uma antiga reserva de caça, que ainda abriga alguns animais como zebras, porcos espinho, crocodilo, macacos, entre outros que permaneceram no local. Uma viagem no tempo e certamente a sensação de estar em um Safari a céu aberto, com muito conforto, aconchego e excelente serviço, onde todos puderam ter o merecido descanso após a longa jornada de avião. Este foi também o lugar ideal para conversar com os expedicionários e fazer um briefing completo com conferência de equipamentos antes de partir para a montanha.

Escolhemos a rota Marangu, principalmente por 2 aspectos: o primeiro, a segurança, pois neste caminho temos acesso de carro aos acampamentos para qualquer emergência. Segundo, pelo próprio conforto oferecido pelos alojamentos que abrigam 4 pessoas cada - pequenos chalés de madeira, simples e com 4 camas e colchonetes. Muitos pensam que o apelido dado “Coca-Cola” para esta rota é porque seria a rota mais fácil, mas na verdade é por conta do conforto oferecido. Depois de já ter subido por rotas distintas, pude chegar a esta conclusão. Pelo Kilimanjaro ter formato vulcânico, as rotas se diferenciam basicamente pelo processo de aclimatação e pela distância percorrida, a exceção do glaciar onde seria possível realizar algumas escaladas mais técnicas em gelo.

Em termos de quantidade de gente, a rota se restringe apenas aquelas pessoas que ficam hospedadas nos alojamentos, assim sendo, não sentimos a trilha lotada em nenhum momento, pois sempre havia lugar e infraestrutura para todos, como banheiros com água encanada, chalés dormitórios e chalés refeitório.

Muitos acabam subestimando não só o Kilimanjaro, mas também a rota por levar este nome tão “coca-cola” ...rsrsrs, mas trata-se de uma subida intensa. Com ascensão de 1000 metros exatos por dia até alcançar o último acampamento, é a segunda montanha com maior desnível percorrido em apenas 7 dias de montanha dentro do projeto 7 cumes, sendo superada somente pelo Denali.

Os Acampamentos são Mandara Hut (2.720m), Horombo Hut (3.720m) e Kibo Hut (4.720m), sendo que o in;icio da trilha está a 1.720m de altitude e o ponto mais alto a 5.895m, também chamado de Uhuru Peak ou Pico da libertação. A Tanzânia foi o primeiro país do continente a se tornar independente, e levou a tocha da liberdade ao seu ponto mais alto com o intuito de motivar todas as outras nações africanas a proclamarem sua independência.

O grupo fluiu muito bem até o final da expedição que tinha em si um desafio especial para os participantes - guiar e conduzir um deficiente visual ao teto da África, que seria o primeiro deficiente visual da América do Sul a realizar tal feito. Além disso, mais um feito especial - levar ainda a Helena de 13 anos que seria a menina mais jovem do planeta a escalar o Kili. Helena só poderia caminhar acompanhada de sua mãe, que infelizmente teve que retornar no segundo acampamento sentindo a altitude. Com isso Helena desceu e desde já aprendeu a respeitar a montanha, seus limites e, mais do que isso, a sua família.

 
Carlos Santalena e Eduardo Soares durante a subida do Kilimanjaro
 

Eduardo Soares, vulgo morcego selvagem, seguiu acompanhando o grupo até o final e teve algumas dificuldades, mas pôde atingir o topo da África no dia 10 de setembro. Ele mostrou para nós que a mente pode ir muito além do corpo, descrevendo claramente o que imaginava estar vendo. Mostrou o quanto o ser humano pode ser resistente a dor, já que batia as unhas dos pés a cada pedra do caminho e ainda dizia: “ quem é que não tem pedras no caminho para transpor”. Deu uma lição de respeito e superação ao longo dos dias e provou humildade ao descer sozinho com o guia local para que eu pudesse seguir com outra parte do grupo rumo ao cume.

Ao final o grupo neste dia de cume se dividiu em dois, mas as duas caravanas puderam chegar ao topo.

Este foi meu oitavo cume do Kiliimanjaro e muitos ainda me perguntam, mas qual é o prazer de retornar sempre para a mesma montanha? E eu respondo que o prazer é estar na montanha, seja ela qual for e poder observar cada pessoa que me acompanha aprendendo a crescer internamente e desenvolver o autoconhecimento.

Acredito que todas as pessoas que estão na montanha buscam mesmo que inconscientemente o autoconhecimento e autodesenvolvimento, o contato com a natureza por si só já garante o aprendizado e a mudança de hábitos, neste caso a presença de um deficiente visual certamente potencializou o desenvolvimento humano.

 
O grupo no cume do Kilimanjaro
 

A idealizadora do projeto expedições inclusivas, Ana Borges descreve bem o que vivemos da seguinte forma:

“A natureza nos expõe a situações imprevisíveis que nos obriga a transformar problemas e obstáculos em soluções. A convivência com a deficiência transforma limitações em caminhos criativos e facilitadores de soluções, além de provocar uma mudança de nosso olhar, com isso passamos a focar nas potencialidades e não no que nos limita. As diferenças deixam de ser limitadoras para serem facilitadoras do desenvolvimento humano de cada um como indivíduo.

O deficiente precisa de ajuda, e todos nós de alguma forma precisamos de ajuda. Nosso olhar sempre vem carregado de conceitos e paradigmas estabelecidos por nossas experiências ao longo da vida, que podem limitar nossa visão e nos tirar do direcionamento para atingir nossos objetivos como seres-humanos. Quebrar estes paradigmas ou conceitos é desenvolver-se e extinguir dentro de nós qualquer tipo de pré-conceito.”

 
O grupo
 

O Edu vem mostrar muito mais que records - vem mostrar o quanto a montanha é um ambiente democrático que pode ser explorado por todos e que se bem utilizado pode ser uma das melhores ferramentas de desenvolvimento humano dentro de nossa sociedade moderna.

Um agradecimento especial a Spot, Thule, Solo, Grade6 e a Expedições Inclusivas.

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Namastê
Carlos Santalena

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