Extremos
 
COLUNISTA ANTÔNIO CALVO
 
Espantando dragões
 
Texto e fotos: Antônio Calvo
4 de outubro de 2017 - 12:00
 
Carlos Alves, Nelson Barretta e Antônio Calvo no cume do Dedo de Deus.
 
  Antônio Calvo  

Não consegui encontrar a posição perfeita. A falta do conforto físico abalou o meu psicológico e eu tive um colapso mental. Não olhei para baixo, muito menos para o lado. Eu sabia que ali, a poucos metros de distância - um metro e meio, talvez dois? - encontrava-se um desfiladeiro com mais de 300 metros de altura. E a última coisa que eu queria era travar de vez. A parede da escalada não era totalmente vertical; era, sim, uma rampa, levemente positiva, cuja dificuldade era pequena comparada a outras escaladas que eu já fizera. Meus dois companheiros de cordada já haviam escalado por ali e esperavam logo acima, prontos para continuarmos a subida. Um deles até mesmo me dando segurança pela corda.

Eu estava no Dedo de Deus, uma montanha que sempre permeou os meus sonhos. Estava precisamente na variante Maria Cebola, aberta por Drahomir Vrbas e Hamilton Maciel em 1957, que, segundo Antonio Paulo Faria em seu livro A Escalada Brasileira, "veio a ser o trecho da escalada mais popular e bonito da Serra dos Órgãos" ou, como bem definiu o casal Cintia e Flavio Daflon no recente e belo livro 50 Vias Clássicas no Brasil, “um incrível e aéreo diedro que a deixou ainda mais bonita e interessante”. Faria ainda segue explicando que essa variante foi uma opção encontrada pela dupla para evitar o trecho da via original de 1944 chamada de Black Out: "uma chaminé interna que mais parece com exploração de caverna do que propriamente com escalada." Contudo, o Dedo de Deus fora escalado pela primeira vez em 8 de abril de 1912! Tal proeza foi realizada pelos irmãos Acácio, Alexandre e Américo de Oliveira, todos de Teresópolis, além de Raul Carneiro e do pernambucano José Teixeira Guimarães. Foram necessários três dias para alcançarem o cume, sendo que o primeiro foi gasto apenas na aproximação da montanha como descreve Faria:

 
O Dedo de Deus no centro da imagem. Foto: Fábio Fliess
 

O grupo fez levantamento na área para escolher o melhor caminho, aproveitando a experiência que Raul tivera com os alemães. Àquela altura, todos já sabiam dos planos do grupo e as torcidas foram formadas: uns achavam que não conseguiriam porque os estrangeiros não conseguiram; outros acreditavam que era possível e sonhavam com a conquista. Talvez o sentimento de patriotismo, incentivado pela vontade da população local, tenha levado aqueles rapazes a uma decisão quase suicida, pois eles não sabiam o que iriam encontrar pela frente. Manifestações populares patrióticas, religiosas e esportivas podem levar certos indivíduos a cometerem atos insanos. José Teixeira era ferreiro, planejou e fabricou 20 grampos com argolas, e, além desses, o grupo levava algumas cordas, brocas e marreta. Não tinham mosquetões. Na época, mesmo os europeus usavam material bastante rudimentar. Depois de muito planejamento e definição da melhor linha possível, começaram a subida no dia 6 de abril de 1912. Levaram o dia inteiro para chegar à base. Quem já escalou o Dedo de Deus pode imaginar a dificuldade de chegar a esse ponto naquela época.

No dia 8 de abril o grupo deu início à parte mais técnica da escalada. Os grampos usados tinham aproximadamente 25 mm de diâmetro e eram muito longos. Para escalar um lance difícil, eles amarravam um bambu bem grosso com degraus talhados, que funcionavam como escada. O bambu era amarrado ao grampo ou a outro apoio, e eles subiam nele para vencer o lance de escalada ou colocar outro grampo mais acima. Outra técnica utilizada era um escalador subir nos ombros dos outros, fazendo uma escada humana em forma de pirâmide. Por sorte as chaminés facilitaram a subida. E assim foram conquistando trecho por trecho até chegar ao cume. De qualquer forma, eles foram realmente muito corajosos porque o abismo que se vê quando se escala essa montanha é realmente de arrepiar, ainda mais em condições de frio excessivo. Segundo os jornais da época, além do frio foram necessários três dias para escalar.

O topo foi alcançado às 17h do dia 8 de abril de 1912. Uma fogueira foi acessa no alto da montanha para ser vista da cidade de Teresópolis, anunciando a conquista. Os escaladores foram recebidos como heróis e se tornaram manchete fora do Brasil e celebridades no Rio de Janeiro. A técnica de conquista utilizada por eles foi usada até a década de 1960. Todavia, não sabemos se essa técnica foi desenvolvida por eles, ou pelos alemães.

     
Por volta das 5h da manhã, à beira da trilha para o início da subida. Da esquerda para a direita: Nelson Barretta, Charlie Alves e Antônio Calvo. Aos pés do primeiro cabo de aço. Uma visão da imponente montanha.

Nelson Barretta organizando uma das cordas de 60m usadas pelo trio.

Uma bela visão, por entre a mata, do Parque Estadual dos Três Picos, RJ.
Charlie Alves na trilha íngrime que possui cordas e cabos de aço para ajudar na subida. Nelson Barretta guiando o início da terceira enfiada.

A Verruga do Frade logo à direita na foto. Outra cena impressionante do visual da Serra dos Órgãos. Antônio Calvo (esq.) e Charlie Alves (dir.) na P2.

Uma foto que representa bem a altura e exposição da escalada. Nelson Barretta no final de terceira enfiada.
     

Aos poucos fui ganhando metro após metro. Cansado com o esforço físico, parei no terço final para descansar. Consegui apoiar a barriga na rampa e recuperar um pouco de ar. Quebrado mentalmente, eu não conseguia visualizar a linha de escalada mais fácil levemente à direita - e também mais próxima do desfiladeiro! - e muito menos prestar atenção nas dicas dos parceiros Nelson Barretta e Carlos “Charlie” Alves. Me lembro bem do lance final deste trecho, um pequeno bloco de pedra entalado na fenda que serviu de apoio para as cansadas mãos. Depois foi só ficar de pé e entrar à esquerda no que viria a ser o próximo lance de chaminé da via. Ainda estávamos na metade da escalada - na quarta parada de oito - e eu perdera quase todas as energias.

Aos olhos do Charlie, numa narrativa extremamente cuidadosa e educada para não "denunciar" o amigo aqui, a escalada ocorreu da seguinte maneira:

Agora que são elas! A enfiada mais linda e também a mais exposta ficaria ao meu cargo. Nessas horas não se pensa muito, pois a preparação anterior e a concentração mental sempre são testadas; bora prá cima então. No início me atrapalhei um pouco com a corda dupla nos P´s, mas conforme foi evoluindo, fui me encaixando. Quando se "vira a esquina para fora da janela", na parte fendada do diedro, você fica sozinho e trata-se de uma grande experiência. Após proteger com Camalot #2 e #3 o final exposto da cordada, cheguei na parada que é feita em uma árvore e chamei meus parceiros. Essa enfiada dá um bom trabalho pois a mochila atrapalha, vir de segundo é ruim e de terceiro limpando, então, soma tudo; mas é incrível!"

 
A primeira enfiada de escalada da via. O Charlie já estava guiando, o Barretta (foto) seguiu em segundo e o Antônio foi o terceiro.
 

"Conforme foi evoluindo, fui me encaixando" foi exatamente o que não aconteceu comigo... O Barretta dava risadas, era o único do trio que já passara por ali algumas vezes e sabia o que esperar. E a narrativa do Charlie prosseguiu:

Na parada 4 seguimos para a primeira chaminé completa da via. O Barretta entra na dianteira e "minhocando-se" protege em móvel até encontrar o único P da enfiada, nos levando até a parada 5. Para quem não está habituado com chaminés, essa é um bom desafio; fazia tempo que não entrava em uma, portanto achei muito boa a guiada do Barretta que tocou rapidinho.

A parada 5 é outra chaminé menor seguida de um lance de travessia em artificial A0, um "pulo do gato", seguida de outra chaminé apertada, apertada... Quem guiou nestes lances foi o Antônio; praticamente não há proteções fixas, somente proteções móveis, a não ser no A0. Assim como na primeira chaminé optamos por içar as mochilas, demora um pouco, mas achamos melhor assim e, então, chegamos na caverna da parada final.

Neste ponto fizemos um pequeno lanche e descansamos um pouco. A via exige muita energia e já sentíamos o cansaço nos atingindo, bastou uma breve pausa e o Antônio iniciou os lances em bicos de pedra que leva para duas opções: uma chapeleta à direita ou uma fenda à esquerda. A navegação e o raciocínio em grupo é muito importante para evitar erros portanto, na dúvida, ele desceu; analisamos o croqui com calma e ficou claro então que a direção era pela fenda. Assumi a ponta da corda e finalizei essa enfiada muito legal protegendo com pequenas e médias peças Nut´s, finalizando na parada 7 aos pés da escada que leva ao cume.

     
O início da variante Maria Cebola onde o autor teve um “colapso mental”.

O autor no início da rampa da Maria Cebola ao lado do desfiladeiro com mais de 300 metros.

A última enfiada da via. Nelson Barretta fazendo a segurança do Charlie Alves logo após o Antônio Calvo desistir da guiada pela pequena fenda à esquerda.
Um dos grampos originais da conquista de 1912, aqueles com 25mm de diâmetro. Charlie Alves observando a subida do Nelson Barretta na última enfiada da via. Nelson Barretta e seu bom humor!

Placa em homenagem à conquista da montanha.

Charlie Alves assinando o livro de cume.

Uma “pintura” de luz e sombra à beira do assustador rapel da via Teixeira.
     

Mais uma vez o Charlie foi polido à beça. A verdade, preciso confessar, fui eu que desci porque estava me borrando de medo e extremamente cansado e não porque "a navegação e o raciocínio em grupo é muito importante para evitar erros, portanto na dúvida ele desceu". Eu joguei a toalha, não tinha mais condições de guiar um lance daquele. Naquele momento, porém, seria mais fácil terminar a escalada, chegar no cume e descer rapelando por uma outra via ao invés de voltarmos pelo mesmo caminho. Para o meu alívio, estávamos a poucos metros do final. Na verdade, a poucos metros de completar 50% da escalada, pois ainda teríamos que descer tudo depois!

A comemoração no topo foi singela. Assinamos o livro de cume e com trinta minutos já estávamos prontos para descer. Como tínhamos duas cordas de sessenta metros, foi possível rapelar pela via Teixeira - aquela de 1912 - e admirar o quanto o quinteto fora corajoso e hábil na conquista de Dedo de Deus. Esse primeiro lance de rapel, diga-se de passagem, é assustador! Mas chega de escrever sobre isso... Foram mais de quinze horas de atividade entre o início e o fim da trilha e eu estava muito feliz e realizado. O renomado escalador americano Royal Robbins, falecido este ano aos 82, escreveu em sua biografia To Be Brave sobre a primeira vez que ele escalou: "Quando toquei a rocha ela, por sua vez, tocou meu espírito, despertando um desejo inefável, como se eu tivesse agitado uma lembrança escondida de existência anterior, uma muito feliz."

 
Mochila Thule Stir 20 litros, gentilmente cedida ao autor para teste durante a aventura.
 

Uma semana exata depois - "tocado pelo espírito da rocha" - voltei a escalar com o Charlie e com outro amigo na Pedra do Bauzinho aqui em São Bento do Sapucaí, quintal de casa. Escolhemos a via V de Vitória que eu não conhecia e que segundo o Manual de Escaladas Pedra do Baú e Sul de Minas do Eliseu Frechou está classifica como 6º VIsup IX/A1. Acabei guiando algumas enfiadas e finalmente consegui espantar aqueles dragões. E mais uma vez lembrei de Robbins que resumiu bem essa mistura de sentimentos ao escrever que “não é se você está ganhando ou perdendo. É o quanto você está se dedicando? As coisas boas não conduzem necessariamente a uma atitude positiva. Mas uma atitude positiva leva a coisas boas.”

Obrigado aos parceiros Charlie e Barretta pela positividade nesta aventura. Obrigado à Thule pelo apoio ao ceder para teste a mochila Stir 20l.

Boas aventuras,
Antônio Calvo
www.armazemaventura.com.br

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