JÁ TINHAM SE PASSADO dez dias desde que o escalador Nicola Martinez, 29 anos, pendurara seus haul bags — os sacos onde são carregados equipamentos e mantimentos — na parede do Half Dome, no Parque Nacional de Yosemite, na Califórnia (EUA). Ele estava pronto para escalar a Queen of Spades, uma complicada via graduada em A4 (na escala que vai até A5), no estilo que virou sua especialidade: artificial em solitário. A primeira e única ascensão dessa via foi feita em 1984, em solitário, pelo escalador Charles Cole.
Nicola levou quase uma semana para carregar mais de 120 quilos de equipamento até a base da parede. Esperou uma tempestade passar e gastou outros três dias buscando mais comida — a que ele havia carregado para a montanha dias antes fora devorada por um urso, que o encarou a uma distância de 1 metro do portaledge que o abrigava.
Logo no começo da escalada, quando já estava a uns 120 metros do solo, Nicola despencou por 6 metros e ficou suspenso pelo equipamento. Ele não sentia dores depois dessa queda inicial e, incansável, retomou o ataque, arriscando diferentes equipamentos no intuito de avançar em uma das big walls mais temidas do mundo. “Saí da terceira ancoragem consciente de que o blocão que me segurava não era dos mais confiáveis”, lembra. De repente, o susto: Nicola viu a rocha desabando em sua direção, encolheu-se e logo sentiu o impacto no capacete, na mão esquerda, no joelho. Para seu alívio, embora parte da parede tenha cedido, a corda não se rompeu. Usando uma só mão — a esquerda, ensangüentada, doía muito —, ele precisou de mais de duas horas para descer dali em um delicado processo de auto-resgate. Experiente, Nicola se safou sem traumas e poucos dias depois decidiu se recuperar divertindo-se de uma forma não menos arriscada: saltando de base jump de uma ponte de 250 metros em Auburn, na Califórnia.
O perrengue acima aconteceu em junho deste ano, mas desafios como esses fazem parte da rotina de Nicola Martinez Gomes, um descendente de espanhóis de 29 anos que, mesmo pouco conhecido no Brasil, está dando o que falar nas rodinhas de escaladores internacionais. Especialmente se o assunto for o Yosemite: Nicola é um verdadeiro expert nos desafios dessa meca outdoor.
Desde que esse paulista criado em Londrina (PR) estreou na escalada, em 1997, tem evoluído no esporte numa velocidade impressionante. Já explorou, com técnicas diferentes e por dias a fio, montanhas dos Estados Unidos, Itália, Inglaterra, Canadá. Mas foram as big walls do parque californiano que o fisgaram de fato. Faz quatro anos que Nicola passa temporadas de seis meses ali, escalando ou saltando de base jump, e acumulando uma experiência que lhe rendeu uma lista de predicados inédita entre brasileiros: é o homem com o maior número de escaladas em big wall do Yosemite, o primeiro a subir em solitário o El Captain (o maior monolito de granito do mundo) e o único que explorou essa parede mais de dez vezes e por sete vias distintas.
“ESCALO HÁ 17 ANOS e nunca vi alguém evoluir com essa rapidez em uma modalidade de escalada tão difícil e desgastante”, diz o escalador e fotógrafo Marcio Bruno, 33 anos, citado por Nicola como influência entre os escaladores brasileiros, assim como Eliseu Frechou e Sérgio Tartari. “Ele escala no estilo mais bonito e difícil, com uma impressionante resistência física e psicológica mesmo quando exposto a riscos prolongados”, continua, referindo-se à modalidade de escalada em que o escalador se move sustentado por peças que agüentam somente o peso do seu corpo, em um meticuloso processo de escolha do caminho e do melhor equipamento entre centenas de opções técnicas.
Em 1997, Marcio subia a Pedra do Baú, em São Bento do Sapucaí (SP), quando conheceu Nicola, então um novato dando seus primeiros passos num curso básico de escalada. Nicola gostou tanto do negócio que encasquetou: iria juntar dinheiro para virar escalador profissional, comprar bons equipamentos e realizar o sonho de conhecer Yosemite. O rapaz traçou uma estratégia e seguiu à risca. Enquanto explorava montanhas do Paraná, de São Paulo e Santa Catarina, conseguiu que fosse reconhecida a cidadania herdada por seus avós espanhóis. Aos 19 anos, com passaporte europeu, mudou-se para o Velho Continente. Desistiu de cursar faculdade e foi praticar inglês, italiano e espanhol durante dois anos. Foi barman, motorista de caminhão, cozinheiro num refúgio de montanha. Juntou dinheiro até que, em 2004, conheceu os Estados Unidos. Mochila nas costas, desembarcou na costa leste, em Boston, e optou pelo caminho mais longo. Passando pelas belas Rocky Mountains canadenses, levou mais de dois meses para atingir a Califórnia, na borda oeste, onde pretendia escalar por duas semanas. Acabou passando oito meses, se apaixonando pelo Yosemite e decidindo gastar nas escaladas todo o dinheiro que ganhasse a partir daquele momento.
“Cheguei tarde da noite na cidadezinha de Merced, que fica a uma hora do vale do Yosemite, e tive que dormir na rodoviária”, lembra Nicola, que adora contar como foi sua chegada ao lugar dos sonhos de dez entre dez escaladores de rocha. O relato detalhado você pode ler no bem sacado blog Rock Monkey (http://nicolamartinez. blogspot.com) ou em algum dos textos que o “macaco da pedra” escreve em sites especializados, como o Alta Montanha. Além do amor à primeira vista pelo que ele chama de Vale Encantado, Nicola conheceu na sua manhã de estréia no acampamento 4 o escalador Dave Turner, um local que se tornaria, mais que um amigo, um padrinho. No primeiro dia, Nick ajudou Dave a carregar seu equipamento para uma escalada de 12 dias. Em troca, esse experiente casca-grossa das big walls lhe daria nas semanas seguintes o caminho das pedras mais alucinantes do Yosemite.
“Em pouco tempo vi Nick completando, ao meu lado, algumas escaladas em solitário muito difíceis”, lembra Dave, hoje escalador profissional aos 26 anos. Suas primeiras paredes — Washington Column, Leaning Tower e, logo na terceira big wall, a temida via Mescalito, do El Captain — foram enfrentadas sem ajuda de ninguém. Primeiro brasileiro a realizar essa proeza, após os 11 dias que passou pendurado até chegar ao cume, Nicola ganhou com a conquista da Mescalito uma espécie de carimbo no passaporte para que pudesse aprender, com Dave Turner, os segredos da escalada de velocidade. Juntos eles subiram a parede Zodiac, do El Captain, em apenas 17 horas e com 16 cordadas, e a North America Wall, em 32 horas e com 33 cordadas. No último verão, quando viajaram juntos para a Patagônia, Dave deu sua prova de amizade ao enfrentar o ladrão que tentou roubar a mochila de Nick em Buenos Aires, na Argentina. Uma retribuição e tanto: foi Nicola quem carregou os 40 quilos de equipamento por cinco horas até o ponto da Patagônia em que Dave começaria sua última escalada de peso: em solitário no Cerro Escudo, abrindo uma via com mais de 1.300 metros, sem o uso de cordas fixas, em 34 dias de escalada non stop.
No ano seguinte, 2005, depois de passar pelo Brasil, Nicola voltou para Yosemite de forma igualmente marcante. Após dormir 16 dias na vertical, repetiu o pico do El Captain por outra via muito difícil, a Tempest (VI 5.10 A4+), sendo apenas o quarto homem da história a subi-la em solitário. “Não conheço outro brasileiro que tenha passado 16 dias na rocha, como fez o Nick”, diz Marcio Bruno, reconhecendo a dificuldade da empreitada. “Ao escalar sozinho em artificial, o cara gasta o dobro do tempo e se cansa mais ao trabalhar o triplo do que se estivesse em uma escalada acompanhada, com a carga repartida”, explica. Nicola parece ter atração pelo que não é fácil. Gosta de paredes que quase ninguém subiu, prefere a velocidade à lentidão e a solidão às escaladas em grupo. “Gosto da intensidade das experiências, de aprender coisas novas”, define.
Com a Mescalito e a Tempest no currículo, Nicola Martinez teve a honra de ser aceito pela comunidade de escaladores de longa data do Yosemite como um autêntico dirtbag. Assim são chamados os escaladores que passam temporadas inteiras no parque, dormindo com seus sacos de dormir ao ar livre como se fossem malas sujas. Entre os colegas desse mesmo grupo, fascinado por andar à margem, estão os guias piratas, que acompanham esportistas menos experientes sem a autorização da Yosemite Mountaineering Climbing School, e os saltadores de base jump clandestinos (o esporte é proibido ali), subgrupo ao qual Nicola também se integrou. “Nosso lance é escalar, sem essa burocracia de ter que pagar taxa, fazer teste disso e daquilo”, diz Nicola, que tem escalado novas vias ano a ano: North America Wall, Zenniata Mondata, Sea of Dreams, Triple Direct, e por aí vai. A comunidade que o adotou já chegou a lhe abrigar com casa e comida numa situação em que teve roubados os últimos US$ 600 do bolso.
Estilo para ser um dirtbag de Yosemite não falta a Nicola. Como se não bastasse a técnica e o arrojo, ele é um gente fina bem-humorado que dá a impressão de não estar nem aí com qualquer coisa que não sejam os esportes que ama. No dia em que encontrou o repórter de Go Outside para uma entrevista em pleno aeroporto de Cumbica (SP), em sua primeira passagem pelo Brasil depois de três anos na estrada, refazia duas malas que pesavam 60 quilos. Para evitar pagar excesso de bagagem, Nick não se importou de espalhar cuecas e cordas pelo chão diante do check-in da British Airways. Seu corpo magrelo — 58 quilos e 1,78 metro — vestia blusa e calça surradas que pareciam ter dois números a mais. A barba estava por fazer e o cabelo era moicano. “Não ligo pra essa coisa de estética”, diz. Nick já usou dreadlocks, corta os próprios cabelos, que já pintou de amarelo, e chegou até a barbear apenas a metade direita do rosto (confira a foto no blog). Na verdade, Nicola é um desencanado espírito livre, avesso a máscaras sociais. Não se importa de ficar sem tomar banho por 16 dias e ostenta um carisma que já lhe rendeu experiências como apresentador da série De Carona com o Nick, no programa Gravidade Zero, exibido na TV e na internet.
“O Nick é capaz de te dar o último gole de água ou o único dólar que resta na carteira”, diz o escalador norte-americano Aaron Jones, que acompanhou, a distância e também pendurado no paredão, a escalada solitária de Nick na perigosa Porcelain Wall, em 2006. O nome vem da rocha, tão frágil que faz lembrar porcelana. O brasileiro quebrou um hiato de 11 anos desde a primeira conquista da via mais difícil dessa parede, batizada de When Hell Was in Session (VI 5.10 A5), percorrendo seus 800 metros ao longo de 11 dias. O esforço físico de içar 150 quilos de equipamento, mais comida, fogareiro e o tubo de PVC onde alivia e carrega suas necessidades fisiológicas o fez descer 6 quilos mais magro. “Enfrentamos tempestades pendurados na rocha e dormimos em cavernas em um dos invernos mais chuvosos da história do Yosemite”, conta Aaron. A dupla repetiria a dobradinha trabalhando junta na produção do documentário alemão Am Limit, dos irmãos Alex e Thomas Huber — um bico que rendeu a melhor remuneração de Nicola nos últimos anos: US$ 5 mil por 23 dias carregando equipamento de filmagem morro acima. Hoje, Nicola conta com patrocínios da Territorio OnLine (que ajuda com as passagens aéreas) e das empresas Blue Water Ropes, Yates Big Wall Gear e Outdoor Research (que dão os equipamentos que ele usa para ir para as paredes). “Foi só em 2006, na feira de equipamentos em Salt Lake City, em Utah, que as empresas começaram a olhar pros meus feitos”, conta Nicola. “Sempre fui independente e continuo sendo. Tenho que ralar a camisa para fazer a parada acontecer.”
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