Extremos
 
COLUNISTA BETO PANDIANI
 
A velejada mais difícil da minha vida
 
texto: Beto Pandiani
28 de julho de 2016 - 11:15
 
Beto Pandiani. Foto: Arquivo Pessoal
 
  Beto Pandiani  

A saída estava preparada para as três e meia da manhã. Porém, como não havia vento, dormimos um pouco mais. A previsão da meteorologia dizia que teríamos ventos de setor norte variando de 4 a 8 nós e grande possibilidade de calmaria.

Havíamos ficado seis dias em Deception Island depois da travessia da Passagem de Drake para nos recuperar do cansaço, pôr o sono em dia e ganhar um pouco do peso perdido.

Acabamos partindo da ilha às cinco e meia da manhã, com ventos bem fracos, chuva e muita neblina. Cruzamos a pequena abertura da ilha para ganhar mar aberto. Deception Island é na verdade um vulcão, e a cratera é a baia interna deste lugar estranho. Uma piscina gigante cercada de areia escura. A costeira da ilha era formada por paredes de pedra e terra de coloração que variava do marrom ao avermelhado que subiam a uma altura de 100 metros. Os cumes pontiagudos, envoltos na neblina, formavam um cenário tenebroso.

Passamos por várias ilhotas com essa mesma configuração e assim que saímos da proteção da ilha, nos deparamos com os primeiros icebergs. Passamos bem próximo de um deles que dava carona a pinguins e focas-peleteiras. Como a corrente estava forte não conseguíamos nos afastar de Deception Island.

O Kotic, nosso barco de apoio naquela expedição, mergulhou na forte neblina, que aumentava a cada minuto – a visibilidade passou a variar entre 100 e 200 metros. Aos poucos o vento foi dando o ar da graça e o Satellite começou a avançar. Cento e cinco milhas nos separavam das ilhas Melchior, e se mantivéssemos a nossa média só alcançaríamos nosso objetivo depois de vinte horas. Já estávamos preparados para dormir mais uma noite no mar, o que não me agradava muito, pois a possibilidade de colidir com um pequeno bloco de gelo desprendido de algum iceberg não era desprezível.

Icebergs apareciam no meio da neblina subitamente, imensos e assustadores. Não dava para imaginar navegar à noite por ali, nem se estivéssemos com um radar. O vento continuou a aumentar, e o entusiasmo também. Comecei a fazer contas para saber das possibilidades de chegar no mesmo dia. Seria a salvação da lavoura.

Alcançamos o primeiro ponto de referência marcado no GPS: Austin Rocks, uma série de ilhotas e pedras perdidas no meio do mar antártico. Envolto pela neblina e cercado de icebergs, era um excelente cenário para ambientar pesadelos. Poucos lugares me deixaram tão impressionado como aquele. As rochas negras, castigadas por um mar mal-humorado, levantavam muita espuma. As nuvens estavam baixas e a neblina, cerrada. Pouco à frente os rochedos esperavam alguém disposto a cruzar seu destino por aquelas paragens. Tinha que manter o barco velejando e para isso tinha que estar concentrado. Difícil manter o positivismo em um lugar como aquele. Aquela paisagem devastada tinha um poder enorme sobre a minha mente, e só depois de uma hora velejando rápido que conseguimos nos livrar daquela companhia.

O E-track, nosso rastreador via satélite, continuava enviando o sinal do Satellite (nosso catamaran) para o Kotic a cada trinta minutos com a nossa latitude, longitude, velocidade e rumo. Para reforçar o procedimento de segurança, comunicávamo-nos via rádio a cada duas horas para tranquilizar Oleg e a tripulação. Com jacarés intermináveis, nosso catamarã avançava intrepidamente. Como o vento soprava de uma direção favorável, velejávamos com o spinnaker, a vela mestra sem rizos e a buja.

A certa altura Duncan anunciou: “Acho que o vento vai cair”. O vento pareceu ouvir, e se zangou. Ao contrário do palpite do Duncan o vento começou a aumentar rapidamente, trazendo bastante mar. As descidas de ondas tornaram-se cada vez mais radicais, mas a sintonia entre Duncan e eu fazia da velejada ao mesmo tempo radical e prazerosa. Decidimos velejar mais rápido, pois sabíamos que chegar com luz seria um presente dos céus. Qualquer erro e o Satellite capotaria nas águas geladas da península.

O frio era intenso, e por isso também tínhamos uma alimentação super calórica, mas naquele dia foi difícil desviar a atenção para qualquer coisa que não fosse olhar para frente, e desviar de blocos de gelo soltos. Parecia um campo minado, e sabíamos que um erro perderíamos o nosso catamaran. Para comer a solução foi engolir gel de energia e barras.

De repente, enormes golfinhos começaram a saltar ao lado do barco. Era difícil olhar para a frente e conduzir o barco ao mesmo tempo, sem deixar que atravessasse uma onda. Tudo à nossa volta era em tons de cinza, menos no vermelho do catamaran e o amarelo neon das velas.

No meio daquele cenário improvável veio a surpresa. Acho que foi o maior susto que levei em toda a minha vida de velejador. Uma baleia com o dorso cheio de cracas emergiu bem na frente do Satellite enquanto ele acelerava no topo de uma onda.

Quando o barco começou a descer o jacaré acelerando mais ainda só deu tempo de virar um pouco o leme e torcer para a baleia submergisse novamente. Pensei: os lemes e as bolinas vão bater e destravar. A baleia passou por baixo do barco e surgiu atrás de nós, seguindo seu caminho. Talvez ela não tenha tido tempo de reagir. Não gritei, nem respirei – só observei. Foi impressionante ver aquele animal imenso passando por baixo de nós, pois como o trampolim é vasado, pudemos ver o dorso branco dela deslizar a menos de um metro do barco.

A emoção continuou. Além dos golfinhos, baleias vieram bisbilhotar-nos. Pensei comigo: aquela história só pertenceria a nós dois, pois ninguém jamais compreenderia o que vivemos. Só os anjos, as únicas testemunhas. O vento esperou que nos refizéssemos do susto e começou a aumentar, aumentar, até que ficou impossível usar o spinnaker. Baixamos e deixamos apenas a buja na proa. Pouco depois enrolamos a buja e fizemos um rizo na vela principal, a mestra.

O mar estava ficando grande demais, com vagas de 3 a 4 metros, bem cavadas. Para piorar, começou a nevar forte, e o gelo ficava preso nas talas da vela, uma cena incomum para mim. A água estava a zero grau e, como o barco brigava com o mar, o frio era intenso. Nossos trajes eram os melhores que existiam, mas percebemos que estávamos no limite técnico da roupa. A sensação térmica deveria estar em torno dos 20 graus negativos. No topo das ondas o vento ficava mais forte, e lá de cima avistávamos uma confusão de vagas, espumas quebrando e um horizonte de montanhas escuras que se moviam. Eram tão grandes as massas de água que algumas vezes eu pensava ver terra no curto horizonte. Não era terra, mas sim a gélida água da Antártica se movendo rapidamente com o vento.

Não demorou muito e fomos obrigados a fazer o terceiro rizo. Navegávamos com pouquíssima vela e o barco continuava a fazer uns 11 nós de velocidade, mas na descida da onda acelerava para 16 nós. O vento soprava mais de 35 nós na rajada e o mar se levantava a 5 metros de altura, com ondas estourando por todos os lados. A ondulação vinha de três direções, e Duncan e eu fazíamos de tudo para manter o barco andando equilibrado, livre de alguma onda transversal, a única que podia nos virar. A cada trinta minutos Duncan consultava no GPS a nossa posição e me passava o novo rumo, corrigindo a rota.


A tensão estava estampada no nosso rosto, quase não falávamos, e eu repetia para mim mesmo a frase de Santiago Isa: “Todo barco que parte tem que chegar”.

Com certeza aquele era mais um grande teste. O Drake havia testado nossa resistência e agora era a vez de nossa habilidade e frieza serem colocadas à prova.

Naquele cenário de ondas imensas, vento forte, neblina, neve, icebergs, baleias, água congelante e temperatura de 2 graus a coisa mais improvável de encontrar naquela região era um catamarã de 21 pés sem cabine. Mas estávamos lá e tínhamos de vencer aquela tempestade. As ondas quebravam na lateral do barco, e vinham direto na minha cara, uma água de zero graus. Doía, mas não cabia reclamação, pois tínhamos que chegar. Pode parecer estranho, mas estávamos aonde eu sempre sonhei estar. No meio de um mal tempo na Antártica. Muitas vezes imerso em alguma leitura sobre relatos de expedições antárticas, imaginava como seria estar lá e sentir o que os meus heróis sentiram. Talvez de tanto desejar saber como eram as condições no início do século passado, acabei atraindo para a minha vida uma experiência semelhante.

Por volta das nove da noite o vento começou a dar sinais de que ia amainar e, depois de duas horas, quando já avistávamos Melchior, respiramos aliviados. Queríamos a todo o custo chegar, descansar e nos alimentar, pois não havíamos comido nada além de gel de energia.

O Kotic vinha a cinco milhas atrás de nós. A entrada do arquipélago de Melchior estava marcada no nosso GPS, mas, em vez de encontrarmos uma passagem, víamos uma imensa ilha coberta de gelo. Ficamos confusos e novamente checamos no GPS reserva a nossa posição. Chamamos Oleg pelo rádio e explicamos-lhe a nossa dúvida. Ele pediu que o esperássemos. O vento caiu bastante, mas o mar não, e ficamos ali sendo jogados para baixo e para cima, quase à deriva.

Estávamos a duas milhas do destino e não sabíamos para onde ir. Quando o Kotic nos chamou pelo rádio, o capitão nos explicou que o que estávamos vendo era um gigantesco iceberg estacionado na entrada do canal. Como tudo era branco, nos confundimos.

Depois de trinta minutos entramos rebocados em águas protegidas, em meio a montanhas cobertas de gelo e icebergs por todos os lados. O Kotic ia à frente, bem devagar, abrindo passagem entre o gelo solto com sua proa de aço. De pé e segurando o leme, eu observava em silêncio o Satellite com seus cascos vermelhos entrar em um mundo muito estranho para mim, quase proibido. Já estava escurecendo, era quase meia-noite e a luz se ia. Aquele arquipélago perdido no meio do nada me deu a precisa ideia do que era estar em um lugar selvagem, abandonado, esquecido, distante, mas ao mesmo tempo sublime e imponente. A viagem seguiu depois de dois dias abrigados no arquipélago. Passada outra tempestade chegamos a Baia Dorian terminando a viagem à Antártica.

Beto Pandiani
www.betopandiani.com.br

comentários - comments