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Patagônia
 

texto: Ernesto Stock
8 de maio de 2018 - 09:50

 
Ernesto Stock e Dreza
 

Não conseguia acreditar que ela não gostasse de andar de bicicleta. Eu nunca tinha esquecido daquela história. Ainda mais naquele lugar que parecia ter sido feito para pedalar. Talvez um pouco de exagero. Se não fosse o vento, quem sabe.

El Chaltén é uma pequena cidade da Patagônia. Fundada em 1985 para garantir a presença argentina em uma fronteira historicamente disputada com o Chile. Os verdadeiros donos daquela terra foram dizimados. A vida e a história daquela região estavam gravadas na aridez e na beleza da sua paisagem. Por mais que insistam nos nomes dos exploradores europeus para batizar suas montanhas.

Estivemos lá pela primeira vez há dez anos. Capital nacional do trekking. A fama internacional se justificava no fato da cidade ser a porta de entrada do Parque Nacional de los Glaciares e abrigar trilhas e escaladas incríveis, como as que levam a base e ao cume do Cerro Torre e do Cerro Fitz Roy. Ou Cerro Chaltén. Aonikenk, Montanha que fuma, segundo os extintos Tehuelches. A exuberância daqueles cumes cobertos de gelo e neblina, misteriosos, natureza bruta, sedutora demais para um tropicalista convicto. Amor à primeira vista.

Em meio a todo esse encantamento, conhecemos um casal, Sebastian e Marcela. Inauguravam um aconchegante bar perto da praça central. Entre uma cerveja e outra, nos contaram que tinham acabado de voltar de uma viagem de bicicleta. De Ushuaia ao Alasca. Tiveram uma filha no extremo norte da América e, quando a menina estava com dois anos, voltaram pedalando. Abriram o bar.

Pedalamos metade do mundo depois daquele encontro. Sempre lembrava daquela história. Um dia voltaríamos pedalando. E voltamos, como havíamos planejado. Dez anos depois. A pequena cidade já não era mais a mesma. Nem a gente.

Onde o Vento Faz a Curva

O plano inicial era começarmos em El Chaltén, entrar no Chile por Villa O’Higgins, subir pela Carretera Austral até onde o tempo permitisse, cruzar para a Argentina e voltar de ônibus até El Calafate, de onde partia nosso voo de volta para o Brasil. Tudo planejado e decupado. Devoramos tudo a respeito. O livro e o guia do Guilherme Cavallari sabíamos praticamente de cór. A Carretera Austral é uma dessa estradas mitológicas, construídas geralmente em planos megalomaníacos de integração nacional. Paisagens de tirar o fôlego e lugares remotos. Parecia perfeito.

Desembarcamos em El Calafate empolgados demais. Abrimos mão do ônibus e decidimos fazer os duzentos e trinta quilômetros até El Chaltén de bicicleta. Afinal, estávamos na Patagônia. Esperamos muito tempo para esperar mais. Com dois bons dias de pedalada chegaríamos ao nosso ponto de partida. Chegaríamos ao nosso ponto de partida...

Cheios de confiança e expectativas, partimos na tarde do dia dois de janeiro. As 16:00. Isso, às 16:00. Anoitecia depois das 22:00. E ainda tinha a confiança. Pedalaríamos umas seis horas, acamparíamos, mais dez horas no dia seguinte e estaríamos lá antes do almoço do dia quatro. Um plano perfeito, se não fosse.

Pedalamos cerca de trinta quilômetros até o cruzamento com a Ruta 40. Dobramos a esquerda e seguimos rumo ao norte. Armamos a barraca em uma baixada ao lado de uma pequena ponte, em um dos poucos lugares que encontramos onde ficaríamos escondidos de quem passasse na estrada. Por precaução. Durante a noite, acordamos com o barulho de algum animal circulando em volta do nosso acampamento. Não tivemos coragem de sair para ver o que era. Nos divertimos lembrando que “pumas não comem ciclistas”.

Acordamos tarde. Preparamos o café com uma vista ao mesmo tempo linda e desoladora das estepes patagônicas. Áridas e desertas. Algumas lebres atravessavam o campo correndo como uma flecha. Não tão perigosas quanto o puma. A estrada seguia impiedosa, seca, até a Parador La Leona, um hotel e restaurante conhecido por ter supostamente hospedado Butch Cassidy, famigerado ladrão de carga eternizado pelo cinema americano. Ninguém sabe se é verdade. Pouco importa. A verdade é sempre ressignificada pela memória. E a memória pelo que suporta e convém. Naquela vizinhança, uma leoa, no caso “uma puma”, atacou o pioneiro Perito Moreno, que resistiu e sobreviveu heroicamente. La Leona. Como nos filmes. O vilão e o herói.

Um vento lateral, não muito forte, começava a incomodar. Armamos a barraca no fim da tarde, um pouco a frente do parador. Só depois nos demos conta que tínhamos pedalado bem menos do que esperávamos. Sobravam mais de noventa quilômetros para o dia seguinte. Talvez porque tivéssemos parado demais. Talvez fossem as fotos.

Bem-vindo à Patagônia

A origem do nome Patagônia, assim como o destino de Butch Cassidy ou a coragem felina de Perito Moreno, é repleta de dúvidas e interpretações. Segundo a versão mais fantástica, nem por isso verdadeira, os primeiros conquistadores espanhóis, que chegaram na região com Fernão de Magalhães em 1520, teriam avistado pegadas enormes. Os Tehuelches, povo originário era quase meio metro mais alto do que os europeus. Usavam grandes botas feitas de couro do guanaco. Patagon era o nome de um personagem popular da literatura de cordel espanhola. Gigante Patagon.

A primeira notícia da manhã não era das melhores, mas nada que não fosse esperado. O pneu da Dreza furado. No mínimo dois espinhos. Os pequenos arbustos que cercavam nosso acampamento estavam repletos deles. Minúsculos e potencialmente contundentes. Minhas meias, tênis e todo o resto do equipamento, infestados. Demoramos para limpar tudo. Poucos quilômetros à frente, no cruzamento com a Ruta 23, uma lebre atropelada. A primeira de muitas. Não tão rápida quanto um carro.

Já sabíamos do vento. Fazia parte. Esperamos por ele. Uma condição geográfica bastante peculiar, favorecida pela cordilheira e pela proximidade com o polo, garante ventanias definitivamente imprevisíveis. E afinal, era só o vento. Na Ruta 23, pela primeira vez, pegamos o ele de frente. Nos divertimos tentando vencê-lo por algum tempo. E foi perdendo a graça. O vento nos açoitava como eu nunca tinha visto antes. Derrubou a Dreza da bicicleta algumas vezes. Pedalávamos com muita força, marcha leve, nas retas e nas descidas. Nas subidas, era impossível.

Empurrávamos as bicicletas morro acima. Praticamente não saíamos do lugar. Uma média de cinco por hora. Quanto mais nos aproximávamos do Lago Viedma, mais o vento piorava. Uma verdadeira loucura. Uma garoa gelada. A sensação térmica despencava. Nosso plano de chegar para o almoço já se transformava em uma piada. As 15:00 horas, desistimos. Montaríamos a acampamento onde desse e esperaríamos o vento diminuir. Não era tão simples encontrar um lugar minimamente protegido daquele martírio. Avistamos uma estância, como chamam as fazendas por aqui, na margem do lago, protegida por enormes ciprestes. Um lugar perfeito. Faltava convencer o dono.

 
Dreza
 

Apesar de fechada, a porteira não estava trancada. Um bom sinal. Entramos com cuidado e caminhamos cerca de duzentos metros até um segundo portão, de onde se podia ver a casa. Totalmente aberto. O vento zunia como um enxame de abelhas. Três cachorros latiam incomodados com nossa presença. Apesar da proximidade, não era possível ouvir os latidos. Quanto mais nossas palmas. Avancei me protegendo com a bicicleta até conseguir chegar bem perto da porta. Chamei duas vezes. Um gaúcho típico, moreno, baixo, forte, de calças pampeiras, boina e alpargatas apareceu na porta. Cruzou os braços. Um punhal dourado na cintura. Definitivamente ele tinha um bom motivo para ficar bravo. Se ele quisesse. Com os olhos divididos entre o rosto duro e o punhal reluzente, ensaiei a conversa imaginando qual o melhor plano para a fuga imediata.

- Olá. Mil desculpas por invadir assim sua propriedade, mas temos um problema...

- Eu sei qual é o problema – respondeu com um sorriso torto, entre o sarcasmo e a doçura – o vento.

Seguiu uma gargalhada. Era um bom começo. Minhas chances de ser morto tinham diminuído consideravelmente. Antes mesmo dele nomear a autorização para acamparmos em seu quintal, a Dreza já escolhia o lugar. Montamos a barraca protegidos pelas únicas árvores em um raio de quilômetros.

Despertamos bem cedo, assim que o sol nasceu. Aprontamos tudo e fui até a casa me despedir e pedir um pouco de água. Oscar vivia em uma casa bem pequena. Toda de madeira. Cheirava lenha. Quente. Esquentava água em um bule enorme e enegrecido de fuligem. Parecia ter dormido com a boina. A aparente dureza não podia mais esconder a doçura. Enchi as garrafas de água. Antes de me despedir, perguntei sobre o vento.

- Quando começa assim, não para por pelo menos três dias. E piora à medida que vocês sobem. Com o vento de hoje acho que vocês não conseguem pedalar vinte quilômetros ...

Faltavam cinquenta. A constatação caia como uma bomba. Ou só reforçava o que já sabíamos intimamente. Não falei nada para a Dreza. Já bastava um sofrendo por antecipação. Precisávamos chegar naquele dia. Tínhamos pouca comida. E nossa pedalada ainda nem tinha começado. Trinta e cinco e parecia que tínhamos pedalado cento e cinquenta. Minha perna queimava. Seis horas e trinta e cinco quilômetros. O Fitz Roy cercado de nuvens no horizonte. Os nomes nativos sempre fazem mais sentido. Uma caminhonete vermelha para no acostamento e nos oferece uma carona. Um casal de ciclistas holandeses. Aceitamos sem pensar. Nos deixaram no mirante na entrada da cidade, exaustos. Bem-vindos a Patagônia.

 
Lago O'Higgins
 

O Segundo começo

Os gaúchos estão espalhados por toda a Patagônia, assumindo o lugar deixado pelos ancestrais forçadamente desaparecidos. Muitos vieram do norte do país para trabalhar nas grandes estâncias cuidando da terra e das ovelhas. A dureza do clima e da paisagem encontrou na sua força e na determinação um parceiro. Compunham. A secura da pele castigada e a rusticidade das roupas funcionais e resistentes funcionam como um esconderijo. Tão doces quanto os cordeiros que eles assam inteiros e naturalmente.

Logo que chegamos, encontramos duas ciclistas francesas e um inglês. Vinham no sentido contrário e tinham cruzado a fronteira chilena há dois dias. O inglês parecia um tanto quanto desanimado. Nos indicou um camping e pedalou com a gente até lá. Nos contou que havia pego dez dias de chuva sem parar no Chile.

De acordo com a assessoria inglesa, era só montar a barraca que o dono sempre apareceria no final da tarde. Comprei uma cerveja, fizemos comida e esperamos.

Conforme indicado, quando no Brasil já era quase madrugada, Domingos aparece. Vestia um macacão azul da secretaria de obras públicas que o deixava ainda mais baixo e atarracado. Uma boina de gaúcho. Dos mais típicos. Fiquei feliz que o proprietário não fosse um gringo. A internacionalidade de El Chaltén, por vezes, parece um pouco descolada da realidade. Disse o preço. Expliquei que ficaria acampado por dois dias e depois subiria para a montanha. Concordou sem sorriso que deixássemos as bicicletas guardadas por ali até voltarmos. Perguntei se podia pagá-lo na manhã seguinte. Eu precisava comprar dinheiro argentino. Ele me disse que conhecia um lugar e me acompanhou até um mini- mercado na esquina. Se negou a receber quando fui pagá-lo com os pesos. Amanhã você me paga, disse sem sorriso. Fiquei confuso entre a desconfiança e a gentileza.

Apareceu na manhã seguinte quase onze horas. Com o mesmo indefectível macacão. Sorriu e me perguntou se já estava pronto para guardar as bicicletas. Simples assim. Trancamos as duas em uma edícula anexa ao camping. Quando lhe entreguei o dinheiro referente ao pagamento, me pediu que anotasse tudo em uma pequena caderneta que ele guardava no bolso do macacão. Meu nome, quanto tinha pago e referente à quantas diárias. A caderneta de Aquiles. O método. Minha confusão se desfez em simpatia. Simples assim. Retribuindo uma espécie de intimidade selada por aquele gesto, ofereci que ele usasse as bicicletas enquanto estivéssemos fora. O segundo sorriso camuflado. Não sabia pedalar. Andava a cavalo, como a natureza que o esculpira determinara.

Voltamos depois de duas noites caminhando pelo parque. O nascer do sol, vermelho, refletido nas paredes imponentes do Fitz Roy vale o frio de uma vida. Depois de resgatarmos nossas bicicletas e armarmos a barraca, decidimos procurar o bar do Sebastian. A Dreza lembrava exatamente onde era o bar. Nada parecido com o que eu tinha na memória. A pequena e charmosa cervejaria dava lugar a um pub badalado, repleto de turistas. Contamos nossa história para o cara que tirava a cerveja. Chamou Sebastian na cozinha. Sebastian se chamava Sebastian e ainda era o dono do bar. Pelas paredes, no cheiro que saía da cozinha e no bom gosto, reencontrava minha memória. Contei minha história. Disse que escreveria. A surpresa era maior que a felicidade que eu esperava. Mais minha do que dele. A cozinha chamava. O tempo do novo bar era outro, os pedidos não paravam. Voltaria outra hora para saber mais e tomar uma cerveja com o bar mais tranquilo. Quem sabe se parecesse mais com o que eu imaginava.

 
Refúgio
 

Travessias

Anotei novamente meu pagamento na caderneta do Domingos. Ele me deu um desconto. Por sua conta. Marquei o desconto. Pediu para que eu escrevesse o país de onde eu vinha.

Começaríamos, enfim. Compramos comida para cinco dias. A travessia da Argentina pelo Chile por esse caminho prometia tanto quanto o primeiro começo. Dois barcos, uma trilha carregando as bicicletas, postos de fronteira exclusivos para pedestres e ciclistas e algumas horas de pedal. Em meio a esse monte de variáveis, o mais difícil era sincronizar tudo com os horários dos barcos. Nosso eterno otimismo, fatal naquelas bandas, nos dizia que em dois dias estaríamos em Villa O’Higgins.

A primeira parte consiste nos quarenta quilômetros que separam a cidade da ponta sul da Laguna del Desierto. Uma beleza impressionante. Picos nevados, lagos cenográficos e coloridos. Quase todo plano. Cenário perfeito para um passeio de domingo se não fosse o vento frontal em toda sua extensão. O acampamento privado custava bem mais do que o que pagamos na cidade. Uma estrutura consideravelmente mais precária. Decidimos fazer um acampamento selvagem, ainda mais depois de um funcionário insinuar, quase como uma ameaça, que não poderíamos acampar nas proximidades. O que não é verdade, desconsiderando a visão oportunista do proprietário daquele monte de terra. Muito perto de um posto dos carabineiros, segundo ele. Corríamos o risco de sermos acordados e desterrados no meio da madrugada. Agradecemos a “generosidade” da informação e pedalamos na direção de onde tínhamos vindo. A menos de trezentos metros tinha uma capela. Pensamos em dormir por lá. A porta fechava por fora. Achamos mais prudente buscar um lugar menos evidente. Entramos uns cinquenta metros para dentro da mata fechada e sumimos camuflados. Acordamos e tomamos café com os temidos carabineiros.

Alimentados, tomamos o barco que atravessa a Laguna às dez da manhã. A travessia é tranquila e dura menos de uma hora. Cascatas inacreditáveis despencam das geleiras ao leste. Aportamos na margem norte, onde fica o posto de controle migratório da Argentina. Muita gente acampada pelas vizinhanças. De graça. Do posto argentino ao chileno são cerca de vinte quilômetros de trilha atravessando às montanhas. Os sete primeiros são famosos. Impossível pedalar. Empurrando a bicicleta morro acima entre raízes e erosões. Alguns ciclistas tinham dificuldade para transportar os alforjes. Literalmente aos trancos e barrancos, chegamos ao posto chileno às 16:00. Um quilômetro do porto de Candelario Mancilla. O barco para Villa O’Higgins partia 17:00. Objetivo alcançado. Quando nos despedíamos apressados do oficial que controlava os passaportes, ele nos informou que o barco tinha sido cancelado devido ao mal tempo. A previsão era que o próximo partisse em três dias.

 
O gaucho
 

O vento nos amontoa

Candelario Mancilla é uma vila. Ou quase isso. Sem contar o posto de controle, três casas. Uma família. Mancilla. O próprio Candelario nos dá boas vindas. Enterrado com vista privilegiada do lago. Nenhum mercado ou coisa parecida. Uma senhora faz pão e vende ovos. A filha do pioneiro falecido, uma senhora aparentando cerca oitenta anos, passa os dias bebendo mate ao lado do fogão. De costas para o porto, ao contrário do pai. Quem sabe não tivessem o mesmo gosto pelo isolamento. Quando chegamos, só havia uma barraca. Agustin, um ciclista chileno. O tempo foi passando e outros chegando. Primeiro, Eduardo, Rodrigo e Jacob. Chilenos. Jacob tinha quatro anos, filho do Eduardo. Não imaginava como ele tinha chegado até ali caminhando. Depois, um casal de ingleses. Por último, exaustas, duas ciclistas argentinas carregadas de equipamentos.

No fundo do camping administrado pelos anfitriões vivos, havia uma espécie de cabana de madeira que servia de cozinha e abrigo. Um fogão e um chuveiro a lenha. Aos poucos, foi enchendo. Russos, franceses, alemães, israelenses. Perguntavam sobre o barco. Três dias. Dois dias. Quem sabe amanhã.

A dupla de ciclistas argentinas era composta por uma mulher de cerca de quarenta anos e uma de vinte. Se conheceram pela internet procurando companhia para a viagem. A primeira viagem de bicicleta. Leda era proprietária de uma loja de tecidos artesanais perto de Buenos Aires. Especialista em teares e tingimentos naturais. Sofia era estudante de educação física e jogadora de handball. Morava com os pais em Mar del Plata e queria sair de casa. Procuraria emprego em Bariloche. Apesar de vidas tão diferentes, a motivação para a viagem era a mesma. Embora não conseguissem nomear.

No outro lado da mesa, quieto e com olhos muito próximos, Alexander, mais russo impossível, sonhava em comprar um terreno para viver isolado às margens do lago. Morava na Sibéria. Menos 50 graus no inverno. No verão, trabalhava como guia de cruzeiros na Antártida. Conversamos um pouco, conversei, sobre os pioneiros nos polos, Shackleton, Amundsen, Scott. Ele rebatia citando o nome de muitos russos que eu sequer conhecia. Orgulhoso. Nossa história é outra, com o maior sorriso que podia. Uma ligeira tremida no canto superior esquerdo dos lábios.

O barco chegou de repente três dias depois. Justo quando completamos dezesseis pessoas, sua capacidade máxima. O barco maior, Robinson Crusoé, estava quebrado. Não resistira ao mal tempo. Em seu lugar, tivemos que embarcar em menos de vinte minutos no Capito. O tempo pode virar outra vez. Se o Crusoé não resistiu, imagina o Capito. Durante três horas o pequeno barco foi atingido por todos os lados. Sacudia como um pedaço de isopor no meio de um maremoto. Alguns icebergs flutuavam. Ao meu lado, as Argentinas rezavam. Alexander tremia o outro canto da boca. Ficava difícil perceber se de felicidade de ter zarpado ou desespero no meio de tanta gente.

Desembarcamos. Uma placa marcava o fim da Carretera Austral. Pedalamos todos juntos. Sofia disparou na frente com toda a disposição de uma atleta de vinte anos. Disposição e urgência. Na noite anterior, Leda havia nos dito que estava tendo problemas em convence-la a seguir viagem. Tinha ficado um pouco impressionada com a dificuldade dos primeiros dias. Fizeram na chuva. Além das intenções divergirem na origem. Leda queria completar o percurso até Puerto Montt dentro de quarenta dias. Sofia viaja com o oposto da pressa.

Naquela noite, jantamos todos juntos na cozinha superequipada e aconchegante de um camping repleto de ciclistas. De todo o mundo. O russo devorava dúzias de ovos com pepinos e cebolas. Sempre que tirava o gorro, gastava mais tempo arrumando o cabelo comprido, estilo metaleiro anos oitenta, do que combinava com a personalidade prevista. Fiz um macarrão com mariscos enlatados. Conversamos muito com as argentinas. As duas eram tão diferentes que a parceria não admitiria meio termos. Ou seria uma experiência mágica ou um fracasso completo. O diálogo poliglótico e cheio de opiniões diversas era facilitado pelo vinho. Que nunca falta no Chile.

Villa O’Higgins é uma pequena cidade pitoresca fundada em 1966. Um conjunto de pequenas casas de madeiras cercadas por montanhas. As características geográficas da região garantiram um forçado isolamento. A conclusão da Carretera Austral em 2000 e a abertura da fronteira com a Argentina em 2003, aumentaram consideravelmente o número de turistas que visitam a região, principalmente no verão. A economia antes restrita ao funcionalismo público, exército e pequenos comércios, agora sobrevive basicamente de visitantes estrangeiros. Um pequeno museu conta a história dos primeiros colonos que chegaram na região no começo do século XX com o incentivo do governo chileno para garantir a ocupação de suas fronteiras. Um caminhão abastece a cidade com frutas e legumes quase frescos uma vez por semana no verão.

Dadas as condições de acesso e da paisagem, eu e a Dreza resolvemos deixar a cidade em dois dias e aproveitar o dia seguinte para fazer uma trilha até o cume do Cerro Submarino. Visto da nossa barraca, parecia lindo. A pressa, definitivamente, também não estava conosco. Convidei o russo com um pouco de receio. Nossa caminhada tranquila potencialmente transformada em uma escalada com o Boukreev. Ele recusou. Precisava descansar. Arrumou o cabelo. Demasiadamente humano.

Acordamos bem cedo. O horizonte limpo. Apressaríamos o café para aproveitar o bom tempo. A barraca das argentinas não estava mais lá. Enquanto esquentava a água, Sofia aparece na cozinha com cara de sono. Tinha dormido no albergue anexo ao acampamento. Leda tinha ido embora. Assumia o lugar do russo na nossa expedição. Na manhã seguinte, partiria de ônibus. Quem sabe encontrasse a amiga em Cochrane.

 
Lagna de Los Tres e o Fitz Roy ao fundo
 

Refúgios

Nossa próxima parada era Puerto Rio Tranquilo, distante cerca de 110 quilômetros. Decidimos fazer o percurso em dois dias. No meio do caminho, existem dois refúgios gratuitos. Um a trinta quilômetros e outro a sessenta. Dormiríamos no segundo.

Acordamos tarde, fizemos compra para mais cinco dias. O próximo mercado ficava a mais de 200 quilômetros. Para as emergências, dois litros de vinho. Começamos a pedalar por volta das 14:00 da tarde. Sol. A estrada ficava cada vez mais bonita. Centenas, sem nenhum exagero, centenas de cascatas escorregavam das geleiras do nosso lado esquerdo. Surreal. O primeiro refúgio fica bem ao lado da estrada e de cara para uma dessas paisagens inacreditáveis. Parados na porta, pedindo carona, avistamos Jacob, o garoto de quatro anos que conhecemos em Candelario Mancilla. – Amigos! - chamou irresistivelmente. Paramos. Conversamos por um tempo com ele e seu pai. Chegaram mais quatro ciclistas espanhóis. Dois casais. O tempo passava. Jorge, um gaúcho que vive em uma estância atrás do abrigo, apareceu com mais lenha e histórias. O terceiro gaúcho e a confirmação indiscutível de nossas impressões. Escurecia. Mais um casal de franceses. Jorge trouxe ovos. Não precisou de muito mais para decidirmos passar a noite por ali. Os espanhóis prepararam um banquete e ficamos conversando em volta do fogo até quase duas horas da manhã. Jorge riu durante toda a noite. Especialmente quando o espanhol de sessenta e cinco anos repetia que sua boa forma física se devia a passar muitas noites fazendo amor.

Partimos juntos na manhã seguinte. Nós fomos os únicos que seguimos para o norte. Fazia frio e garoava de leve. Oitenta quilômetros. Menos de duas horas depois a chuva apertou consideravelmente. Chovia forte. A temperatura despencava. Insistimos cerca de uma hora. Encharcados. Precisávamos encontrar abrigo até que a chuva diminuísse um pouco. Sabíamos do segundo abrigo, que segundo o Jorge era difícil de encontrar. Não podia ser visto da estrada. Avistamos uma porteira do lado esquerdo. Segundo as informações, o refúgio ficava do lado direito. Quem sabe. Entramos. Uma pequena cabana de madeira e um celeiro repleto de peles de ovelha. O cheiro muito forte. Não se parecia com um refúgio. Apesar de vazio, a presença de algumas roupas penduradas nas estruturas de madeira e outras pistas sugeriam que alguém vivia ali. Era difícil de imaginar. Pela janela de vidro, podíamos ver um espaço de cerca de dois metros quadrados. Um fogão a lenha no centro, uma pequena mesa de frente para janela e, do lado oposto, uma cama estreita como uma tábua. Tiramos as meias e as luvas encharcadas. A Dreza tremia de frio. Fiz um chá quente e comemos um chocolate. Esperamos até que a chuva desse uma trégua e o corpo esquentasse. Quando deixamos o celeiro, um rio que não existia tinha se formado entre a cabana e a estrada. Atravessamos com água nos meus joelhos e uma força razoável. Mal recomeçamos e a chuva volta mais forte do que antes. Pedalamos alguns minutos e encontramos uma porteira, desta vez do lado direito. Abri. Cinquenta metros para dentro, uma aconchegante cabana de madeira com uma lareira e lenha seca. As paredes cobertas por assinaturas de ciclistas de todos os lugares. A maioria das mensagens tinha conteúdo parecido. Algo como “o abrigo salvador”.

Acendemos o fogo. Aproveitamos para secar tudo no calor. Fizemos uma polenta. Com lentilhas. Abrimos um vinho. A chuva não dava trégua. Recolhi mais lenha no bosque e deixei secando. Busquei água. Tínhamos um baralho, vinho, comida, água e fogo. E amor. E muita chuva. Lembramos do espanhol. E lá se foram dois dias sozinhos na cabana.

 
Dreza
 

Romantismos a parte

Óbvio que àquela altura do campeonato estávamos mais que atrasados. Mesmo que não tivéssemos exatamente um destino final. Resolvemos percorrer os cento e setenta quilômetros de nos separavam da cidade de Cochrane em dois dias. O tempo estava bom e estávamos alimentados. Sem mais cabanas. Atravessamos a balsa que separa Rio Tranquilo de Puerto Yungai. Dos dois lados existem abrigos no próprio píer. Funcionais, mas não tão românticos. Ainda bem. A estrada continua sua saga de cada vez ficar mais incrível. No dia seguinte estávamos em Cochrane.

Depois das noites nas cabanas, chegar em uma cidade de quatro mil habitantes era como descer no Terminal Tietê em São Paulo. Inclusive as hipérboles e os exageros. Um banco. Um supermercado que vendia de tudo, de frutas a espingardas. Os barulhos. Os rostos se repetiam. Encontramos Jacob e seu pai escolhendo tomates. Agustin, o ciclista chileno de Candelario Mancilla, chegou na cidade um dia depois. Vinha de Caleta Tortel. Teve problemas para encontrar o segundo refúgio no meio da chuva. Os terrenos ao lado da estrada estavam alagados. Improvisou um abrigo entre algumas pedras. Menos de dez minutos de onde a gente se esquentava no fogo. Tinha os olhos baixos, como se estivesse gripado. Perguntei se tinha notícias de Leda ou de Sofia. Nada.

Aproveitamos nossa estadia na cidade para visitar o Parque Nacional de Tamango. Era nossa melhor oportunidade de avistar um Huemul, espécie de servo andino ameaçado de extinção. Desde que começamos a pedalar, não faltavam placas alertando sobre sua possível presença. A fauna da região é extensa e as características do terreno facilitam que os animais sejam avistados. Além das lebres, guanacos, raposas, pássaros dos mais variados, podem ser vistos aos montes. Em alguns parques e acampamentos cartazes orientam como se comportar caso encontre um puma. Andamos mais de oito horas pelas trilhas do parque, inclusive a que tinha o sugestivo nome de Sendero do Huemul. E nada. O consolo vinha da vista deslumbrante do Lago e do Rio Cochrane, candidatos a águas mais transparentes do mundo. A vista era espetacular. O tom turquesa das águas era impressionante. Quando chagamos a um pequeno píer de madeira fazia sol. A combinação parecia perfeita. Sem muito tempo para desistir, tirei a roupa e me atirei na água. Como pular em um balde de gelo. Depois do choque e da tensão, o corpo relaxava e todos os músculos se entregavam. Impagável. Deitei sobre as madeiras esperando me secar. Quatro caiaques se aproximam. Estavam acampados na entrada do parque. Felizes, me mostravam em uma câmera de celular fotografias de um Huemul a menos de cinco metros avistado a alguns minutos.

 
Dreza
 

Saída estratégica pela direita

Os dias passavam rápido e, quando deixamos a cidade, decidimos dobrar a oeste nas margens do Lago General Carrera e começar o caminho de volta para a Argentina. A informação sobre os transportes nunca é precisa e o clima é uma caixa de surpresas. Nosso voo decolaria de El Calafate em dez dias. Prudência e dinheiro no bolso, canja de galinha não faz mal a ninguém. Acampamos pouco antes de chegar a Puerto Bertrand, ás margens do Rio Baker. O mais volumoso e cobiçado do Chile. Um consorcio internacional planeja construir uma represa e uma usina aproveitando a evidente força das águas. A energia produzida seria enviada as mineradoras do norte do país. Uma sucessão de tragédias ecológicas. Moradores, ambientalistas e operadores de turismo se organizaram em um movimento conhecido como Patagônia Sin Represas. Pela manhã, tive dificuldade em pegar água do rio para o café, tamanha a sua força. Lindo. Definitivamente, o progresso vem sendo usado como desculpa para justificar os maiores absurdos em nome de um capitalismo funesto. Em todo mundo. Da china que ameaça os rios do Vietnã à Belo Monte.

No cruze de Maitén, a Carretera Austral se encontra com a Ruta 265 que contorna o Lago até a cidade de Chile Chico, vizinha a fronteira com a Argentina. Onde o lago muda de nome e passa a se chamar Buenos Aires. Apesar de não fazer parte da rota tradicional, esse trecho é, sem dúvida, um dos mais espetaculares. A estrada avança sinuosa e estreita entre rochas e penhascos. Uma sucessão de subidas e descidas que nunca acaba. O número de ciclistas pelo caminho diminui drasticamente. Nos dois dias que demoramos para completar o percurso, apenas quatro bicicletas. Duas pequenas cidades garantem alguma estrutura, como mercados e hospedagem para quem se arrisca por ali. Puerto Guadal e Mallin Grande. Montamos nossa barraca pouco depois da segunda. No meio de um bosque, próximo de um riacho tranquilo, que em nada lembrava o da noite anterior. O som que se ouvia durante a noite remetia a um daqueles enfeites chineses de origem feng-shui. Confesso que dormi melhor com o violento barulho do Baker. Nosso último acampamento selvagem.

A paisagem mudava radicalmente a medida que nos aproximávamos de Chile Chico. Na Praça das Armas, dezenas de pés de damascos carregados. O clima e o solo eram os mais férteis de toda região. Enquanto me acabava com os damascos frescos que eu nunca tinha experimentado, sentia uma estranha saudade da aridez e do frio.

Um clima de melancolia marcou os sete últimos quilômetros até a Argentina, Paso Jeinemini, e a cidade de Los Antigos, capital da cereja. Até festival de rock homenageando as frutas. O camping tinha o sugestivo nome de “Pobre Gaúcho”. O dono tinha o mesmo nome do primeiro gaúcho que conhecemos quando começamos. O quarto deles. Oscar. Carregava o mesmo punhal pendurado na cintura. Não estranhava mais. Uma ovelha pastava em volta da nossa barraca. Ela ainda parecia estremecer quando percebia o punhal. A ovelha, o gaúcho e o punhal eram uma boa metáfora da Patagônia.

Compramos dois quilos de cereja por menos de quinze reais. Enormes e suculentas. Passamos o dia na beira do rio. Dezenas de crianças brincavam na água gelada como se estivessem na praia. Estávamos adiantados. Cinco dias para voo. Decidimos pegar o ônibus para El Chaltén.

 
Dreza
 

A escaladora

Domingos continuava com a caderneta na mão fazendo as rondas no camping no fim da manhã e da tarde. Nos horários em que não trabalhava. Na manhã de sábado o encontrei bebendo uma cerveja com um amigo na porta do mercado onde me levou para trocar dinheiro. Por algum motivo, tentava esconder o copo. Fingi que não vi. Aprendi a reconhecer o sorriso. Mais timidez do que seriedade. Definitivamente, a vida por ali não devia ter sido fácil. Não saber andar de bicicleta definitivamente não tinha sido uma escolha.

El Refúgio, esse era o nome do camping, ficava repleto de escaladores naquela época do ano. Muitos chegavam em dezembro e ficavam até março. Além das agulhas geladas e desafiadoras, a cidade é cercada de falésias como vias de todos os níveis de dificuldade. Era curioso acompanhar a relação dos jovens aventureiros com o gaúcho. Domingos não escalava ou andava de bicicleta. Muito menos fazia yoga. A dureza daquela geografia nunca seria motivo de diversão. Do que imaginava do meu personagem.

Voltamos ao bar do Sebastian. Do Sebastian, não o que eu guardava na minha memória. Falamos pouco, sem nenhuma intimidade. Os anos que passei lembrando daquela conversa, inventaram uma relação que só existia para mim. Hoje eu admirava as diversas dimensões de um encontro. O que eu era hoje. A revelação mais surpreendente era de que sua filha, aquela que voltara do Alasca com dois anos em um carrinho do lado da bicicleta do pai, não gostava de pedalar. Na minha história, era repetiria a façanha dos pais assim que pudesse. E podia, mas não queria. Essa era a minha história, não a dela.

Voltei para o camping depois de quatro mojitos. De chinelos, tropicalista convicto. A Dreza tinha me avisado para calçar os tênis. Como um bom aquariano teimoso, quase perdi a ponta do dedinho. O exagero também faz parte do perfil astrológico.

Muitos escaladores com a idade que eu imaginava que teria a filha do Sebastian, de quem eu não lembrava o nome, riam em volta do fogo e assavam uma pizza. Fiquei imaginando quem poderia ser a menina. Um pouco mais nova que a Sofia. Quem sabe em outra história, aquela que nunca saberemos o final. Escalar também era bacana. Porra, mas viajar de bicicleta era perfeito. E uma coisa não excluía a outra. Porque não? Se ao menos um dia ela fizesse uma viagem como a que eu tinha feito agora. Opa, peraí...

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