Extremos
 
COLUNISTA ANTÔNIO CALVO
 
Canionismo na Serra da Mantiqueira
 
Texto: Antônio Calvo
20 de junho de 2016 - 12:00
 
À caminho da nascente na bela Serra da Mantiqueira. Foto: Ion Davi
 
  Antônio Calvo  

O nascer do sol na Serra da Mantiqueira sempre me fascinou. Acho que o tom amarelado - meio alaranjado - e aquela luz suave das montanhas, tocam o meu coração. É uma sensação… Algo que me acalma. Os campos de altitude, não posso negar, ajudam a pintar a paisagem. E claro, sem esquecer, o frio característico; como eu adoro esse clima! A caminhada no topo da serra nos levou direto para a nascente do rio que tínhamos como objetivo. O primeiro passo dentro da drenagem, no entanto, me fez acordar. A água fria me tirou daquele torpor. Olhei em volta, vi alguns companheiros de aventura e notei o corredor verde da vegetação ciliar em torno da nascente. Um espetáculo da natureza. Os tons de verde claro e escuro misturados à luz matinal transformavam aquele pequeno córrego num ambiente perfeito para meditação, tipo mestre Zen Budista.

"Não tenho tempo a perder”. Eu estava no pelotão do meio e era necessário alcançar as primeiras pessoas do grupo. Cada metro caminhado horizontalmente dentro da nascente significavam alguns centímetros a mais em baixo da água. Cruzar a linha da cintura é sempre o mais doloroso, molhar as costas então, nem se fala, mesmo usando armadura completa de neoprene e um casaco impermeável por cima, além de meias grossas de lã. Na cintura eu ainda vestia cadeirinha de canionismo e carregava diversos mosquetões, freio, fitas e acessórios. Na mochila, uma garrafa térmica com chá, comida e outros tantos equipamentos para uma pernoite na serra.

Quando alcancei o pelotão da frente, eles já trabalhavam para montar um plano de ataque. Era o primeiro rapel do dia, uma descida de 130 metros de altura. Era, também, a conquista da parte superior do cânion: seríamos os primeiros seres humanos a descer por ali! A primeira chapeleta foi fixada para montar o corrimão de acesso até a borda do Cachoeirão - nome certeiro desta enorme cachoeira que fica no município de Guaratinguetá, SP. Dalí, outras duas ancoragens, estrategicamente colocadas, nos jogavam para o incrível abismo da borda leste da Serra da Mantiqueira. Foram necessários três rapeis para vencê-lo: 70, 20 e 40 metros cada um.

     
     

Eu estava participando como aluno de um curso Nível II de Canionismo. Esse é um esporte novo em minha vida. Ele sempre esteve por perto nas narrativas e aventuras dos amigos Humberto Medaglia, Ion David e Fábio Ciminelli, proprietários respectivamente das empresas Aimbere, Vida ao Ar Livre; Travessia Expedições e Inhangatu, Turismo de Aventura, mas eu nunca tinha lhe dado muita atenção. Quando me dei conta - depois de guiar uma caminhada que teve uma seção de canionismo no final - fui fisgado. Ingenuamente, sempre achei que canionismo era descer uma ou outra cacheira de rapel. Não, engana-se quem pensa assim… O canionismo é um esporte altamente técnico, preciso e belo. Mistura diversas técnicas de outros esportes de montanha como o próprio montanhismo, a escalada e a espeleologia. De bobo e ingênuo ele não tem nada. Por que eu demorei tanto tempo para me jogar nisso?

Os primeiros relatos de exploração de cânions e desfiladeiros são de 1888 com a travessia da gruta de Bramabiau pelo francês Édouard Alfred Martel, na região do Gard na França. Martel também foi pioneiro ao fundar a primeira Associação de Espeleologia da França, impulsionando as primeiras pesquisas científicas nos Pirineus sobre hidrologia e biologia de cavernas, consolidando as técnicas verticais que possibilitaram o surgimento do esporte. Porém, somente nos anos 1970 com a evolução dos equipamentos de progressão em corda, aperfeiçoados para a exploração de cavernas, é que se tem início a exploração sistemática de cânions e rios em garganta. E o que era então uma espécie de “espeleologia a céu aberto”, ganha adeptos que começam a se dedicar exclusivamente a essa nova atividade. Nasce, assim, este magnífico esporte: uma atividade derivada tanto da espeleologia como do montanhismo que passa, então, a existir como esporte autônomo, com técnicas, equipamentos e objetivos próprios.

No Brasil há relatos de excursionistas gaúchos que realizavam, desde de 1950, a travessia de cânions como o Itaimbezinho na Serra Geral, divisa com Santa Catarina. Mas, apenas nos anos 90 e inspirados por publicações européias, a atividade se fortaleceu em terras tupiniquins. A atuação de um grupo paulista de exploradores de cavernas foi fundamental nessa fase inicial. Com a ajuda de espeleólogos de Ponta Grossa, no Paraná, o grupo explorou o rio Quebra-Perna, descendo os 30 metros da cachoeira do Buraco do Padre que tem início numa caverna e cai num poço com enorme clarabóia. Em 1996, organizado por Carlos Zaith - que viria a se tornar um ícone do canionismo brasileiro - foi realizado o primeiro rapel na cachoeira da Fumaça, na Chapada Diamantina, com seus 340 metros de desnível. Em 1997 a travessia do Cânion Raizama, na Chapada dos Veadeiros, foi um novo marco no Brasil: o registro da primeira exploração brasileira nos moldes do canionismo moderno.

A logística do grupo me prendeu entre o segundo e o terceiro rapel do Cachoeirão - a dinâmica dentro de um cânion é fascinante: o primeiro grupo de pessoas que chega num obstáculo, prepara-o para o resto da equipe. Quando todos passam por ali, este grupo desce, recolhe as cordas e equipamentos e segue adiante. Ao chegar no obstáculo seguinte, fura a fila e vai lá para a frente reiniciar todo o processo. Por isso, fiquei ali para “soltar" os companheiros de curso na corda do rapel de 40 metros. O frio era intenso, o corpo tremia e os dentes batiam. A neblina que nos envolvia não deixava que os primeiros raios de sol penetrassem para nos abraçar. Ficar parado era a pior coisa que poderia acontecer. "Eu preciso me esquentar", falei. Enquanto esperava o resto do grupo passar por ali, tentei me esconder atrás de um bloco de pedra. Foi inútil. A força dos 90 metros de água batendo no platô de pedra era tanta que borrifos de água deixavam o chuveiro aberto 24h por dia. E o vento, para meu desespero, soprava mais água para cima de nós. Na introdução do Livro de Canionismo do Explorador Vertical, Sergio Beck relata bem este e outros desafios: “Estes problemas a que o canionista está exposto geralmente estão relacionados à vertical, ao rio e à exposição à água. A hipotermia é o primeiro e mais óbvio risco, mas exaustão e até desidratação tampouco são raros."

     
     

Horas depois, já no pé do Cachoeirão, uma sensação de alívio. Olhar para cima e analisar a rota de descida me deixou animado. A cachoeira era uma estrada na encosta da serra. “A mesma água viva e paredes de rocha que para os não iniciados representam apenas perigo, para os ratos de rio são simplesmente jardins, repletos de encantamento e fascinação”, bem lembrou Beck. De repente, o som das águas silenciaram, parecia que o pior já tinha passado. O barulho da minha própria respiração era o único som que me chamava atenção. Lembrei da primeira corda e cadeirinha de escalada que comprei na vida, lá pelos idos de 1990, em Paris, na França, e empolgado com o presente, eu e meu irmão esperávamos todos irem dormir no hotel apenas para nos dependurar no vão da escada interna.

Mas o dia ainda foi longo e trabalhoso. Estávamos preparados para dormir dentro do cânion, mas acho que eu não estava preparado para os mais de dezessete - 17!!! - rapeis ao longo dos dois dias de expedição. A noite chegou e com ela a decisão de parar para procurar um local de acampamento. Na encosta do cânion não há terreno plano. "Onde irei dormir?”, questionei-me. Depois de varar um pouco de mato encontramos algumas saliências no chão, as mais planas que avistamos, onde poderíamos nos jogar para uma noite de sono. Para carregar menos peso - e viajar mais leve - a ordem do dia anterior durante a organização dos equipamentos era levar a menor quantidade de itens possíveis. Todos os isolantes térmicos ficaram para trás. Barracas? Nem pensar! Alguns companheiros tinham redes, outros como eu, aplainaram o chão com as cordas, jogaram o neoprene por cima na esperança de criar um pouco de maciez, ajeitaram o cobertor térmico como uma camada impermeável - afinal, estava tudo molhado! - e jogaram-se dentro do saco de dormir por cima de tudo. Eu estava muito preocupado com o frio. Um frio que não apareceu. Eu não parei de deslizar no íngrime terreno; que noite terrível! Mesmo nivelando o chão com as cordas, o lugar não ficara nem perto de ser plano. Aos poucos, os primeiros raios de sol me chamaram atenção e o início do segundo dia estava para começar.

Nesta manhã notamos que ainda estávamos no primeiro terço do cânion. O Humberto e o Fábio já haviam conquistado, no ano anterior, da base do Cachoeirão até a saída do cânion. Faltava conectar o trajeto todo. Era por isso que estávamos ali. Muitas das cachoeiras que eles haviam desescalado, transpondo seus desníveis facilmente, agora estavam úmidas e molhadas e, por isso, era necessário parar para fixar ancoragens para os rapeis. Isso consumiu muito tempo além do previsto e por volta das 16h00 do domingo – depois de 2 dias dentro da ravina – ainda estávamos na metade do caminho.

Os três instrutores sabiam “que a liderança exigia que tomassem decisões difíceis para o bem do grupo como um todo. Sabiam que essas regiões inexploradas respeitavam – exigiam – a independência e autossuficiência acima de tudo”, como narrou Michel Punke no livro O Regresso - o mesmo que deu origem ao recente blockbuster com Leonardo DiCaprio - quando descreveu o processo de tomada de decisão do grupo de caçadores onde se encontrava Hugh Glass, logo após o ataque de urso que quase o aniquilara. E foi além: ”Os participantes que constituíam esta pequena comunidade estavam unidos por uma teia estreita de responsabilidade coletiva. Embora não houvesse uma lei escrita, todos seguiam um incipiente código de conduta, aderindo a um pacto que transcendia seus interesses pessoais. Tinha uma profundidade bíblica, e sua importância crescia a cada passo dado no coração daquela região inóspita. Quando surgia a necessidade, um homem estendia a mão para ajudar os amigos, os parceiros, os estranhos. Com essa atitude, cada um deles sabia que a própria sobrevivência poderia depender um dia da mão de outrem.” Foi necessário encerrar a expedição, decisão difícil para os instrutores, e planejar a fuga dali.

O único rapel guiado da expedição. Com esta técnica é possível desviar os participantes do forte refluxo que a água causa no poço, direcionando-os à margem. Foto: Ion Davi

“Estes problemas a que o canionista está exposto geralmente estão relacionados à vertical, ao rio e à exposição à água. A hipotermia é o primeiro e mais óbvio risco, mas exaustão e até desidratação tampouco são raros.” Sergio Beck. Foto: Ion Davi
 

Saímos do rio e descemos por uma trilha na mata até uma propriedade onde pudemos finalizar o curso. Neste árduo trajeto, tentando responder as minhas próprias inquietudes, conectei-me com os pensamentos de Glass esboçados numa carta que ele escreveu ao irmão, assim que a sua saúde melhorou e logo após jurar vingança aos que o tinham abandonado à beira da morte: “Sinto-me puxado para seguir esse projeto de uma forma que nunca ocorreu em toda a minha vida. Tenho certeza de que tenho razão em agir assim, apesar de não poder lhe precisar exatamente o motivo.”

Esse meu projeto claramente não era vingança, mas sim o entusiasmo inflamado que os esportes de aventura impulsionam na minha vida. Um belo motivo para continuar explorando por aí.

Serviços

Para cursos e informações, acesse:
Aimbere, Vida ao Ar Livre | Travessia Ecoturismo | Inhangatu, Turismo de Aventura

Boas aventuras,
Antônio Calvo
www.armazemaventura.com.br

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