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COBERTURA ONLINE TRANSMANTIQUEIRA
 
O diário de bordo da Transmantiqueira Solo
 
Texto: Vinícius Moysés Nascimento
4 de março de 2015 - 17:10
 

Pablo Bucciarelli na Pedra do Baú. Foto: André Dib
 

Início da travessia às 7h55 da manhã do dia 13/02, todos se abraçam mandando energias positivas ao Capitão Pablo Bucciarelli em sua longa jornada. Concentração e rezas fazem parte do ritual de largada. Ele se levanta e antes de partir agradece novamente a presença de cada participante na dura jornada que terá pela frente. Antes de partir diz claramente: “a travessia também é de vocês, todos aqui fazem parte desse sonho, não estou sozinho nessa”. O primeiro encontro será em Sapucaí Mirim, apenas para um leve reabastecimento. Todo o grupo se encontra com uma expectativa incrível, profissionais de porte como é o caso do fotógrafo André Dib e da cinegrafista Cassandra Cury, também fazem parte do grupo chamado agora de “Caravana Transmantiqueira”. A dificuldade para conexão de internet nos limita a transmitir em tempo real os locais por onde passamos, mesmo tendo um modem móvel 4G dentro de um dos veículos de apoio.

A maior preocupação agora é com o reabastecimento, a equipe precisa ser eficiente e dar total confiança ao guerreiro em solitário, assim ele poderá fazer o melhor nas trilhas sem ter a preocupação de pensar no que comer e onde dormir, fato que ocorreu em 2013 com o amigo Pedro Alex.

Pablo Bucciarelli se concentrando para o início da travessia. Foto: André Dib  
Com parte da equipe momentos antes do início da travessia. Foto: André Dib

Por volta das 15h00, já em direção a Pedra do Baú, o ritmo era forte. Uma parada programada no Sítio do Robertinho foi importante para troca de roupas molhadas e análise do tempo. Uma chuva pesada com muitos raios fez o tempo ficar completamente encoberto tornando o acesso à Pedra do Baú arriscado. A parte de vertical que seria feita na pedra por Luiz Milan Lasanha, um dos caras mais capacitados em vertical na Serra da Mantiqueira, teve que ser abortado por segurança. A parada no Baú foi rápida, apenas 42 minutos para trocar novamente as roupas molhadas e comer algo para seguir o caminho. Neste momento Pablo apresenta leves sinais de cansaço, fala e reflexos lentos apontam sinais de fadiga e exaustão do guerreiro em solitário que luta contra o sono e tem como objetivo fazer sua primeira parada na entrada do Horto Florestal, Parque Nacional Campos de Jordão. Após 108 km percorridos decide dormir por três horas na entrada do parque. Cansado, com leves assaduras e pés sensíveis, farão com que saia de calçado Crocs. O horário previsto para despertá-lo será às 6h45 da manhã do dia 14/02 e já estamos no início da madrugada. Desde Monte Verde dormi três horas, sendo fracionado em uma hora, e depois mais duas horas logo após intervalo acordado de duas horas prestando assistência ao montanhista-corredor. Dada a relargada no dia 14 na entrada do parque, o Capitão vagarosamente parte caminhando rumo ao próximo ponto de encontro. Chuva, neblina e frio o atacam na dura estrada fazendo com que fique mais lento, Cassandra, Dib e Samuel, esse último com o drone da montanha, procuram locais de melhor luz para captar as imagens, mas o tempo não ajuda, não dá trégua para o guerreiro em solitário que é obrigado a suportar as intempéries e seguir sozinho pela estrada cheia de lama.

Eis que ele chega à Fazenda da Onça por volta das 13h10. Animado, muito bem humorado, deixou a timidez no caminho cantando com o ritmo de “Trem das onze” de Adoniran Barbosa uma canção de própria autoria inserindo o nome de alguns membros da caravana, algo espirituoso, divertido e sensacional. No embalo das emoções do grande guerreiro, todos se comovem sobre os relatos, algo de extrema sutileza e admiração, só de lembrar e estar junto, meus olhos se enchem d’água. Neste momento todo o grupo descansa aproveitando a parada de uma hora e trinta minutos do Capitão, menos eu. Preciso deixar tudo pronto para acordá-lo, colocá-lo de pé e pressioná-lo para que saia o quanto antes. Neste exato momento o guerreiro da Transmantiqueira em solitário dorme.

Dia 15/02, já no estacionamento do Pico dos Marins, a previsão de encontro neste local havia sido prorrogada em uma hora devido a um leve erro de navegação, com isso veio o forte e doloroso cansaço. A programação era parar por duas horas para cuidados e sono, mas a fadiga e o terror mental eram tão grandes que o obrigou a parar por cinco horas e dez minutos. Aterrorizado pelo que enfrentaria e traumatizado pela passagem de 2013 o guerreiro solitário se vestiu com impermeáveis dos pés a cabeça prevendo fortes chuvas por toda travessia. Depois de vestido e pronto para partir, o levantei e perguntei: “Capitão, do que mais precisa para partir?” ele me responde ainda temido: “Agora preciso de coragem”. Mesmo cansado e com um grande temor que o rondava ele partiu. Fiz questão de acompanhá-lo no início do percurso para ao menos distraí-lo dos pensamentos tempestivos. Apesar de todas as intempéries de agora e daqui para frente, o Capitão ainda tem forças para sorrir após 174 km percorridos. Em relação às minhas horas de sono! Hum…. só consegui dormir mais uma hora e meia, levantei, prestei toda assistência necessária novamente e voltei a dormir, dessa vez sentado e por apenas vinte minutos.

E o Pico dos Marins, aquela montanha que em 2013 quase fez Pablo e seu amigo Pedro Alex desistirem da travessia por conta da chuva de granizo e raios, o que reservou dessa vez? Aquele despertar preocupado e tenso do Capitão para encarar, até então, a montanha psicologicamente mais dura, devolveu-lhe a confiança e o crédito de pensar que seria possível ser ainda mais rápido e menos sofrido. Rezas e pedidos aos Xamãs o fizeram uma verdadeira máquina. Suas preces foram atendidas, as dores sucumbiram, por toda travessia dos Marins não pegou chuva, assim chegando ao Campinho, depois do Itaguaré um novo homem, o sentimento de um possível sofrimento ficou na montanha, enfim em paz novamente com os Marins. Neste momento, Cassandra, Dib e Samuel se preparam para subir a Pedra da Mina, via Paiolinho, para captação de imagens incríveis. O trio de filmagem, fotografia e drone está no esforço máximo para captação de imagens épicas, para isso, resolveu subir seis horas antes a montanha, assim não correria riscos do Capitão já ter passado no local para as imagens. Certamente o trio terá uma noite de duro trekking e muito frio a 2.797 msnm.

Sete horas e quatro minutos do dia 16/02, o Capitão Bucciarelli parte para a travessia da Serra Fina. Pouca carga, mas com falas firmes de que será rápido na passagem da montanha. Jaqueta, calça e polainas fazem parte da indumentária para transpor com conforto e velocidade a cortante serra. Por aqui, no acampamento base, Cassandra e Lasanha partiram mais cedo para algumas imagens na crista da serra. Certamente do outro lado, pela subida via Paiolinho, Dib e Samuel, esse ainda debilitado por complicações digestivas, passaram uma noite muito fria no Pico da Pedra da Mina, lá, eles os aguardam para imagens belas no ponto mais alto de toda travessia.

A subida ao Pico dos Marins. Foto: André Dib  
Pablo chegando na base do Marins na madrugada de domingo. Foto: André Dib

Ainda na base, Bruno, Cris e Lucas se recuperam para mais uma longa jornada. É até engraçado, só assim para não ouvir e não nos divertir com o Bruno, quando dorme. Extremamente eficiente com seu Land Rover Defender, anda nas estradas de chão com se fossem suaves caminhos, o carro flutua nas trilhas da serra, tamanha habilidade. Enquanto todos ainda dormem, já está tudo preparado para o Capitão, até consegui dormir por duas horas, mas sozinho na arrumação da madrugada foi bastante movimentada.

Ainda no dia 16/02, após o reencontro do grupo na Garganta do Registro, não obtivemos boas informações. Samuel e Dib que se programaram para subir para a captação de imagens na Pedra da Mina não conseguiram chegar. Após horas de um duro trekking, foram obrigados a desistir da investida. Mochila rasgada, erros de navegação e muitos tombos, foi um sinal da montanha dizendo, “me respeitem”. Samuel, preocupado e ciente dos riscos da Serra Fina tomou uma cruel decisão dizendo: “vamos descer Dib, a montanha não nos quer aqui”. Agora são 21h30, a previsão para a travessia era de 14 horas, já estamos com mais de 15 horas e nada do guerreiro solitário. Sem lanterna e com pouca comida, a Caravana Transmantiqueira tenta descansar, mas com o pensamento aflito tentando imaginar o que aconteceu. Todos esperam que ele tenha parado se abrigado e dormido, e que no amanhecer ele volte a caminhar. Ficaremos acordados Lasanha, eu e Bruno, numa noite que promete ser fria e longa.

Dia 17/02, 2h52 da manhã, após termos revezado sono de duas em duas horas entre nós, chega o Capitão. Com uma lanterna de cabeça iluminando o caminho, ele abraça o Bruno comemorando um dia de tormenta vencido na Serra Fina. Logo que vi, sem mesmo ter completado minhas duas horas de descanso, me levantei e fui prestar os primeiros cuidados. Em uma conversa breve enquanto comia e trocava de roupa, o Capitão revelou que pegou um forte nevoeiro, principalmente no Vale do Ruah, onde perdeu bastante tempo. Após iniciar a descida, já em torno das 16h00, a preocupação e o sentimento de culpa bateram, sem lanterna de cabeça e pouca comida, foi obrigado a seguir em frente. Dizendo ser obra de Deus, depois de muita reza se deparou com um grupo de jovens logo antes de ascender ao Pico dos Três Estados. Ele parou, se identificou, explicou a real situação ao grupo. Todos se sensibilizaram e ficaram surpresos com tamanha coragem, deram comida, bebida e uma lanterna de cabeça para que ele cumprisse o objetivo, chegar ao local de encontro da Caravana Transmantiqueira. Disse: “Meus anjos da guarda resolveram acampar na Serra Fina no mesmo final de semana que eu estava de passagem por lá!”. Agora todos descansam despreocupados, o Capitão levantará às seis horas da manhã para reiniciar a saga, agora com o espírito ainda mais fortalecido.

Passando rapidamente pela portaria do Parque Nacional de Itatiaia, o Capitão em solitário interrompe brevemente a caminhada para comer às 10h30 e aproveita para rever às futuras previsões de tempo das travessias seguintes. Tive o prazer de percorrer um pequeno trecho com o guerreiro, apenas para descontraí-lo e ter a certeza de que estava tudo bem. Logo em seguida, ele segue vagarosamente aumentando a velocidade do trekking rumo à Visconde de Mauá. E mais uma vez nos surpreendeu, dessa vez chegou ao local de encontro à frente da Caravana. Rapidamente acertamos tudo enquanto era entrevistado pela repórter do jornal O Globo, Ana Lúcia Azevedo. Visivelmente cansado e com febre, fruto de uma queda na resistência do sistema imunológico, o Capitão tem pela frente um trekking curto de 18 km em direção ao vilarejo de Fragária. Dorme e recupera-se aos trancos e barrancos, com pausa de uma hora e meia de descanso para novamente seguir o curso. A equipe e o Capitão estão ansiosos para a triunfal chegada. A distância que o carro tinha que percorrer era muito longa e sinuosa. Com isso, ele chega a Fragária muito antes do carro que estava com todo seu material de travessia. O local de encontro é uma escola, ao lado da igreja. Após preparar-se novamente, no início da manhã ele parte em direção ao penúltimo ponto relevante da rota, a cidade de Alagoa, para iniciar a última travessia de montanha, a Serra do Papagaio. A mistura de ansiedade e aflição surgiu quando o guerreiro solitário comentou que não lembrava muito bem do último trecho. Fui atrás de alguém que pudesse ajudar com informações locais sobre a última montanha. Eis que encontro um morador local das antigas de codinome Sajobi, seu pai fora tropeiro. Pablo, pedindo orientações sobre a travessia ouviu: “Hoje você não vai conseguir fazer a travessia. Impossível”. Em um tom desafiador, o Capitão pergunta e recebe outra resposta: “É uma travessia longa e confusa, com esse tempo cheio de neblina, nem um morador que conhece todo o percurso tem coragem de concluir a travessia nessas condições”. Após ter coletado o máximo de informações, ele partiu rumo ao último trekking da travessia. O próximo local de encontro será em uma bifurcação na saída de uma pousada abandonada a 1.900 msnm de altitude, Retiro dos Pedros. Parte da equipe se deslocou para o ponto após ter se alojado em Aiuruoca, último vilarejo da travessia. Enquanto o Capitão enfrentava a montanha, todos da equipe se deliciavam com uma saborosa pizza da Dona Azeitona. Por fim, separamos alguns pedaços e levamos para o ponto de encontro com o Capitão, antes de concluir toda travessia.

Cassandra, Dib, Lasanha, eu e o incrível Bruno com sua Defender, que mostrou toda habilidade para chegar ao local de encontro. No meio de uma chuva torrencial e muita lama, Bruno nos apresentou mais uma vez total domínio, conhecimento e habilidade pilotando sua máquina devoradora de trilhas. Após muitas chacoalhadas, chegamos ao local de encontro. Colocar cinco pessoas para dormir dentro de uma Defender não seria tarefa fácil. Lasanha saiu do carro e montou uma cabana junto ao veículo para observar a chegada do Capitão. Bruno não aguentou o frio dentro do carro e montou sua barraca ao lado do mesmo. Cassandra e Dib dividiam centímetros do banco traseiro do carro buscando melhor conforto. E eu, até aquele momento com apenas oito horas de sono acumulado, apaguei no banco da frente. Sem o menor conforto, meu corpo desligou por cinco horas, foi quando acordei e sai do carro. Já havia quinze horas de duração no trekking e nenhum sinal do guerreiro. O grupo, preocupado com a pouca comida e algo quente para beber, desceu para Aiuruoca para compra de comida e líquidos. Dib e eu ficamos no local combinado aguardando a chegada do Pablo. Por volta das 9h10 da manhã, olho para o alto da crista e avisto o Capitão descendo a montanha. De longe mostrava sinais de esgotamento físico, lento, ziguezagueando e mancando, numa cena lastimável, Pablo chega contando que a montanha o destruiu. A chuva torrencial alagou as trilhas, com água até os joelhos ficou impedido de encontrar o caminho. Por fim, ele encontrou um abrigo na montanha, portaria do Parque Estadual Serra do Papagaio. Dois geólogos e um guarda-parque o receberam, deram comida, banho quente, roupa seca e uma cama para descansar. Impedido de se manter no conforto por muito tempo, o Capitão despertou após um sono de trinta minutos, criou coragem de vestir novamente toda roupa molhada e seguiu caminho após ter recebido informações riquíssimas do francês, Manu Landroz. Já sentado e recebendo os primeiros cuidados, eu e Dib entregamos a pizza a ele. Na caixa havia uma singela mensagem assinada por todos. Capitão agradece e se emociona.

Ainda meio atordoado e sem condições de manter um diálogo linear, ele resolve partir sem se trocar, queria ao menos chegar. Em um surto mental por ver seu estado, ele muda de ideia, camiseta manga longa xadrez, calça cargueiro, bandana e viseira, deram um ar novo ao guerreiro. Animado novamente, seguiu para a última pernada da travessia.

Chegando próximo à igreja, ponto final da travessia, o Capitão chega correndo, ignorando toda dor da lesão na perna e fadiga muscular. Muito emocionado, ele se ajoelha nas escadas da igreja e chora, em prantos agradece a conquista aos céus. Chega o fim da travessia, mas o início de grandes projetos futuros na Serra da Mantiqueira. Amizades criadas e fortalecidas tornam a conquista de Pablo Bucciarelli uma coisa única, uma conquista de todos. Fortemente emocionado, ele faz questão de agradecer um a um pelo feito realizado.

Pablo Bucciarelli na chegada no centro de Aiuruoca. Foto: André Dib  
Pablo Bucciarelli durante a chegada. Foto: André Dib

Fica na memória dos participantes e nos registros publicados a bela e árdua travessia da Serra da Mantiqueira, que todos levem consigo o sentimento único de que foi um ato de amor, uma forma de apresentar a Mantiqueira em toda sua essência e glamour, uma serra que deve ser preservada e conhecida pelos amantes da aventura e da natureza.

“Todos tem uma Mantiqueira dentro de si, ela é de todos, um patrimônio da natureza. Cada um tem uma forma de senti-la, pode ser selvagem, turística, comercial, agrícola ou apenas uma montanha, é uma região de cultura própria, tem sua história.
A Mantiqueira é de todos, mas não é de ninguém.”
_ Pablo Bucciarelli
 
 
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