Extremos
 
COLUNISTA ANTÔNIO CALVO
 
James Caird
 
Texto: Antônio Calvo
10 de agosto de 2015 - 10:20
 
Réplica em tamanho real do James Caird exposta no "Museu Nao Victoria". Foto: Antônio Calvo
 
  Antônio Calvo  

Avistei ao longe, tombada à quarenta e cinco graus sobre o terreno de cascalho às margens do Estreito de Magalhães, uma pequena embarcação de madeira com dois mastros. Nada de especial num rápido olhar, mas ao observar o nome em tinta preta sobre o casco toda a sua história me veio à memória num piscar de olhos. Eu não sabia que um dia toparia com tal objeto e que o mesmo me deixaria emocionado tamanha a proeza que realizou. A sua história faz parte de uma espetacular aventura em mares austrais.

Após um ano, quatro meses e dezenove dias presos na Antártica o pior ainda estava por vir. Era necessário partir do frágil abrigo nas praias da Ilha Elefante nas Shetland do Sul deixando vinte e dois tripulantes para trás e navegar nordeste por 1.500 quilômetros num dos mares mais agitados e perigosos deste planeta rumo à Geórgia do Sul, cujas praias abrigavam uma estação baleeira e ali encontrar resgate. Era 24 de abril de 1916 e a travessia de dezessete dias do James Caird entrou para a história como uma das proezas mais bem executadas no mundo das explorações.

Os seis homens a bordo do pequeno J. Caird - uma homenagem a Sir James Key Caird, um dos patrocinadores da expedição - estavam confiantes. Seu líder, Sir. Ernest Shackleton, os comandava de maneira otimista desde o início da expedição em 3 de agosto de 1914 quando o navio Endurance recebeu autorização do Primeiro Lorde do Almirantado, Winston Churchill, para zarpar da Inglaterra.

O J. Caird era um bote salva vidas de madeira com 6,9 metros de comprimento e 1,8 metros de largura. Originalmente robusto e concebido para a indústria baleeira ele era uma alternativa aos barcos - cutters - noruegueses à motor presente no Endurance, pois estes além de pesados, consumiam muito combustível. A embarcação foi brilhantemente modificada e adaptada pelo carpinteiro escocês Henry (Harry) McNish para uma possível travessia de mar logo depois que o Endurance ficara preso no gelo e a Expedição Imperial Trans-Antartica - com o objetivo de cruzar o continente Antártico passando pelo Pólo Sul - era cancelada. ‘Chippy’ como era conhecido utilizou madeiras disponíveis do Endurance para aumentar 38 cm a altura do casco, enquanto Tim McCarthy e Alf Cheetham construíam um deque criando uma estrutura de treliça feita a partir de quatro trenós emprestados por Nansen - outro renomado explorador polar que emprestara seu navio Fram à Amundsen para sua expedição de conquista ao Pólo Sul em 1911 - compensados de madeira venesta de tampas de embalagens e uma cobertura de lona. As juntas entre as pranchas do J. Caird foram calafetadas com pavio de lamparina à óleo, fibras de lã de meias desfiadas, tinta a óleo e cera de selos pelo artista George Marston. Shackleton descreveu que a cobertura do J. Caird tinha "uma forte semelhança com cenário de palco".

     
     

"Se nós não chegássemos à Geórgia do Sul naquele período certamente não chegaríamos nunca".

A embarcação foi reforçada com o mastro do Dudley Docker - um dos outros quatro barcos de emergência - amarrado por dentro, ao longo do comprimento da quilha. Foram instalados dois mastros transformando o J. Caird num ketch, um veleiro de dois mastros, onde o anterior é maior que o mastro posterior. Foram adicionados ainda aproximadamente 1.000 quilos de peso “morto” como lastro, pois Shackleton sabia que as fortes e altas ondas do Drake poderiam virar o pequeno barco. O grupo levava provisões para as seis pessoas por um mês como lembrou Shackleton depois do ocorrido: "se nós não chegássemos à Geórgia do Sul naquele período certamente não chegaríamos nunca".

Foi instaurado um rodízio das posições à bordo, já que o bote não oferecia abrigo confortável para os seis passageiros. Enquanto dois ou três ficavam de olho no relógio dentro do pequeno espaço na proa coberto pela lona, um cuidava do leme, outro das velas e o último esgotava a água que entrava constantemente no barco. A dificuldade na troca de lugar ao término de cada relógio seria, nas palavras de Shackleton, "ter tido o seu lado cômico se não tivesse nos envolvido em tantas dores e sofrimentos”. Suas roupas, projetadas para andar de trenó sob a neve e o gelo da Antártica, estavam longe de serem à prova d’água, o contato repetido com a gelada água do mar deixava suas peles dolorosamente assadas.

As condições climáticas que dificilmente são favoráveis naquela região não permitiriam fáceis tomadas do sextante - instrumento de navegação marítima constituído pela sexta parte de um círculo, isto é, 60º, e que serve para medir a distância angular dos astros e a sua altura acima do horizonte - porém, Shackleton tinha muita fé nas habilidades de Worsley como navegador, especialmente sua capacidade de trabalhar as posições em circunstâncias difíceis. Worsley escreveu mais tarde: "Sabíamos que ia ser a coisa mais difícil que já tinhamos empreendido, o inverno da Antártica havia se estabelecido e estávamos prestes a atravessar um dos piores mares do mundo”.

Shackleton instruiu Worsley para navegarem rumo norte ao invés de seguirem diretamente para a Geórgia do Sul, pois era preciso se livrar do campo de gelo e icebergs que estavam começando a se formar. No amanhecer do dia seguinte, eles navegavam em mar agitado e ventos de força 9 segundo a escala Beaufort que vai de 1 a 12! O sucesso da navegação dependia das habilidades de Worsley e sua primeira observação com o sextante só foi possível depois de dois dias, ainda estavam a 237 quilômetros ao norte de Elefante. O curso agora fora mudado diretamente para a Geórgia do Sul, haviam entrado nas agitadas águas do Drake.

A segunda observação foi no dia 29 de abril e mostrou que tinham navegado 441 quilômetros. A partir daqui, as tomadas com o sextante se tornaram como Worsley lembrou “uma feliz brincadeira de adivinhação”, uma vez que o tempo piorou e o J. Caird só flutuava devido ao constante esgotamento da água que entrava sem parar. Com as baixas temperaturas do ar o spray do mar congelava instantaneamente nas velas, cordas e lona, forçando os homens a se equilibrarem na parte externa para remover o gelo e liberar o sistema de polias e roldanas. Sem condições de navegar Shackleton ordenou que jogassem uma âncora de mar detendo-os por mais dois dias. Mesmo assim a terceira tomada do sextante, uma manobra espetacular de Worsley, os colocou a 460 quilômetros da Geórgia do Sul. A travessia minava as poucas forças que restavam dos homens.

     
     

No dia 5 de maio o tempo voltou a piorar. Durante o dia seguinte e sem conseguir utilizar o sextante Worsley estimou - baseada na posição anterior, rumo e velocidade atual - que estavam a 213 quilômetros da ponta oeste da Geórgia do Sul. No dia 7 Worsley informou Shackleton que seus cálculos poderiam conter um erro de 16 quilômetros e temendo que os ventos de sudoeste os empurrassem para longe da ilha o chefe ordenou uma pequena mudança de rota para que pudessem alcançar o lado desabitado da ilha. Ainda seria preciso navegar ao redor da Geórgia do Sul para alcançar a estação baleeira. “As coisas estavam ruins naqueles dias”, escreveu Shackleton, porém "os momentos marcantes foram aquelas em que cada um de nós recebia a nossa caneca de leite quente durante as longas, amargas observações da noite”. Tarde neste dia, o grupo observou as primeiras aves sub-antárticas, incluindo o cormorão uma ave conhecida por não se aventurar longe da costa. Dito e feito, logo depois das 12h do dia 8, a Geórgia do Sul foi avistada.

Porém, atracar às margens da ilha não foi nada fácil. De contorno rochoso e acentuado a Geórgia do Sul não oferece muitos ancoradouros naturais, mas uma baia de aproximadamente 64 metros de largura na costa logo chamou a atenção. Eles acamparam durante a noite vigiando o barco solto nas ondas logo depois que a corda que o prendia arrebentou. O lugar recebeu o nome de Cave Cove e ali o grupo permaneceu alguns dias se recuperando da dura travessia, enchendo a barriga de albatroz e água doce que descia das geleiras. A travessia por mar, contudo, só acabaria dias depois quando o grupo navegou até a Baia King Haakon onde finalmente o James Caird foi “aposentado".

Mas a aventura não havia acabado, ainda era necessário cruzar a ilha à pé numa viagem de 51 quilômetros por geleiras e montanhas. Shackleton, Worsley e Crean caminharam por 36 horas até encontrarem a estação baleeira Stromness que tanto buscavam. Meses depois todos os tripulantes foram resgatados e Shackleton se gabava de não ter perdido sequer um só homem sob seu comando.

 
James Caird original exposto no Dulwich College a escola onde Shackleton estudou. Foto: Dulwich College
 

Eu também me gabava daqueles dias de janeiro, caminhando no terreno de cascalho em Punta Arenas no Chile, ao tirar uma foto da réplica 1:1 do James Caird. Emocionado em cruzar com tal objeto, bastou colocar a cabeça por baixo da lona de cobertura do deque e observar o pequeno espaço interno para sentir um frio na barriga. Uma daquelas sensações do tipo “ainda bem que não foi comigo”.

A réplica está no Museu Nao Victoria que surgiu com o objetivo de construir e preservar uma réplica 1:1 da Nao Victoria, uma das embarcações da expedição de Fernando de Magalhães ao redor do mundo. Com a expansão do museu, além da Nao e do J. Caird ainda é possível conhecer outras réplicas como o Goleta Ancud - responsável por trazer os primeiras colonos à Patagonia chilena - e o HMS Beagle ainda em construção - um brigue da classe Cherokee que sob o comando do capitão Robert Fitz Roy levou o jovem naturalista Charles Darwin numa viagem ao redor do mundo dando-lhe a oportunidade de criar os fundamentos da sua teoria de Seleção Natural.

Enfim, um daqueles museus que vale a pena colocar em sua lista na próxima viagem.

Boas aventuras,
Antônio Calvo
www.armazemaventura.com.br

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