Extremos
 
COLUNISTA ANTÔNIO CALVO
 
O Rei dos Esportes
 
Texto: Antônio Calvo
9 de maio de 2019 - 13:00
 
O escalador Eliseu Frechou em um dos “acampamentos” - portaledge - da via Skywalker. A foto retrata o trabalho, making of, do fotógrafo Edson Vandeira a 300 metros de altura na Face Norte da Pedra do baú. Crédito: Edson Vandeira
 
  Antônio Calvo  

A fria névoa da manhã ainda cobria o cume da Ana Chata. Estacionei em frente a um portão de madeira preto, buzinei de maneira discreta e esperei. Nada. Estava quinze minutos atrasado. Resolvi investigar e subi caminhando a íngrime estrada de terra. Minutos depois encontrei um senhor carpindo o mato e perguntei pelo Marins que, imediatamente, colocou a cabeça para fora da pequena varanda me dando as boas vindas. O seu abrigo fica na face noroeste da Ana Chata - uma montanha que se tornou meu quintal de casa quando mudei para São Bento do Sapucaí - e que faz parte do complexo da Pedra do Baú, hoje um parque estadual. Minutos depois, cada um com uma mochila cargueira carregada de equipamentos de escalada nas costas, seguíamos pela trilha rumo à Pedra do Baú.

Estávamos ali para ajudar o fotógrafo Edson Vandeira na captura de imagens do escalador Eliseu Frechou que, durante os últimos dias, vinha escalando de maneira autônoma - em solitário - os 330 metros da face norte da Pedra do Baú. Seu objetivo era conectar algumas vias existentes e, no terço final do Baú, abrir outra via para chegar ao cume. A edição digital da revista Go Outside de quarta feira, 1º de maio, explica bem essa empreitada:

Segundo o escalador, “a nova via se chama “Skywalker”, e une desde o chão a via das “Abelhas” (Adalbert Kolpatzik e Galba Athaíde, 81), “No Olho do Furacão” (Eliseu Frechou, Marcio Bruno de Oliveira e Ricardo Bordon, 97), segue independente, cruza a “Mela Cueca (Rodrigo Raineri, Euzebio Mattoso Berlinck Jr e Rodney Ferreira em 99), e novamente segue até o cume do Baú.” A via das Abelhas foi iniciada por dois grandes personagens do montanhismo paulista, Adalbert Kolpatzik e Galba Athaíde, e após a morte deles, permaneceu inalterada. “Quando conheci o Adi e o Galba, escalamos algumas vezes e eles me deram total permissão para fazer a manutenção das vias de autoria da dupla. Então me senti bem à vontade para seguir pela rota iniciada por eles, reformando as bases que tinham grampos com mais de 30 anos, e depois ‘linkar’ com uma outra rota iniciada por mim e Marcio Bruno que havíamos abandonado por total desinteresse em escalar os tetos de rocha decomposta que estão na parte superior da Pedra do Baú”, explica. Em dois dias, Frechou conseguiu escalar a via das Abelhas, passou pelos tetos da “No Olho do Furacão”, e no terceiro dia entrou em terreno desconhecido. “Mais para cima, cruzei 15 metros de uma via de Rodrigo Raineri que não sabia onde ela passava, e segui novamente por terreno novo até o topo. A graduação sugerida da linha é 5° VI A3 e estimo que sejam necessários 2 a 3 dias para repeti-la, dependendo da experiência e tática da equipe.”

 
A satisfação do trabalho cumprido. Eliseu Frechou na última parada a via Skywalker, próximo ao cume da Pedra do Baú. Foram quatro dias de escalada big wall em solitário, ou seja, sozinho! Créditos: Ana Fujita
Visão da Face Norte da Pedra do Baú com as vias escaladas em solitário pelo Eliseu Frechou nos quatro dias de aventura. Em amarelo a via das Abelhas, em vermelho a via No Olho do Furacão, em branco (duas partes) a nova conquista batizada de Skywalker - 5º VI A3 - e em azul a via Mela Cueca. Crédito da foto: Fernando Cruz. Arte: Extremos
 

Encontramos o Vandeira aos pés da Pedra do Baú, próximo às escadas que levam ao cume. Ele voltara do Bauzinho onde madrugara para retratar o nascer do sol e quem sabe, fotografar os primeiros trabalhos do Eliseu naquela manhã. Vandeira veio a convite da Solo, uma empresa brasileira especializada na fabricação de roupas para atividades ao ar livre - a melhor que temos em terras tupiniquins! - já que tanto ele como o Eliseu são atletas apoiados pela marca. E como o Rodrigo Marins, um dos sócios da Solo, possui o refúgio aos pés da Ana Chata, o time estava formado.

Conheci o Vandeira em 2014 rumo ao Treinamento Pré Antártico - TPA, quando fui selecionado para trabalhar como alpinista do Programa Antártico Brasileiro, o ProAntar. Esse treinamento, realizado pela Marinha brasileira na Restinga da Marambaia, é obrigatório a todas as pessoas - civis ou militares - que irão à Antártica. Estava nervoso e receoso como marinheiro de primeira viagem. Os alpinistas que por anos fizeram esse trabalho não estavam muito felizes com a chegada de pessoas de fora da turma. E muito menos o clube que os representava. Porém, a caminho da Marambaia, numa rápida parada do ónibus para irmos ao banheiro, logo ouvi uma pessoa perguntando “cadê os dois novos alpinistas?”. Era o Vandeira querendo se apresentar e nos conhecer; ele seria um dos instrutores do curso. Logo de cara nos demos bem. Sua maneira pacata de falar, assuntos em comum e amigos conhecidos vieram à tona na conversa e isso me deixou mais tranquilo. Vandeira é guia de montanha e fotógrafo profissional associado à OneLapse e à National Geographic Brasil. Sua apresentação digital diz o seguinte:

As viagens têm o poder de transformar o destino de algumas pessoas. Foi o que aconteceu com o fotógrafo e guia de montanha Edson Vandeira, nascido e crescido em São Paulo em 1989, mas que, nos últimos anos, adotou a cidade de Campo Grande (MS) como moradia. Em 2008, aos 19 anos, começou a fazer suas primeiras viagens. Passou a praticar o montanhismo e a escalada. Ao mesmo tempo em que pegava gosto pelas montanhas, também se interessou pelo mundo da fotografia, especialmente as imagens de aventura. Desde então, não parou mais de viajar e fotografar. No começo, Vandeira escalou as principais montanhas do Brasil. Depois, decidiu colocar em prática o que havia aprendido e partiu para a exploração da Cordilheira dos Andes, a começar por escalar uma montanha de 6 mil metros próximo a Mendoza, na Argentina. Em 2010, conquistou a maior montanha das Américas, o Aconcágua, com 6.962 metros, localizado na Argentina. Na sequência vieram novas aventuras em outras grandes montanhas na Bolívia, Peru e Patagônia (Argentina e Chilena). Em 2015, subiu o Mont Blanc, nos Alpes, entre França e Itália, com 4.800 metros. Ao todo, foram mais de 30 ascensões em montanhas de altitude. Além disso, há 5 anos ele é contratado para apoiar o Programa Antártico Brasileiro, como alpinista responsável pela segurança dos cientistas durante a permanência e nos deslocamentos na Antártica. Para ele, a associação entre fotografia e montanhismo é perfeita, pois, por meio das imagens que produz, consegue registrar os desafios que encontra durante suas jornadas nas montanhas. Além disso, suas fotos também permitem eternizar momentos únicos de contemplação e beleza vivenciados durante as escaladas, já que, para Vandeira, as imagens são uma poderosa ferramenta para contar boas histórias. Atualmente vem colaborando para a National Geographic Brasil e Adventure (EUA), sendo um fotógrafo representado exclusivamente pela National Geographic Creative. Tem como fonte de inspiração renomados fotógrafos da área, como os americanos Jimmy Chin, Cory Richards e os brasileiros Luciano Candisani e Sebastião Salgado.

     
Eliseu Frechou escalando em solitário próximo ao Olho do Furação. Abaixo, no platô, observa-se parte dos equipamentos da aventura. Créditos: Ana Fujita   Além de conectar algumas vias e abrir a Skywalker, Eliseu Frechou precisou içar sozinho quilos de equipamentos para os 4 dias de escalada em solitário. Créditos: Ana Fujita
     

Eu também adoro fotografia, principalmente as relacionadas aos esportes de aventura e expedições. Me lembro de algumas edições da National Geographic logo quando se iniciou a edição brasileira - exponho algumas no Armazém Aventura como decoração até hoje. No entanto, juntar fotografia e expedição é um trabalho para poucos; por um simples motivo: você precisa “criar” tempo para parar e clicar ao longo do caminho, além de entender da parte técnica da escalada e do montanhismo em geral. Não existe folga: enquanto seus parceiros descansam, você precisa trocar as baterias da câmera, limpar as lentes, verificar se tudo está seco após a chuva… Precisa se locomover mais rápido para não perder a luz desejada, acordar antes que todos para clicar o “despertar do acampamento” e dormir por último para clicar o “boa noite”. Enfim, esses fotógrafos expedicionários possuem muitos níveis de habilidades acima de todos nós. Concordo com o Vandeira quando ele cita Jimmy Chin - recomendo uma olhada em seu site jimmychin.com. Foi ele, aliás, que dirigiu o documentário Free Solo, ganhador do Oscar 2019, onde Alex Honnold realiza a proeza de solar - escalar sem cordas - a via Freerider (5.13a, 3.000’) no El Capitan, no Parque National de Yosemite.

Contudo, Jimmy não foi o primeiro e não será o último na arte de capturar emoção através da lente fotográfica. Ao ler sobre as histórias das conquistas das grandes paredes no Yosemite, nos deparamos com o incrível Tom Frost. Falecido em 24 de agosto de 2018, Frost foi pioneiro não apenas em fotografia expedicionária e nas conquistas das paredes de El Capitan e Half Dome, como também esteve na vanguarda da produção de equipamentos para escalada. Em 1966 ele e sua esposa Doreen associaram-se a Yvon Chouinard - o reconhecido empresário fundador da marca de roupas Patagonia. Em seu livro Lições de Um Empresário Rebelde, traduzido e lançado no Brasil pela editora Rocky Mountain, Chouinard relata parte dos nove anos que esta parceria durou:

Tom era um engenheiro aeronáutico que tinha um sentido aguçado para o design e a estética. Doreen tomava conta da contabilidade e da parte comercial do negócio. […] redesenhamos e melhoramos todo nosso material de escalada, tornando cada peça mais resistente, leve, simples e funcional. O controle da qualidade estava sempre presente em nossas mentes, pois a falha de qualquer equipamento poderia causar a morte de alguém, e, como éramos nossos melhores clientes, eram grandes as chances de que acontecesse alguma coisa com um de nós! […] Enquanto os outros fabricantes trabalhavam no aperfeiçoamento de um equipamento acrescentando algum item, Tom Frost e eu obtínhamos os mesmos resultados subtraindo - reduzíamos peso e volume sem sacrificar a resistência ou a capacidade de proteção. […] Depois de escalar a via The Nose, no El Captain, que estava intacta havia poucos verões, voltei para casa irritado com a degradação que vi. Eu e Frost decidimos que deveríamos eliminar progressivamente o comércio de pitons. Esse seria o primeiro grande passo de implicação ambiental que daríamos ao longo dos anos seguintes. Os pitons eram a base dos nossos negócios, mas estávamos destruindo as rochas que tanto amávamos. Por sorte havia uma alternativa aos pitons: os entaladores de alumínio, que podiam ser introduzidos com as mãos em vez de golpeados para dentro e para fora da rocha com um martelo. Escaladores britânicos os usavam em seus penhascos, mas, por serem equipamentos mais toscos, eram pouco conhecidos e considerados menos confiáveis no resto da Europa e nos Estados Unidos. Desenhamos nossas próprias versões, chamadas de Stoppers e Hexentrics, e as vendemos em pequenas quantidades até a chegada do primeiro catálogo da Chouinard Equipment, em 1972.

 
Making of do trabalho do fotógrafo Edson Vandeira enquanto o escalador Eliseu Frechou organiza o seu acampamento na parede da Pedra do Baú. Crédito: Edson Vandeira
 

Com o fim da sociedade, Tom e sua esposa mudaram-se para Boulder, no Colorado, para começar um negócio de equipamentos de fotografia. As fotos mais icônicas das escaladas nas décadas de 60 e 70 no Yosemite são de Frost. Em 1979 chegou ao cume do Ama Dablam numa expedição cinematográfica filmando para a ABC Sports. Outro fato histórico - e pouco conhecido - é que Frost foi o responsável por organizar e liderar o grupo que "lutou" contra o Serviço Nacional de Parques americano quando este tentou mudar de lugar o acampamento 4 - Camp 4 - no vale de Yosemite. Esta história, narrada no fantástico documentário Vertical Frontier - A History of the Art, Sport and Philosophy of Rock Climbing in Yosemite, conta que após a grande enchente de 1997 que inundou grande parte do vale, deixando o Camp 4 intacto, pois estava em solo elevado, o parque resolveu reconstruir as casas e escritórios atingidos no lugar do acampamento. O que poderia ter sido o fim do Camp 4, foi na verdade o início de uma boa disputa. Tom Frost contratou um advogado para representá-lo numa ação contra o Serviço Nacional de Parques. Logo, Royal Robbins, Yvon Chouinard e muitos outros entraram na briga, assim como o American Alpine Club, o Access Fund e outras organizações. “Se Tom se preocupa, eu também me preocupo” é uma das falas mais significativas do documentário. Numa jogada arriscada, mas inteligente, eles entraram com um pedido no National Register of Historic Places, algo no Brasil como o IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A resposta surpreendeu a todos: o NRHP aceitou o pedido, travando a luta jurídica nas instâncias do Judiciário. Em setembro de 1999, escaladores de diversas gerações se reuniram no Camp 4 para celebrar a vitória.

Uma vez no cume do Baú, suado após a árdua subida com o fardo pesado, eu, Vandeira e Marins esvaziamos todas as mochilas, jogando os equipamentos e cordas no chão. Havia pelo menos duzentos metros de corda, dezenas de mosquetões, freios, estribos e muitas fitas, além de todo o equipamento fotográfico e pessoal do Vandeira. No cume do Baú não existem árvores frondosas, apenas pequenos arbustos com, no máximo, a largura de um punho adulto. De maneira bem conservadora escolhemos 4 destas árvores para fixar as fitas de escalada, equalizando-as metros à frente para conectar 100 metros de corda fixa preparada para o rapel. A idéia era simples: o Vandeira rapelaria pela corda até avistar o Eliseu para registrar os últimos metros da conquista. Ficou claro, porém, que o local escolhido não era bom. O Eliseu estava mais para o lado e com aquele ângulo da luz, as fotos, segundo o Vandeira, não ficariam boas. Foi necessário que ele retornasse ao cume para movermos a ancoragem metros adiante para uma segunda tentativa. E lá foi ele novamente.

Sentei no chão, procurando espaço entre as parcas sombras. Abri meu lanche, bebi um pouco de água - que alívio! - e conversei por horas com o Marins, enquanto os dois trabalhavam pendurados no lindo paredão laranja e vertical do Baú. Quando os raios de luz tênues e avermelhados do pôr do sol encostaram no topo da pedra, Marins e eu nos despedimos, via rádio, do Vandeira e voltamos para o abrigo. Ele seguiria fotografando, pois queria - de qualquer maneira - alguns cliques noturnos. Eu fui para casa. Combinamos um encontro no dia seguinte após o almoço para ajudar na retirada do material. Como o Eliseu estaria no final da sua conquista e transportava outros tantos quilos de equipamentos, convocamos mais dois amigos - o fotógrafo Gabriel Tarso e Alexandre Brandão - para carregarem as mochilas para baixo.

O autor Antônio Calvo no cume da Pedra do Baú minutos antes do fotógrafo Edson Vandeira iniciar o primeiro rapel. O ângulo das fotos não ficariam boas neste lugar e, por isso, foi necessário mover a linha de rapel mais para o lado para uma segunda tentativa. Crédito: Antônio Calvo   Making of a partir do cume da Pedra do Bauzinho enquanto os fotógrafos Edson Vandeira e Gabriel Tarso preparam o voo de drone para captação de imagens aéreas. Crédito: Rodrigo Marins
     

Com o fim da empreitada e com a fogueira acessa no refúgio do Marins, brindamos o trabalho bem sucedido. Em meio ao calor do fogo, com as coxas doloridas pelo exercício, lembrei de uma fala do Jonh Long - escalador e autor americano - quando é questionado, numa das entrevistas do Vertical Frontier, sobre o significado de escalar para ele: “Ninguém em qualquer esporte, nenhum Super Bowl, nenhuma World Series pode tocar isso remotamente. É por isso que é o rei dos esportes.” Na roda entre amigos de montanha, procurei o meu trono e sentei para relaxar o corpo.

Antônio Calvo é empresário e guia de montanha. Possui a loja e agência de turismo Armazém Aventura, localizada em São Bento do Sapucaí - SP, aos pés da Pedra do Baú. Tem o apoio das marcas: Thule, Alpen Pass, Casa das Cordas e Acampamento Paiol Grande.

 


Boas aventuras,
Antônio Calvo
www.armazemaventura.com.br

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