Extremos
 
COLUNISTA ANTÔNIO CALVO
 
A morte de Doug Tompkins
 
Texto: Antônio Calvo
26 de março de 2016 - 17:35
 
Andreas Martin, Diretor Executivo da Outward Bound Brasil, exercitando-se com um remo do tipo Groelandês. Foto: Hamilton Fernandes
 
  Antônio Calvo  

Uma densa camada de neblina cobria a Serra do Mar. Ao sul, eu não enxergava mais a Ponta da Cajaíba no continente. A Ilha Grande, ao norte, também estava envolta na mesma situação. A ondulação do mar, constante de leste para oeste, já derrubava os primeiros marinheiros. Eu ainda aguentava forte, mas não por muito tempo. Tentei comer algumas bolachas de água e sal e hidratar. Mas aquele pedaço de chocolate como sobremesa me derrubou... desceu como uma bomba. Em segundos eu estava vomitando todo o café da manhã. Que por sinal, fora uma maravilhosa sobra do jantar: arroz com calabresa! A única coisa que eu queria era sair logo dali, parar de remar, pisar em terra firme.

Remávamos caiaques oceânicos na Baía de Angra dos Reis - RJ. Neste dia, o longo cruze entre a praia de Itaóca, no continente, e a Ilha Grande, fora planejado para ficarmos grande parte do dia na água. Ou melhor dizendo, para expandirmos a nossa zona de conforto. Eram 12 milhas náuticas, cerca de 22 quilômetros, que separavam o continente da ilha. A ondulação não sossegava, a persistência me irritava. Aos poucos, quase metade do grupo - por volta de cinco pessoas - enjoou, incluindo eu. Uma das poucas coisas que eu conseguia pensar, ironicamente, era sobre a morte de Doug Tompkins num acidente com caiaque oceânico, na Patagonia chilena, durante uma travessia no lago General Carrera. Doug foi co-fundador da marca de equipamentos para atividades ao ar livre The North Face - TNF - e nas últimas décadas ficou conhecido como um forte ativista ambiental. Li algumas notícias em dezembro, logo após a sua morte, e isso ficou na cabeça.

No início dos anos 60, Doug abriu em São Francisco, na California, a TNF como uma loja de equipamentos para esportes de aventura. Vendia um pouco de equipamento de escalada, saco de dormir e barracas que eram costuradas nos fundos do imóvel. Nesta mesma época, Yvon Chouinard - o futuro fundador da marca Patagonia - produzia, manualmente como ferreiro, equipamentos de escalada como pitons e mosquetões sob a marca Chouinard Equipment - que anos depois se tornaria a Black Diamond. "Nós e nossos amigos éramos os clientes" escreveu Yvon no texto Fun Hogs no livro 180º South Conquerors of the Useless. Como estes equipamentos eram comercializados na loja de Doug, ambos se tornaram bons amigos. Em 1968 Doug vendeu a empresa e convidou Yvon para viajar à região da Patagonia. "Você nunca sabe", continuou Yvon, "quando uma aventura irá influenciar o resto da sua vida. Em 1968, quando Doug Tompkins propôs para dirigirmos da Califórnia até a Patagonia - naquele tempo um nome tão remoto e sedutor quanto Timbuktu - nenhum de nós tínhamos idéia que seria a viagem mais importante que teríamos em nossas vidas. O objetivo era abrir uma nova rota numa obscura torre de granito chamada Fitz Roy e nos divertir ao longo do caminho. A experiência nos levou a um improvável destino para um grupo de dirtbags: nos tornamos filantropos."

     
     

Essa viagem, protagonizada no filme Mountain of Storms - disponível no YouTube - e depois no livro Climbing Fitz Roy 1968, deu o clic na cabeça de ambos. "O Doug me disse que ter passado muitos de nossos anos de formação em proximidade com a beleza da natureza, permitiu uma apreciação que entrou em nossos ossos. Aprecie algo por tempo suficiente e você aprende a amá-la. E quando você ama alguma coisa, você também quer cuidar e proteger." E seguiu:

"Nos anos 80, a empresa Patagonia começou a doar 1% do valor de suas vendas à instituições ambientais para preservar um pedaço de terra aqui ou um trecho de rio lá. Por volta do mesmo período, reconhecendo o dano ambiental que os negócios causam, a Sprit - empresa de vestuário feminino que Doug abriu depois de vender a TNF e onde ganhou seu primeiro milhão - introduziu a sua pioneira linha de roupa feminina "eco-collection", produzida com fibras e corantes naturais e algodão orgânico. Ao final desta década, quando Doug e Susie se divorciaram, ele vendeu a sua metade da empresa e colocou o dinheiro em sua própria fundação. No início ele seguiu a mesma estratégia da Patagonia, doando para pequenos e ativos grupos ambientalistas. Então ele arquitetou um plano para um modelo totalmente diferente. Terra na Patagonia era barata e ameaçada pela construção civil e pela indústria de gás e petróleo. E se ele usasse os recursos da fundação para comprar terras ameaçadas e protegê-las?

Ele comprou diversos pedaços, incluindo uma fazenda na beira de um fiorde que se tornaria casa para ele e sua segunda esposa, antiga CEO da Patagonia, Kristine McDivitt. Ele então começou a comprar propriedades contíguas que eventualmente uniram-se combinando no Pumalín - quase 800.000 acres, o maior parque particular do mundo.

Kris se juntou à Doug em seus projetos de preservação na Patagonia, incluindo um novo esforço pessoal chamado Conservación Patagónica. Ela queria atrair o suporte de filantropos para ajudarem a comprar grandes propriedades que seriam, então, devolvidas ao povo chileno e argentino. Seu primeiro projeto foi na costa do Atlântico, ao norte do Estreito de Magalhães. Hoje, Monte Leon é o primeiro e único Parque Nacional Marítimo argentino, protegendo 26 milhas de costa marinha selvagem, casa de uma colônia de elefantes marinhos e outra de pinguins com aproximadamente meio milhão de indivíduos. Seu projeto atual é criar o Parque National Patagonia, localizado aos arredores do magnífico Vale Chacabuco, que corta transversalmente através dos Andes, provendo habitat para uma mistura de espécies de áreas encharcadas e também de biomas mais secos."

 
Doug Tompkins
 

Foi Doug, junto com Royal Robbins e Reg Lake, os responsáveis por introduzirem Yvon ao caiaque de águas brancas - corredeiras - no início dos anos 70. Este grupo, auto denominado Do Boys, foi responsável pelas primeiras descidas de alguns rios nos EUA, como o Clarks Fork no Yellowstone. Uma descida técnica com corredeiras de nível V. Nesta mesma época, Yvon e Greg Liddle - seu shaper de pranchas de surf - criaram um caiaque para surf. Partiram da premissa que eram surfistas que queriam pegar onda de caiaque, e não o oposto, canoístas que queriam surfar. E assim, nascia mais uma modalidade do esporte!

Fica claro, portanto, que este grupo de amigos tinha muita experiência em diversas atividades ao ar livre. Seja nas montanhas escalando, seja nos rios ou oceanos remando. Todos os anos, o seleto grupo - Yvon, Doug, Rick Ridgeway e companhia - viajavam para a Patagonia atrás de algo para fazer. Atrás de uma expedição para realizar ou terras para comprar. Atrás do grande amor de suas vidas: a Natureza.

Era Rick que acompanhava Doug no caiaque duplo quando o acidente aconteceu. "Doug e eu tínhamos um caiaque duplo com um leme exigente. No terceiro dia de remada um vento cruzado crescente criou condições difíceis e com o nosso leme defeituoso, Doug e eu não fomos capazes de evitar uma onda que nos virou." afirmou Rick em seu texto To Those Who Loved Doug, publicado dias após o acidente no Blog da Patagonia. E continua:

"Nós sabíamos imediatamente que estávamos em uma situação grave. Como o vento e a correnteza nos empurrou em direção ao centro do lago, nós não tivemos nenhuma maneira de saber se os nossos companheiros nos outros barcos - que estavam à frente de nós e fora de nossas vistas em torno de um ponto rochoso que tínhamos como objetivo - sabiam da nossa situação. Percebemos que tínhamos cerca de 30 minutos a mais para sobreviver, a temperatura da água era talvez 38 ou 40 graus Fahrenheit - 3,5 ou 4,5 Celsius. Nós tentamos e falhamos quatro vezes para endireitar o caiaque, o vento e as ondas eram fortes demais para manter o equilíbrio e o caiaque estava muito alagado. Eventualmente, tivemos que decidir se tentaríamos nadar ou ficaríamos com o caiaque virado. O caiaque, empurrado por uma corrente perpendicular, estava à deriva em direção ao centro do lago. Ficar com ele foi colocando-nos em uma ainda mais difícil, se não impossível, posição.

 
O cruze, em plena neblina, entre o continente e a Ilha Grande. Foto Hamilton Fernandes
 

Nós decidimos abandonar o barco e começamos a nadar em direção ao ponto rochoso. Foi difícil e eu percebi, contra a corrente, que provavelmente era impossível chegar ao objetivo. O tempo também estava contra nós. Eu estava ficando lento e mesmo com um colete salva-vidas era empurrado para debaixo das ondas maiores. Eu podia ver Doug e assumi que ele estava na mesma situação. Eu estava hipotérmico e começando a me afogar. Por alguns minutos eu desisti - deixei tudo como estava - mas em seguida retruquei. Então eu vi nossos companheiros remando em nossas direções contra o vento, agora com cerca de 40 nós - 75 Km/h - e com rajadas muito forte para além de 50 nós - 90 Km/h - e muito mais (mais tarde confirmadas a partir de medições do tempo para o lago naquele dia).

Dois dos nossos companheiros, Jib Ellison e Lorenzo Alvarez, alcançaram-me em um caiaque duplo. Eu agarrei a alça de popa, ainda na água, enquanto remavam contra o vento para chegar na calmaria atrás do ponto rochoso. Entre as ondas e o vento não havia como subir no caiaque. Eu tive que me segurar profundamente - o mais forte em toda a minha vida. Pareceu durar uma eternidade. Eu foquei em minhas mãos segurando a alça até que eu percebi que estava sobre uma rocha. Então eu perdi a consciência e minha memória seguinte era de estar deitado na frente de uma fogueira.

 
Carta náutica da Baía de Angra do Reis. Foto: Antônio Calvo
 

Doug não teve tanta sorte. O nosso outro companheiro, Weston Boyles, deu um esforço supremo para tentar levar Doug para segurança, mas foi incapaz de superar a força do vento e da correnteza. Doug resistiu por mais meia hora, nadando tanto quanto ele poderia, mas perdeu a consciência. Weston arriscou a própria vida para manter a cabeça de Doug acima da água enquanto ele lutava para chegar à costa. No momento em que eles desembarcaram, Doug estava muito hipotérmico para sobreviver."

Doug foi enterrado no lugar que ele mais amava, a Patagonia; mais especificamente no Parque Nacional Patagonia que fora iniciado com a compra de uma grande estância de ovelhas e, por isso, o cemitério da fazenda tornara-se parte desta nova infra-estrutura.

 
Roteiro de viagem
 

Eu sabia que as águas tropicais da nossa costa não são tão frias assim, e virar o caiaque na Baía de Angra dos Reis não me deixaria hipotérmico. Mas era preciso chegar em terra firme para o enjoou passar. E quando pisei na praia, lembrei - mais ou menos - das últimas palavras do Rick em seu texto: "Doug está ajudando-nos a perceber que o primeiro compromisso é o da beleza, com a beleza vem o amor, e só com amor é que podemos esperar se aproximar de sua tenacidade inextinguível para proteger o que é bonito, o que é selvagem."

Boa remada à todos,
Antônio Calvo
www.armazemaventura.com.br

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