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7 CUMES THAÍS PEGORARO
 
Íntimo e Pessoal: percepções de uma novata no McKinley
 
texto e fotos: Thaís Pegoraro
21 de agosto de 2015 - 10:10
 
Próxima ao cume e a certeza de que tudo valeu a pena.
 
  Tom Alves  

Uma expedição programada para 22 dias que terminou, com sucesso, em 14, merecia mais que um texto sobre alcançar o cume. Merecia ser compartilhada de uma forma intimista, pessoal, sem tanta preocupação com dados e fatos, mas em ser fiel a impressões, sentimentos e deixar o leitor acompanhar a jornada e sentir tudo aquilo, a sua maneira.

Se está no seu radar um dia ir até o Mckinley, o texto certamente ajuda. Se não está, espero que possa levá-lo até lá comigo, ainda que por segundos, para viver uma experiência singular. Prender a respiração, ou deixar o olho marejar, se isso acontecer com você, meu texto já terá cumprido seu propósito. Ah! Não deixe de compartilhar a emoção, o pensamento, o olho marejado. Vou gostar. E me emocionar de novo.

Assim começo meu diário pessoal de 11 anotações, todas feitas depois do dia de atividade na montanha, muitas vezes muito cansada e querendo cama. Mantive o texto original, com breves correções ortográficas e de sentido para que seja bruto mesmo, profundo, bobo, não importa. São impressões de algo real, intenso e profundo, acontecendo praticamente real time. Boas experiências!

DIA 1

Anchorage - Talkeetna - Campo de pouso no glaciar

A epopéia de sair de Talkeetna, cidadezinha que costumava ser "só" de montanhistas e hoje é ponto turístico para quem vai ao Denali National Park, com 700 habitantes e temperatura de 20ºC, e 40 minutos depois pousar na Geleira Kahiltna, no sopé do Mckinley, para no dia seguinte começar a marcha. Sentir a lufada do ar frio polar e se ver em meio a uma majestosa cordilheira de montanhas é de engasgar. Parece coisa de filme mesmo!

Demorei alguns segundos para sair do avião. Sair do avião e pisar no gelo significava que aquilo estava realmente acontecendo. E quem realmente está pronto para algo dessa magnitude? Muitas perguntas. O gelo como um imã me chamava. Meu cérebro brecava. Pousar na Lua, em plena Terra, essa era a emoção da vez.

Desci, entre euforia e nervosismo, desci.

     
     

DIA 2

Do Campo de Chegada para Campo 1

Acordar as 2h00 com o sol do meio dia na cara pode deixar qualquer metabolismo doido. O corpo não sabe se é hora de ir ao banheiro, tomar café, fazer exercício, almoçar ou voltar a dormir.

O visual é majestoso. Frio com sol. Céu azul. Montanhas lindas, mas muita novidade para ser processada pelos sentidos.

Começamos os procedimentos para seguir viagem. Tomar café, ir ao banheiro em uma lata chamada CMC (Clean Mountain Container), desmontar barraca, amarrar as coisas no trenó e o trenó na cintura. Aliás, nunca achei que usaria café, lata e trenó na mesma frase.

Conseguimos sair as 4h30. Nas partes baixas da montanha anda-se de madrugada porque o gelo está mais duro. Quando o sol começa a ficar forte a neve amolece e aumenta o risco de queda em greta. O que derreteu foi meu cérebro ouvindo "greta" a primeira vez.

A BOMBA DO DIA: soubemos que no Alaska acontecem mais ou menos 3 abalos sísmicos por dia - grandes, pequenos, perceptíveis e não. Claro que isso gera AVALANCHES - perceptíveis e não. No nosso primeiro dia de marcha presenciamos uma BEM perceptível, provocando aquela fumaça gorda. Chegamos a ouvir "protejam-se!!!!" - "Oiiiii?!?!?" - e me lembro de pensar em me enrolar na barraca dobrada. Sorte que ela virou para o outro lado.

Puxar trenó pela cintura é um capítulo a parte. 18k nas costas e uns 35k no trenó. Ao mesmo tempo em que cada olhar fotografa um cenário mágico e diferente, o quadril grita, o osso do quadril grita, e depois de 8 horas tudo grita.

Andamos 10k em 8 horas. 3 paradas. E uma felicidade sem fim.

     
     

DIA 3

Do Campo 1 para Campo 2

Record de lerdeza - acordar as 2h00 pra conseguir sair às 5h00. Como o corpo demoraaaaaa a adaptar a esses horários malucos e ao interminável dia claro.

Parece dia da noiva!

Arrumar mochila, marinheira, vestir as roupas, desfazer barraca, deixar lanche pronto, suplementos, ter certeza onde está tudo, colocar tudo no trenó, amarrar tudo no trenó, vestir cadeirinha, ter certeza de colocar tudo na ordem certa, e ainda tirar foto e gravar para o Ihearyou (novidade vem aí). O ideal seria terminar tudo em 1:30. Até o fim da viagem quem sabe dá!

Dia duro. Subidas duras. Mais tempo que o previsto. 10 horas de atividade intensa. E muitos, muitos, muitos quilos para carregar - cada um com 59 kg, entre mochila e trenó.

Adoro observar como corpo e mente se comportam. Mente dribla corpo para fazer o que quer. Corpo dribla mente para também fazer o que quer, e assim passo o dia entre essas duas vontades - querendo chegar no Campo 2 e me jogar no chão em qualquer lugar.

Sofremos. Choramos. Doeu. O Campo 2 não chegava nunca. Às 10 horas foram de subidas intermináveis e colossais.

De frio intenso passamos a um calor insuportável, que na geleira parece mais desértico porque é refletido para todos os lados.

Queria poder saber o que cada um pensa nas horas e horas de caminhada.

Consigo fazer fotos e pensar na You Tap, nas pessoas que amo, na Filipa. Venço a Ski Hill, mais subida, engano meu pensar que o Campo 2 estaria ao alcance dos olhos e que essa seria a subida interminável. Não é. Muitas outras viriam. Meu quadril doi. A barrigueira faz bolhas no ossinho da cintura (magrelaaaas de plantão - vocês sabem o que é aquele osso sendo apertado intermináveis horas????). Como, como, como. 4 gels, 1 dose de endurox, 12 bcaas, 4 cápsulas de sal, barra de proteína, frutas secas, amêndoas, chocolate. E a fome nunca passa...

Chegamos no Campo 2. Choro - encontro minha companheira de Aconcágua.

Sinto peso de cume e muita responsabilidade do que está por vir. O dia está claro como nunca e o horizonte azul e branco me preenche de contentamento. Mas ainda há um longo caminho a frente.

Café: granola com leite
Lanche de trilha (especificado acima na comilança)
Jantar: macarrão com salmão

     
     

DIA 4

Descanso no Campo 2

 

Dormi 12 horas. Acordei várias vezes com dores terríveis no braço direito. Um formigamento que irradiava do ombro aos dedos. Paniquei. Rezei. Tomei anti inflamatório. Rezei de novo. Enfiei o ombro no gelo de dor. Treinei tanto para não passar perrengue e quando poderia imaginar que o perrengue viria de uma tendinite no ombro!?

Longo café regado a risadas. Momentos de alegria são tão fundamentais quanto a disposição para subir. O corpo e a mente agradecem.

Vejo um grupo chegar como cheguei ontem - exaustos. Bato palma para eles que agradecem com seus sticks. Eu me emociono e choro. Fico com muitas emoções a flor da pele. A natureza extrai aquilo que temos de mais primitivo e puro. Emoções brutas.

Separamos comida e equipamentos que irão ficar aqui enterrados na neve - a isso se chama "cash". Nossa micro geladeira particular no Alaska marcada por uma bandeirinha pink e o nome da expedição. Separamos comida que irá subir para os campos altos, bem como os lanches de trilha. Deixamos tapioca para "comemorar" na volta.

O braço para de doer. Os dedos ainda formigam. Agradeço ao universo por isso. Nada irá tirar meu foco e objetivo. Penso em todos os queridos para mim. Isso me aquece o coração.

Almo-janta bom - risoto com atum e Nutella de sobremesa. Sim!!! Nutella!!! Deito para ler feliz. O que a Nutella não faz com uma mulher!!! Mal sabia que seria nosso único dia de descanso até a volta.

Café da manhã: pão, ovo e queijo, café com leite.
Chocolates, azeitonas de lanche.
Jantar: risoto com tuna.

     
     

DIA 5

Do Campo 2 para Cash próximo ao Campo 3 e de volta ao Campo 2

Ainda vamos conseguir sair em 1:30. Hoje foram 2:30 entre acordar e sair.

Vocês já sabem os procedimentos: arrumar mochila, equipar com cadeirinha, corda, bota, crampon, café da manhã, coco na lata (ahhhh, "a" lata vai ganhar post específico), lenço umedecido. Sem pensar muito, meio no automático, em meio a muito frio.

A marcha começou com 4 subidas que mesmo se eu quisesse não ia conseguir descrever. Motorcicle Hill e Wind Corner estão entre elas, famosas no Mckinley pelo grau de inclinação, gretas, ventos severos e risco de avalanche.

O começo da subida foi bem difícil - corpo frio, mão fria, tudo frio. A inclinação era inexplicável e mesmo assim seguimos firmes e com ritmo. Filmei a subida para um dia ter certeza de que fiz tudo isso mesmo. As vezes parece que nem aconteceu.

Me emocionei várias vezes, dediquei meu esforço a pessoas queridas, a mente divagou e muitas vezes não pensou em nada, só em um pé e depois o outro, sucessivamente.

Esta montanha, em especial, é muito dura. Esforço. Calor. Frio. Peso. Guerreiros sem frescura em marcha que pagam para estar em um lugar para lembrar do quanto são frágeis, assustados, pequenos diante daquela grandiosidade, que a todo tempo os tira do automático para a dor e a contemplação.

Meu braço dói da tendinite. Fico menstruada. E nada disso vai me tirar o foco de admirar a montanha e com sua permissão chegar no cume.

Depois de mais ou menos 5 horas chegamos no local onde cavamos nossa geladeira particular - o Cash - fincamos nossa bandeira pink, deixamos todo o mantimento que utilizaremos para o alto e voltamos ao Campo 2 para descansar. Subir mais alto e dormir mais baixo é estratégia de aclimatação. O corpo produz mais glóbulos vermelhos. Ingerir mais ou menos 4 litros de água diminui a viscosidade do sangue. E também contribui na oxigenação.

Janto. Não escovo os dentes. Não passo lenço umedecido. Estou exausta. Vou rapidamente dormir porque amanhã o jogo começa de verdade. Deixaremos supérfluos no Campo 2 e seguiremos para o 3 até o final com o que tem nas nossas mochilas - talvez pelos próximos 15 dias. Emocionalmente desafiador saber que subiremos tudo o que subimos hoje novamente.

Café: ovo e bagel com nutella
Lanche de trilha: 3 gels, endurox, amêndoas, cranberries secas, barra de proteína.
Jantar: sopa de grãos e macarrão com queijo.

     
     

DIA 6

Subida definitiva do Campo 2 para o Campo 3 (Base Camp)

Não sei o que é melhor: viver as aventuras sem saber o que vem pela frente ou viver as aventuras sabendo o que está por vir.

Hoje repetimos tudo o que fizemos ontem, só que com mais peso e conhecendo o caminho. Todo o peso que não enterramos ontem entre Campo 2 e 3 subiu com a gente. Mochilas muito pesadas.

Motorcicle Hill, Wind Corner, tudo de novo. A mente tenta pregar peças e divagar. É preciso manter o foco e seguir pé ante pé. Conseguimos realmente tudo ao nosso alcance quando queremos. Mas é no querer que está a grande chave - queremos mesmo tudo isso a nossa volta? Queremos todas as nossas escolhas e conquistas? Queremos as pessoas com quem decidimos ficar?

Volto a neve e ao frio. Sou mesmo uma caixinha de combustão ambulante - mantenho o ritmo quando estou hidratada e alimentada - e tenho que comer muito mais que a média dos outros por ser magra e com digestão rápida: se comem uma barra, eu preciso de duas, se tomam um gel, eu preciso de quatro (mas também se vão ao banheiro um vez, adivinha eu? A tal lata virou minha melhor amiga). Coordenar minhas necessidades com os tempos de paradas ultra eficientes não tem sido fácil, mas estou melhorando.

Cruzamos chineses que não saem do caminho, pegamos neve na cara que torna tudo bem desafiador - o caminho já parece ser bem diferente do de ontem. Mais íngreme, mais pesado.

Entra o tão famoso "white out" e finalmente entendo onde estou e o que estou fazendo. Estou no Alaska, no extremo do planeta, ao lado da Sibéria, no lugar mais frio do mundo. Com o white out não se vê nada - tudo branco - chão, céu, ar, gente. Pode ser por uma nuvem que chega ou mesmo uma tempestade de neve mais forte. O risco de sair da rota marcada com bandeirinhas é grande e aumenta o risco de gretas e avalanches. Não se vê nada. Fica difícil ouvir também. Olhos coordenam muito o ouvido. Quando não se vê acontece uma espécie de perda de sentidos. Chega a ser claustrofóbico.

Ando e ando. Calor e frio. Meu braço direito me lembra que quanto mais força eu fizer para apoiar o stick na neve, mais ele vai me provocar a noite com a bendita tendinite que tira a força da minha mão.

Quando tudo fica mais e mais branco ouço alguém na corda gritar que é possível avistar barracas e que finalmente estamos no Campo 3 ou Base Camp. Também avistamos a Headwall e o que vamos enfrentar em termos de desafio físico e mental nos próximos dias.

A Headwall é a parte mais íngreme da escalada, imensa e de tirar o fôlego. Há um trecho de cordas fixas onde se usa o jumar (aparelho de metal para ascender a corda). Ao olhar de onde estamos vejo micro pontos pretos em toda a face dela - pessoas. Lembro da sensação até agora - o som parou ao redor e engoli. Com medo.

Esta será nossa casa. E posso dizer que é bem imponente. High Camp e cume serão possíveis se a montanha permitir e se ultrapassarmos essas próximas barreiras físicas e mentais.

Café: bagel com cream cheese e nutella
Lanche de trilha: 4 gels, barra de proteína, cliff bar e amêndoas.
Jantar: arroz, feijão, legumes Mountain House (liofilizada ou na linguagem comum - desidratada).

     
     

DIA 7

Do Campo 3 ao Cache, e de volta ao Campo 3

Finalmente consigo dormir. Acordo renovada e feliz. Dormir é realmente um santo remédio. Meu braço da um certo trabalho a noite. Dói menos quando sento ou fico em pé. Tirando isso e duas bolhas na pélvis bem inflamadas pela fricção da barrigueira da mochila na pele fina dessa região, onde está preso o trenó, me sinto ótima.

Aprendemos que esquentar o bagel no café da manhã torna a vida muito mais prazerosa. A montanha continua nos ensinando pequenas coisas. Bagel com cream cheese. Bagel com nutella. Sétimo dia sem banho. Mas o bagel quentinho fez o café da manhã delicioso.

Saímos leves e felizes para buscar o Cache montanha abaixo que enterramos dois dias atrás. Fazer um descanso ativo de 1:30 de marcha. Vou bem na ida, mas volto derrubada. Sinto algo estranho, uma moleza forte, vontade de sentar e ficar. Muito estranho para quem subiu 4.500m com quase 60 kg, entre mochila e trenó, e agora não carrega praticamente nada.

Associo imediatamente a menstruação que insiste em continuar vindo. E com ela veio a enxaqueca. Consigo voltar para a barraca e passa um filme na minha cabeça do que será preciso para subir a Head Wall amanhã. Só de olhar já impressiona. E amedronta. É imponente.

Fico preocupada. Amanhã é um grande dia. Se eu acordar mole como passei hoje...

Apelo e tomo remédio de enxaqueca. Mais uma vez me dou conta de como somos frágeis. E como qualquer imprevisto te tira do trilho do objetivo, para o qual nos preparamos meses. Assim como na vida, aqui poucas variáveis estão totalmente sob nosso controle.

Café da manhã: bagel com cream cheese e bagel com nutella
Lanche de trilha: barra cliff
Jantar: torrada com homus e lasanha a bolonhesa

     
     

DIA 8

Do Base Camp passando pela Headwall para deixar o cache próximo ao High Camp e retorno ao Base Camp

Acordo 200% e com frio. Acordamos mais cedo que de costume, mas me sinto diferente. Mais integrada à montanha depois de mais de uma semana aqui, mais integrada à energia desse lugar incrível, mais integrada a mim mesma.

Partimos em direção a HeadWall por volta das 7h00. Claro e frio. O sol ainda demoraria umas 2 horas para aparecer.

Começamos a subida em zigue zague, pé direito, pé esquerdo. Às vezes penso muitas coisas nas longas caminhadas, outras vezes a mente centra e só fica ali. Tenho certeza que envelheço meses em cada montanha, mas também tenho certeza que minha mente se rejuvenesce e se limpa da poluição do dia a dia. Estou 100% conectada com o aqui e o agora.

Foi desafiador e exigiu muita concentração, mas me senti forte e focada. A mente domina o corpo dessa vez, e isso é uma grande conquista. O sol nasce e isso também aquece a alma.

Chegamos na base das cordas fixas onde vamos começar a ascensão com jumar. São mais ou menos 125 metros que parecem eternos. Subir com mochila pesada, usando um braço só e o outro como apoio, quase em pé, exige muito. Penso no meu braço. Penso na minha família e em tudo o que já superamos juntos. Penso em tudo o que pode acontecer e que vai nos exigir no futuro. Nesse exato momento corpo domina mente, e me sinto cansada.

Carlos Santalena, o nosso guia, começa a ascensão com jumar e anda ainda mais rápido que de costume. Ao menos percebo assim, com o cansaço acumulado dos dias que vivemos. No início me viro bem com a solteira e o jumar, mas pouco a pouco o braço grita, a respiração sai do profundo e natural, e o corpo se agita pedindo para parar.

Carlos informa que não se pára na HeadWall, e confirmo isso ao olhar para trás e ver outros grupos de aproximando.

Sigo com forças não sei de onde, choro e ofereço o meu esforço a esse dia tão especial para a minha família, ao melhor desfecho de tudo e para todos. Isso me revigora e finalizo a escalada com jumar... chorando.

O visual que encontro é estonteante. Sem nuvens. Dia claro. Choro novamente, cumprimento meus amigos de expedição e contemplo o prêmio depois de quase 5 horas de atividade.

Agradeço a oportunidade de estar ali. Agradeço meus guias que certamente me empurraram parede acima. Agradeço minha vida e minha saúde.

Desço contemplando a vista do campo base pequenininho lá embaixo. Na descida, comento com o Eduardo Sartor sobre a notícia que tanto espero do Brasil - sem dar tantos detalhes.

Impressiona como, distantes e em lugares inóspitos, nos sentimos ainda mais conectados com quem amamos.

Logo que chegamos ele liga para o "Seu Eduardo", no Brasil, que traz a notícia esperada. Não me contenho e choro de soluçar, como não me lembro de um dia ter chorado na vida - soluçamos de tristeza, mas de alegria também?!?! Aquilo toma conta do meu ser, do meu corpo, choro e choro e logo Eduardo traz o telefone para eu ligar para casa.

Falo segundos, apenas digo que já soube da notícia, que os amo, e que sabia que tudo daria certo. E que estou muito feliz!

Meu pai fala que me ama - como nunca havia ouvido antes - e sinto a felicidade e a paz extrema na sua voz. Hoje eu nasço de novo e sei que ele também.

Café da manhã: o famoso bagel com cream cheese.
Lanche de trilha: 2 shot block, 3 gels, 1 barra de proteína, endurox, 1l de gatorade.
Jantar: strogonof com macarrão e mouse de chocolate.

     
Equipe chegando ao ponto de encontro para começarmos a ascender pelas cordas...  
Emocionada de chegar até esse ponto, entre Base Camp e High Camp. Safe and sound!
 

DIA 9

Faltam poucos dias para finalizar essa odisséia chamada McKinley.
Dia pré cume - subida definitiva do Base Camp para o High Camp

Acordo já pensando em tudo o que há pela frente no dia de hoje - fazer tudo o que fizemos ontem, desenterrar o Cash e seguir para o High Camp, de onde se faz o ataque ao cume.

Separamos o que fica no acampamento base e o que sobe. Aqui realmente deixamos todo e qualquer supérfluo para trás. Minha necessaire era um desodorante (considerado supérfluo pelos meninos) e 3 OBs. Atenção mulheres de plantão! Sim! Eu fiquei menstruada todos esses dias. E sim! A higiene íntima se resumiu a trocar o OB uma vez ao dia.

Mais um dia lindo e frio. Começamos cedo para evitar o sol na cara, que no Alaska não é brincadeira. Às 3h00 somos despertados e às 5h00 já estamos passando pelas outras barracas em direção a primeira parte da nossa missão - a já familiar HeadWall. Faz silêncio.

Ainda sorrio e me lembro do dia de ontem. Quanta força isso tudo me deu. Também me lembro da prova de moto, da minha vida no Rio, das pessoas que eu amo, e isso vai me esquentando por dentro. E sorrio novamente.

Engraçado como o cérebro processa as situações de forma muita rápida e mal sinto essa subida. Ela já é conhecida. Sinto o corpo cansado, mas me sinto mais preparada para a subida dessa vez. Rapidamente atingimos as cordas fixas e rapidamente nos vemos no local do Cashe, exatamente onde paramos no dia anterior.

Contemplo a paisagem. Estive ali exatamente ontem, e continua sendo como se a visse pela primeira vez.

Seguimos caminho em direção ao High Camp, novas descobertas, dores, emoções, lembranças, medos. Cristas finas e sem proteção vão se mostrando ao horizonte, e vamos vencendo-as, uma a uma. O céu está azul e o único colorido da paisagem são as pedras que despontam em meio a imensidão branca. Sinto frio na barriga todas as vezes que o crampon bate nas pedras e faz aquele barulho afiado.

A exposição desse trecho é tanta que o corpo treme involuntariamente e transpira diferente. Cheiro de medo genuíno. Aquele medo que a maioria de nós nunca irá sentir. Inventamos medos. Raramente os sentimos de verdade.

De repente saímos das pedras e daquele trecho exposto e vejo Carlos comemorar levantando os bastões e cruzando-os no ar. As barraquinhas vão apontando no horizonte e entendo que chegamos no famoso High Camp. Largo a mochila, ajoelho ali mesmo e sinto meu corpo todo comemorando como se fosse dia de Cume. Para mim foi.

Jantamos felizes pela conquista do dia, e na seqüência Carlos confirma a informação que nosso ataque ao cume será amanhã. Sim, a janela se abre para a gente e será sem descanso. E isso me gela a espinha.

     
     

DIA 10

Dia de Ataque ao Cume

"Depois de 14 horas de exercício e 10 dias de desafios constantes, entro na barraca, sem sede, sem fome, sem frio, somente sentindo a profunda exaustão do corpo, e a mais imensa sensação de contentamento pela vitória da força de vontade sobre a acomodação, a mesmice e o conformismo. Com cume ou sem, não haveria palavras para descrever essa sensação de plenitude e dever cumprido. Todos demos o nosso melhor. E desmaiamos de merecimento."

Thaís Pegoraro

Muitos relatos sobre o Denali falam que a caminhada completa até o High Camp, que fizemos no dia anterior com mochilas pesadas, é mais difícil que o dia de cume. Tive meu dia de cume ontem sim, mas para mim "O" dia de cume é sempre "O" dia de cume. Sou magra e leve e, apesar de ter muita energia, preciso repor o tempo todo, o que em dia de cume não é algo fácil e possível.

Tomamos café da manhã às 4h00 em silêncio. Bagel com cream cheese e geléia. Todos apreensivos. Todos literalmente amarrados a um tremendo dia intenso e sem precedentes. A exceção do Carlos, ninguém esteve nessa montanha antes, muito menos em um dia em que o cume pode estar perto.

Curioso como a mente divaga e nos faz pensar em coisas muito aleatórias: os treinos no Rio, as discussões com o Anderson, meu treinador, aferir o peso na balança toda segunda e toda sexta, a luta para comer e ganhar massa e estrutura corporal. Do grupo sou a mais magra. E tem sido assim em todas as expedições.

Penso nesse dia como o dia da comemoração. O dia que cumula todas as vivências até esse momento. O dia da catarse, de dar tudo de si, de levar corpo e mente ao extremo. E curioso como tudo acaba como começou - rápido demais.

O corpo absorve rápido o cansaço e o stress de um dia como esse - as vezes com marcas que somente serão vistas dias depois no primeiro banho, as vezes com formigamentos de dedos e mão, as vezes com dores musculares insuportáveis. Sente-se vontade de dormir sentado em qualquer lugar, uma sede interminável e a fome nunca antes sentida. Enjôo, diarréia, inapetência são outros sinais que podem aparecer - de alguém que pode ter adoecido pela intensidade da atividade.

Depois do café, com mochilas leves prontas, e todo o equipamento checado, fazemos um círculo - pedimos permissão a montanha para escalá-la, e sua benção para atingir o cume. Agradecemos a presença de cada um ali e finalizamos com um abraço de todos, muito importantes para fortalecer o elo da equipe e nos unirmos mais, e nos responsabilizarmos ainda mais uns pelos outros nesse dia.

Nativo, um outro montanhista experiente, nos entrega chololates e deseja sucesso - culminou a montanha um dia antes e parecia muito feliz e realizado.

Começamos a caminhar em direção ao Denali Pass Headwall, em duas cordadas - na minha, Carlos na frente, Alexandre no meio e eu ao final. Uma rampa bem empinada para começar e um caminho estreito lateral pela encosta da montanha, com o espaço certo para um pé e depois o outro, com proteção de corda e uso de solteiras.

Senti uma vontade grande de conversar com a montanha. Pedi permissão, sorri para ela, relembrei o que estava fazendo ali e para que. Passo a passo de subida íngreme falei e falei com ela, com intimidade e reverência. E sempre me referi ao Denali como Ela, a montanha imponente e linda, que só permite que seu cume seja visto há poucos metros dele. Sorria bastante, para mim mesma e para Ela. E podia sentir a endorfina tomando conta do corpo. Tudo relativamente tranquilo até ali.

Ultrapassamos a Denali Headwall, e eu me sentia muito forte e disposta. Para mim a previsão de que a caminhada até o High Camp era pior que chegar ao cume se confirmava. Mal sabia o que estava por vir, mas vivia apenas um instante por vez.

Essa primeira travessia demorou 3 horas. Todos bem, seguimos em direção ao Denali Pass. Comecei a sentir o ritmo, o calor (com o sol muito forte), pedi para pararmos para água e gel, e não me dava conta do meu processo de desidratação. Bebia pouca água, sempre na pressa de não deixar ninguém esperando. Era a última da cordada, portanto a última a chegar junto ao grupo. Chegava quando, na maioria das vezes, as pessoas já tinham se alimentado, hidratado e estavam praticamente prontas para sair.

Continuamos a subir o segundo trecho mais importante que configura o Denali Pass até o Football Field - mais 1 a 2 horas.

O caminho seguia íngreme, por passagens sinuosas, bastante traiçoeiras, com escadas em que era necessário se fixar e subir com toda a força das pernas, já que não havia onde segurar.

Em determinado ponto converso com Carlos sobre minha impossibilidade de avançar naquele ritmo. Sinto minhas forças drenarem, sensação própria de desidratação face o forte calor e dado eu estar bebendo pouca água. Não me dava conta disso.

Ele libera Alexandre para a outra cordada e segue somente comigo. Enfatiza que tudo está na minha cabeça. Que eu estou forte, apesar de não me sentir assim. Compartilhamos desabafos e um silêncio espiritual, e seguimos, passada a passada.

Quando me dou conta estamos no Football Field. Encontramos o grupo. Todos parecem muito bem. Adotamos a estratégia de deixar tudo o que não for essencial ao cume ali. Mochilas, lanches para a volta, pluma. Deixo até a bandeira para não carregar peso demais.

Hidrato o máximo que posso, tomo mais gel e nos preparamos para subir a famosa parede empinada que parece literalmente uma parede de gelo até o Kahiltna Horn.

Carlos encorda Renato e eu a ele e seguimos. Eduardo, Ayesha e Alexandre vão na frente.

Em algum momento desabo de chorar sem parar de subir. Um turbilhão de pensamentos fragmentados cruza minha mente, sem conexão aparente, cansaço, dor, não saber se conseguirei dar o próximo passo. Essa guerra mental segue mais ou menos 1 hora. Não tenho mais forças e ao mesmo tempo tenho. Carlos e Renato ajudam muito. Ouço palavras soltas: "respira", "pace", "devagar", "no seu tempo", e isso me conforta. E obedeço. E choro. E obedeço.

Em situações de extremo stress é importante alguém de fora "organizar" as coisas. Dizer o que precisa ser dito. O que precisa ser feito. Funciona. O cérebro obedece.

E o meu obedeceu aquelas palavras tão firmes. E chegamos ao Kalihtna Horn. Uma espécie de platozinho antes de caminharmos pelas lindas arestas e cristas para se chegar ao cume do Denali - o summit ridge.

A essa altura já não raciocinava. Estava absolutamente ciente de tudo o que ocorria. Liguei a GOPRO, mas não fazia conexões. Apenas seguia. Andava para a frente, com toda a cautela que ainda me era possível. Haviam trechos tão expostos que era melhor não registrar, não ponderar o imponderável - uma queda ali seria mortal. Ao mesmo tempo o cume se mostrava limpo, perfeito como uma pintura, intocado.

Ao longe se vê Eduardo, Ayesha e Alexandre quase lá - parecem formiguinhas no suspiro, pontinhos pretos naquela imensidão branca de neve e nuvens.

Carlos pede atenção, concentração, presença e calma para não darmos passos em falso ou que possam por em risco a nossa performance intacta até o momento. Impressionante pensar em se chegar a uma montanha dessas em 6, sem nenhuma intercorrência, nada!

Depois de 8 horas de subida fazemos cume as 16h40. 6.143m de todo desafio mental e corporal que se possa imaginar.

Rimos, choramos, batemos foto de todos os ângulos, em câmera lenta e rápida, tudo ao mesmo tempo. A mente não da conta de absorver tudo o que está acontecendo. Tudo acontece em mais ou menos 40 minutos porque há um outro grupo chegando e precisamos liberar o espaço para eles. Todos sabemos da necessidade de ter que começar a descer, um longo caminho ainda pela frente, mas ninguém quer sair dali.

A descida transcorre com muito esforço. A adrenalina de alcançar o cume baixa e o preço de 10 dias de esforço ininterrupto chega. Sono, moleza, falta de prontidão, mente entorpecida, sentidos lentos - sinto tudo isso, ao mesmo tempo em que sorrio e quase não acredito nessa vitória.

Descer é pior que subir. Mas descer com a sensação de que tudo deu certo alimenta a alma.

Depois de 14 horas de exercício e 10 dias de desafios constantes, entro na barraca, sem sede, sem fome, sem frio, somente sentindo a profunda exaustão do corpo, e a mais imensa sensação de contentamento pela vitória da força de vontade sobre a acomodação, a mesmice e o conformismo. Com cume ou sem, não haveria palavras para descrever essa sensação de plenitude e dever cumprido. Todos demos o nosso melhor. E desmaiamos de merecimento.

     
     

Dias 11 - 12 - 13 - 14

Mckinley - Alaska - Fim da expedição: real, intensa e profunda.

Descemos no dia 11 do High Camp para o Base Camp. Caminhamos bem e rápido. No dia 12 descemos do Base Camp para o Campo 1. A tempestade de neve e o white out nos pega de surpresa e apaga as marcas do caminho na neve. Isso gera um certo nervosismo no grupo e a certeza de que tudo só acaba quando acaba mesmo. Por causa da tempestade passamos o dia 13 "presos" no Campo 1. Dia de fazer nada, acordar e dormir e acordar e dormir. Foi o dia em que cada um comeu 6 tapiocas que deixamos enterradas na subida. A mais maravilhosa refeição dessas 2 semanas para saciar uma fome sem fim. E finalmente, no dia 14, chegamos ao glaciar do pouso do voo e voltamos para a civilização.

Sentir cheiro de chuva depois de 14 dias e ver a cor verde na natureza me emocionou ao sair do avião. Profundamente. Foi como retornar de um sonho intenso para uma vida que já nos é conhecida, mas para a qual prestamos pouca atenção.

O primeiro cume do Projeto Sete foi alcançado. Mais importante foram as experiências vividas.

Obrigada a todos vocês que acompanharam essa aventura. A sensação que muitos compartilharam, de se sentirem lá comigo, é real! O relato de cada um dos dias foi escrito lá, nos acampamentos, antes de dormir. As vezes sem vontade e sem força. Dia a dia. Publiquei o meu diário da expedição aqui, sem cortes e edição, para tornar a experiência de vocês mais real, intensa e profunda. Palavras que definem bem o Mckinley...

     
     


Thaís Amadei Pegoraro

 
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