Há 20 anos, três amigos ficaram na Montanha! Em homenagem a eles, sigo tentando cumprir o que prometi, e republico o texto escrito um mês após a tragédia.
Aconcágua, fevereiro de 1998
Em novembro de 1994, fui convidado pelo Waldemar Niclevicz para escalar a face sul do Aconcágua. Mas, pelas histórias de amigos espanhóis que deixaram alguns dedos por lá, sabia que teria de conhecer outras montanhas, outros gelos, entender minhas limitações e as dos meus companheiros. O Waldemar já havia estado lá duas vezes, com Renato Kalinoski (de Curitiba) e com Pedro Derosso, da Argentina.
Após explorar algumas montanhas na Patagônia, fui convidado novamente por Waldemar, em 1996, a participar do projeto Sete Cumes. Conheci então o Denali, no Alasca, de maneira desafiadora. Não alcançamos o cume, mas repetimos a via West Rib: três dias de aproximação, oito dias na parede e outros tantos para descer pela via normal, buscar os esquis e outras cargas na base da rota. De novo, o Dead Valley.
Depois de alguns dias em casa, recuperando a sensibilidade nos pés, fomos para os Alpes com o pretexto de aclimatação, mas só visitamos shoppings. Fomos ao Elbrus, no Cáucaso, sem informação e sem comida, e descobri que a vida de sherpa não é fácil. Acabei deixando o Buana e sua namorada na Rússia e voltando para o Marumbi.
Em setembro de 1997, fui convidado por Mozart Catão, de 35 anos, que aguardava liberação para escalar o Carstensz — sua última montanha do projeto Sete Cumes — a enfrentar a face sul do Aconcágua. Desta vez, como parte de uma expedição brasileira composta por Alexandre Oliveira, de 24 anos, que também havia enfrentado o Denali com ele e tinha bom desempenho no Aconcágua em 1997; e Othon Leonardos, de 23 anos, de Teresópolis, que conhecia Mozart e Alexandre da Serra dos Órgãos, mas vivia em Brasília. Othinho tinha excelente aclimatação e como projeto pessoal completar os Sete Cumes até o ano 2000, tornando-se o alpinista mais jovem a realizar essa façanha.
Sabendo das condições da face sul, sugeri que convidássemos Dálio Zippin Neto, que já havia escalado na Bolívia, estado no próprio Aconcágua e passado nove meses escalando nos Alpes. Escalávamos juntos há mais de dez anos, e eu queria entrar na parede com alguém com quem tivesse sintonia.
Saímos de Curitiba no dia 10 de janeiro de 1998, eu, Othon e Mozart, na minha Toyota Bandeirante, rumo a Mendoza, onde encontramos Alexandre e Dálio no dia 13, que haviam saído de ônibus no dia 8 para aliviar o peso. Após retirarmos as autorizações e realizarmos as últimas compras, conversamos com Lito Sanchez, um mendocino que já havia escalado a face sul pela rota dos franceses em 89 e nos deu várias dicas importantes. Definimos que os três melhores aclimatados entrariam na parede; no dia 15, estávamos em Puente del Inca (2.700 m), pesando a carga para as mulas, com parte a ser levada até Plaza de Mulas e outra para Plaza Francia. Às 18h, entramos no Parque Provincial do Aconcágua, chegando ao acampamento Confluência (3.350 m) por volta das 22h. No dia 16, saímos às 9h, chegando a Plaza de Mulas (4.200 m) por volta das 16h, acampamento base da rota normal, onde faríamos nossa aclimatação. Armamos o acampamento, encontramos amigos brasileiros, fizemos novas amizades e ficamos todos entusiasmados com o tempo bom e a aclimatação.
Após um dia de descanso, subimos até Nido de Condores (5.300 m) para portear carga. Dia 19, descansamos e fizemos filmagens nos penitentes. Dia 20, subimos novamente para Nido, mudando o acampamento.
Já notávamos diferenças na aclimatação: Mozart sempre à frente, parecia nem sentir os efeitos; Alexandre o seguia de perto, depois Othon e Dálio. Eu era o que mais sentia, sempre chegando por último e muito cansado. No dia 21, subimos apenas com pochete e cantil. Mozart foi até o cume, Alexandre até a entrada da canaleta, Othon e Dálio até o refúgio Independência (6.400 m), e eu, com o peso nas pernas, cheguei até 5.900 m. No dia seguinte, o tempo continuava bom e saímos por volta das 8h para nova tentativa. Cansado após 300 m, voltei a Nido para descansar; Othon e Dálio foram ao cume em 5h30. No dia 23, saí às 7h; antes de chegar em Berlim (5.800 m), já havia vomitado o café e subi com dificuldade até Pedras Brancas (6.250 m). Usei o restante de energia para descer. Após uns 500 m, encontrei Mozart e Alexandre subindo novamente para aclimatar. Decidimos que já tínhamos três bem aclimatados e, com o tempo favorável, iríamos o quanto antes para Plaza Francia. Dia 24 descemos de Nido para Mulas, dia 25 para Confluência, e dia 26 subimos para Plaza Francia (4.100 m). Armamos acampamento e admiramos a parede. Dia 27, relaxados e sozinhos com o Sentinela de Pedra, continuamos no acampamento, com o tempo ainda bom.
Dia 28, subimos eu, Othon e Alexandre, uns 200 m da rampa inicial, e Dálio e Mozart foram ao primeiro bivaque, a 4.800 m. No dia seguinte, Alexandre ficou de cozinheiro e os quatro entramos na via para fazer imagens e fixar corda nos pontos mais difíceis. Dálio, nas temíveis torres, tirou a bota rígida e subiu a chaminé de bota Snake, assegurado por Mozart. Eu e Othon levamos piquetas, crampons e equipamentos para aliviar o peso no primeiro dia de escalada. Uma avalanche, filmada por Alexandre, ocorreu ao nosso lado, mas o Fantástico a editou maldosamente, parecendo ocorrer logo após nossa saída de Plaza Francia. Dia 30 organizamos o último preparo: comida, combustível para quatro dias, barracas, e decidimos que a saída seria pelo glaciar superior, desejando seguir pela rampa Messner e ganhar um dia.
No dia 31, após o último café, eles entraram na via. Dálio e eu os acompanhamos subindo as encostas do Mirador. Às 16h, estavam acima das torres, no glaciar médio, onde fizeram o primeiro acampamento. Em 1º de fevereiro, acompanhamos a travessia do Glaciar Médio e a entrada no Glaciar Superior, pela barreira de seracs. Eles progrediam rapidamente. Na noite seguinte, algumas nuvens apareceram, formando o cogumelo característico do mau tempo, que reconhecemos da aclimatação na rota normal. Atravessaram o Glaciar Superior e armaram o terceiro acampamento na base da rampa Messner. No dia 3, apesar do cogumelo, decidiram continuar. Às 20h, estavam no final da franja de rocha, 600 m acima do Glaciar Superior. Uma avalanche os surpreendeu, derrubando Mozart até o Glaciar Superior e deixando Othon preso pela perna direita, com várias fraturas. Ele nos chamou pelo rádio, descrevendo o ocorrido, sua situação e a de Alexandre, mais abaixo e à direita, preso em outra corda.
Das 20h às 22h, revezamos o rádio, pedindo a Othon para se proteger do frio e tentar contato com Alexandre, mas com -30ºC, ele não tinha mais contato. Começou a se despedir, declarando amor à família, pedindo que escalássemos por ele, tomássemos um vinho em Puente del Inca e continuássemos nosso trabalho no COSMO.
No dia 4, amanheceu com 20 cm de neve em Plaza Francia; na montanha, deve ter nevado ao menos um metro. Ao meio-dia, o cogumelo subiu e vimos dois pontos pendurados onde Othon havia descrito. Esperamos, mas sem sinal de vida para tomar ação. Montanhistas que já haviam feito a face sul também estavam prontos. As condições da parede fizeram com que o mais seguro fosse descer. Na descida de Plaza Francia, fomos substituídos por montanhistas de Córdoba que avisariam qualquer novidade pelo rádio, mas o tempo piorou e até o dia 10 não conseguimos ver a montanha.
Restaram as memórias dos três amigos que ficaram na montanha para sempre, e o desejo de continuar realizando seus sonhos, organizando o esporte e tornando o montanhismo reconhecido, não só como um esporte de competição, mas principalmente de contemplação e respeito pelas montanhas e seus habitantes, animais e vegetais.
Pergunta
Você conhecia essa história?