Reflexões de uma volta ao mundo
Texto: Laura - Tradução Elias Luiz - Fonte: Roundwego
15 de dezembro de 2010 - 19:29
 
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Eu estou em Moshi, na Tanzânia, curtindo o meu copo da manhã de Masala Chai (chá com especiarias). O galo canta e as nuvens que encobrem o Mt. Kilimanjaro aos poucos se afastam do pico, revelando o cobertor de neve fresca que ela recebeu da tempestade da noite anterior. Eu ouço o som sibilante de vassouras de palha mexendo vindo das estradas empoeiradas de Swahili e gritos de "Jambo! Mambo? " dos vendedores de rua.

Quando a cidade acorda e os moradores destas verdejantes áreas de cultivo de café e plantação de bananas, começam o seu dia, eu estou arrumando minhas malas. Preparando-me para uma longa caminhada pelas estradas da Tanzânia, o nosso próximo destino. Poderia ser uma manhã típica para mim ... só que não é. Este é o tipo dia de viagem que eu sempre busquei e sonhei, mas este é o meu último destino.

Na estrada há 14 meses, a jornada tornou-se uma parte de mim. Com apenas uma semana para o fim, eu estou emocionada, minha cabeça inundada com um milhão de lembranças. Das agitadas ruas de Buenos Aires, ao tráfego congestionado das ruas de Nairobi. Nós caminhamos pelos Alpes e subimos em altitudes nos picos do Himalaia. Cruzamos o deserto indiano em uma caravana de camelos e vimos elefantes banhando-se nos rios da Tailândia. Nós pedalamos por plantações de arroz no sudoeste da China e fizemos kaiak nas águas cristalinas das ilhas Fiji. Nós vimos o nascer do sol no Taj Mahal e nas Grandes Pirâmides. Vimos o entardecer sobre o Sydney Opera House e no Serengeti.

Nós nos familharizamos com os toaletes precários onde era apenas um buraco no chão e também com as noites sem dormir envolto em redes de mosquito e trens infestados de ratos. Nós escovamos os dentes com a água de nossa garrafa em banheiros invadidos por um exército de formigas. Nós tomamos comprimidos anti-malária como se fossem pastilhas. Nós carregamos a nossa casa nas costas e as memórias em nossos corações.

Ao embarcar em nossa viagem ao redor do mundo, eu imaginava que estava preparada para encarar a realidade. Mas depois de atravessar o mundo, eu percebo que eu nunca poderia ter me preparado para a mudança inesquecível de consciência que teria.

A viagem foi, em uma palavra, "transformadora".

Refletindo sobre essas experiências, eu não posso imaginar, mas acho que volto a garota que eu era. Lembro-me arrumando minha mochila e me sentindo tão desconfortável deixando os jeans e o secador de cabelo para trás. Eu me lembro da sensação de frio, da mochila pesada, em plena carga, sobre os meus ombros pela primeira vez, me perguntei porque isso tudo não poderia caber em uma mala executiva de rodinhas? Lembro-me de pé no aeroporto esperando para decolar em nosso primeiro vôo transcontinental, percebendo que eu não tinha um telefone para verificar o correio de voz. Lembro-me de me sentir livre neste momento.

E esse sentimento de liberdade, de pura aventura que vem com a incerteza de onde vamos colocar nossa cabeça a cada noite, é o que eu acho que mais vou sentir saudades. Vou sentir falta de quando nossos dias eram nossos dias, quando cada decisão tornava-se um desafio. Vou sentir falta de conhecer pessoas fascinantes de todo o mundo - os locais e viajantes - cujas histórias me inspiraram e me tocou profundamente.

É claro que há inúmeras coisas que eu sinto falta de casa. Eu sinto falta de falar com minha mãe todos os dias e ir em caminhar com meu pai. Eu sinto falta ir descalça para o banheiro no meio da noite. Eu sinto falta do som familiar das vozes dos meus amigos do outro lado da linha telefônica. Eu sinto falta de lençóis frescos e do cheiro de roupa limpa. Eu sinto falta da mudança das estações, embora eu nunca pensei que eu teria saudade disso.

A parte difícil? Eu comecei a sentir mais confortável na minha pele quando estou desconfortável. Em nosso ambiente em constante mudança, tornei-me um camaleão, adaptando continuamente ao meu redor. Eu prospero no desafio, a vulnerabilidade que sinto quando tudo à minha volta é estranho e estrangeiro. É neste estado, bruto, que me sinto mais viva, e de alguma forma despertei para tudo ao meu redor.

Com uma experiência como esta, não se passava um dia que eu não estava repleta de gratidão. O menino indiano aleijado andando com suas mãos através do nosso sujo vagão no trem foi arrebatador. O birmanês, condutor de riquixá que todos os dias esperava em frente ao nosso hotel com a chance de fazer um dinheirinho, aqueles doze órfãos preciosos que capturou meu coração na Zâmbia, são imagens que povoam minha cabeça. Vivendo diariamente nesse ambiente, eu cresci, grato pelas coisas que eu sempre tive como base. A realidade é que não importa onde minha trajetória de vida me leve, não é provável que eu nunca precise se preocupar em colocar comida na mesa, um telhado sobre minha cabeça e encontrar água limpa para beber. Para os milhares de outros que conheci ao longo do caminho, estes pensamentos consomem os seus dias.

E com esse reconhecimento, vem a nossa sincera gratidão por ter alguém para compartilhar as experiências. Muitas pessoas me perguntam como eu poderia querer passar 400 dias consecutivos, a cada minuto de vigília, com meu marido? Meu pensamento é: como eu poderia não querer isso? Claro que há dias em que estamos bem, mas esta experiência como um casal tem sido mais profunda do que os nossos treze anos juntos. Foram tantos momentos de pura felicidade nesta viagem, quando abraçamos o outro, sabendo que estamos vivendo o nosso sonho. Mas foi nos momentos difíceis, os momentos mais fracos e vulneráveis em conjunto, que foram os mais significativos. Vendo o olhar um do outro lacrimejando ao passar de táxi pelas favelas de Mumbai, quando acordados juntos na noite ponderando a situação da Birmânia, um aperto de mão, quando abaixamos o olhar ao ver em Buenos Aires famílias revirando o lixo em busca de comida e quando mimamos as crianças orfãs na Zâmbia, como se fossem nossos, esses são os momentos que eu vou valorizar. Estes são os momentos em que essas camadas, muitas vezes escondidas de nós mesmos são reveladas. Vendo o outro reagir a uma espécie de impotência e desespero que antes não podiam sequer imaginar existir, de alguma forma nos conecta em um nível mais profundo.

Meus amigos próximos e familiares que têm uma compreensão real do que esta viagem foi, manifestaram um pouco de preocupação sobre a forma como vamos lidar deixando isso tudo para trás. "Você nunca vai se ajustar à realidade?", Perguntam. A coisa é, eu acho, a nossa realidade parece de algum modo diferente. Abrimos o nosso mundo e não estamos prestes a fechar o livro.

Os orfãos da Zâmbia disseram o melhor. Girando os quadris e tocando a a bumba no mais recente estilo do hip-hop da Zâmbia, eles cantaram para mim: "Traga de volta agora, trazê-lo, trazê-lo agora!" E é exatamente isso que pretendemos fazer. Vamos trazer essas lições, essa perspectiva global, o estado elevado de consciência, de volta para casa com a gente.

Daqui uma semana a partir de agora eu estarei em um aeroporto novo, pronto para embarcar nesse último vôo intercontinental. Algo me diz que a mochila vai descansar um pouco mais sobre meus ombros e os jeans cairá um pouco estranho em meus quadris.

Algumas pessoas crescem sabendo que quer ser um médico ou piloto. Eu cresci sabendo que eu queria ver o mundo. Após 14 meses na estrada, eu tenho que dizer: Eu apenas comecei.

 

 
 
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