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Aconcágua, coração de pedra e gelo
 
texto: Ronaldo Franzen (Nativo)
5 de fevereiro de 2018 - 10:30
 
Othon Leonardos, Alexandre Oliveira e Mozart Catão.
 

Há 20 anos os três amigos ficaram na Montanha! Em vossas homenagens sigo tentando cumprir o que prometi! Republico o texto que escrevi um mês após a tragédia.

Ronaldo Franzen - Nativo

Aconcágua - Fevereiro de 1998

Em Novembro de 1994 fui convidado pelo Waldemar Niclevicz a escalar a face Sul do Aconcágua, mas das histórias de amigos espanhóis que deixaram alguns dedos por lá, sabia que teria de conhecer outras montanhas, outros gelos, saber minhas limitações e de meus companheiros. O Waldemar já havia estado lá duas vezes, com Renato Kalinoski (de Curitiba), e com Pedro Derosso da Argentina.

Após conhecer algumas montanhas na Patagônia, fui convidado novamente pelo Waldemar a participar em 1996 do projeto Sete Cumes, então conheci o Denali no Alaska, digamos da pior maneira. Não chegamos ao cume, mas repetimos a via West Rib, três dias de aproximação, oito dias de parede e outros para descer a normal, buscar os esquis e outras cargas na base da via. De novo o Dead Valley.

Depois de alguns dias em casa para recuperar a sensibilidade nos pés, fomos pros Alpes com o pretexto de aclimatação, mas só teve Shopping. Fomos sem informação e sem comida, ao Elbrus, no Cáucaso, e descobri que a vida de Sherpa não é fácil, abandonei o Buana e sua namorada na Rússia e voltei para o Marumbi.

Em setembro de 1997 fui convidado pelo Mozart Catão, 35 anos, que estava aguardando liberação para escalar o Carstensz, sua última montanha do projeto Sete Cumes, a escalar a face Sul do Aconcágua. Desta vez fazendo parte de uma expedição brasileira composta por Alexandre Oliveira, 24 anos, seu companheiro de Serra dos Órgãos, que o acompanhou também no Denali, e havia tido um excelente desempenho no Aconcágua em 1997; mais Othon Leonardos, 23 anos, que cresceu em Teresópolis, também conhecia Mozart e Alexandre da Silva Oliveira da Serra dos Órgãos, mas vivia em Brasília. Othinho tinha uma excelente aclimatação e como projeto pessoal concluir os Sete Cumes até o ano 2000 para ser o alpinista mais jovem a completar tal façanha.

Sabendo das condições da escalada da face sul, sugeri que fosse convidado o Dálio Zippin Neto, que já havia escalado na Bolívia, já estivera no próprio Aconcágua, e passado 9 meses escalando nos Alpes. Como escalávamos juntos há mais de 10 anos, gostaria de entrar na parede com alguém que eu tivesse sintonia.

Saímos de Curitiba no dia 10 de janeiro de 1998, eu, Othon e Mozart com a minha Espaçonávika Toyota Bandeirantes, destino Mendoza, onde no dia 13 encontramos com Alexandre e Dálio que já haviam saído no dia 8 de ônibus para aliviar um pouco do peso. Após retirarmos a autorização e realizarmos as últimas compras, conversamos com Lito Sanchez, um mendocino que já havia escalado a face sul pela rota dos franceses em 89 e nos deu várias dicas importantes. Definimos que os três melhores aclimatados entrariam na parede; no dia 15 estávamos em Puente del Inca (2700 m), pesando a carga que seria carregada pelas mulas, uma parte para Plaza de Mulas, outra que subiria depois para Plaza Francia. Às 18h entramos no Parque Provincial do Aconcágua, chegando ao acampamento Confluência (3350 m) por volta das 22h. No dia 16 saímos às 9h, chegando em Plaza de Mulas (4200 m) por volta das 16h. Acampamento base da rota normal onde faríamos nossa aclimatação. Armamos nosso acampamento, encontramos com alguns amigos brasileiros e fizemos novas amizades, estávamos todos entusiasmados com o tempo bom, confiantes e ansiosos com relação a aclimatação.

Entrada do Parque Aconcágua.
  Nativo, Othon, Alexandre, Dálio e Mozart Catão.
     

Após um dia de descanso, subimos até Nido de Condores (5300 m), portear uma parte da carga. Dia 19 novamente descanso e filmagens nos penitentes. Dia 20 subimos novamente para Nido, mudando o acampamento.

Já se notava a diferença na aclimatação, Mozart sempre muito na frente, parecia nem sentir os efeitos; seguido sempre de perto por Alexandre, depois Othon e Dálio, nitidamente eu era quem mais sentia, sempre chegando por último, e muito cansado. Dia 21 subimos para continuar a aclimatação, apenas de pochete e cantil. Mozart foi até o cume, Alexandre até a entrada da canaleta, Othon e Dálio foram até o refúgio Independência (6400 m), e devido ao peso nas pernas fui até 5900m. Dia seguinte o tempo continuava espetacular, saímos por volta das 8h, para uma nova tentativa. Não andei nem 300m já me sentia muito cansado resolvi voltar para Nido descansar mais um dia, Othon e Dálio foram ao cume em 5h30. Dia 23 saí às 7h, antes de chegar em Berlim (5800 m), já havia vomitado todo o café, continuei subindo parando em Berlim para tomar um chá, com muito custo consegui chegar a Pedras Brancas (6250 m), forcei até chegar em um ponto que a energia que tinha seria usada na volta. Após uns 500m de descida encontrei com Mozart e Alexandre que estavam subindo novamente para melhorar a aclimatação, neste momento foi decidido que já tínhamos três bem aclimatados, e para aproveitar o tempo bom iríamos o quanto antes para Plaza Francia. Dia 24 descemos de Nido para Mulas, dia 25 fomos para Confluência em 4 horas, dia 26 subimos para Plaza Francia (4100 m) em cinco horas, armamos acampamento e começamos a admirar a parede. Dia 27 continuamos no acampamento, estávamos muito tranquilos, pois acabávamos de sair de mulas com cerca de 300 escaladores, e ali estávamos apenas em companhia do Sentinela de Pedra, e o bom tempo continuava.

Dia 28 fomos os cinco fazer um reconhecimento da via, eu, Othon e Alexandre subimos uns 200m da rampa inicial e Dálio e Mozart foram até o primeiro bivaque a 4800 m. Dia seguinte Alexandre ficou de cozinheiro e nós quatro novamente entramos na via para fazer algumas imagens e fixar corda nos pontos mais difíceis. Dálio foi na frente, nas temíveis torres tirou a bota rígida e subiu a chaminé de bota Snake assegurado por Mozart. Eu e Othon subimos com as piquetas, crampons e mais alguns equipamentos para aliviar o peso no primeiro dia de escalada. Neste dia passou ao nosso lado a maior das avalanches que vimos, inclusive filmada por Alexandre e maldosamente editada pelo Fantástico como acontecendo logo após a saída deles de Plaza Francia, quem é montanhista sabe que aquela hora é difícil ocorrer uma avalanche naquelas proporções. Dia 30 foram vistos os últimos detalhes, separada a comida e combustível para 4 dias, armada e desarmada a barraca várias vezes, a definição da saída seria tomada em cima do glaciar superior, mas sabíamos do desejo dos três de saírem pela rampa Messner, que adiantaria a escalada em um dia. Dia 31, após o último café com toda a equipe, eles entraram na via; eu e Dálio subimos as encostas do Mirador em frente à parede e acompanhamos a escalada fazendo algumas imagens. Tudo estava indo muito bem. Por volta das 16h eles já estavam acima das torres, entrando no glaciar médio e fizeram seu primeiro acampamento na via, onde seria o segundo bivaque. Dia 1 de fevereiro continuamos acompanhando a travessia do Glaciar Médio, as paredes de rocha arenisca e a entrada no Glaciar Superior, através da barreira de seracs (borda do glaciar), estávamos muito contentes pois eles estavam progredindo rápido e logo nos encontraríamos em Confluência. Nesta noite se formaram algumas nuvens, amanhecendo o terceiro dia com o cogumelo característico, nosso conhecido da aclimatação na rota normal. Atravessaram o Glaciar Superior armando o terceiro acampamento na base da rampa Messner, no dia 3, apesar de continuar o cogumelo decidiram correr o risco de entrar na rampa Messner conquistada em Solo a partir do Glaciar Superior pelo próprio Reinhold Messner em 1974, e desde então a saída mais utilizada. As outras duas opções seriam descer provavelmente em 2 dias, ou sair pela Normal Francesa de 1954, que de onde eles estavam levaria talvez 3 dias, o que eles esperavam fazer em 1 dia e sair pelo Filo del Guanaco (colo entre o cume sul e o cume norte), mas no dia 3 após terem iniciado a escalada às 9h, às 20h estavam no final da franja de rocha a 600m acima do Glaciar Superior, estavam cavando uma plataforma para armar a barraca, teoricamente o local era seguro, pois iriam passar a noite ali para no outro dia fazer a rampa final da saída Messner e já estariam no final da canaleta da Rota Normal. Mas infelizmente foram surpreendidos por uma pequena avalanche de placa que derrubou Mozart até o Glaciar Superior, e deixou Othon enroscado pela perna direita e com várias fraturas, que imediatamente nos chamou pelo rádio, descrevendo todo o ocorrido, sua situação e a do Alexandre que estava mais abaixo e a direita preso em outra corda.

Das 20h às 22h revezamos o rádio, pedindo para Othon se proteger do frio, pedir para o Alexandre chegar até ele, mas a neve aumentava e com a noite o frio de -30ºC a 6200 m, ele já não tinha mais contato com Alexandre, começou a se despedir dizendo que amava seus familiares, pediu para conquistarmos umas vias por ele, que tomássemos um vinho em Puente del Inca, e que continuássemos nosso trabalho no COSMO.

O dia 4 de fevereiro amanheceu 20 cm de neve em Plaza Francia, lá em cima deve ter nevado pelo menos 1 m, ao meio dia o cogumelo subiu e pudemos ver dois pontos pendurados no local que Othon havia nos descrito, aguardamos até o final da tarde ansiosos para que tivéssemos algum sinal de vida para podermos tomar alguma atitude, quatro escaladores que já haviam feito a sul e estavam na normal também estavam de prontidão, e sabíamos que nas atuais condições da parede o mais seguro seria descer do cume. Na descida de Plaza Francia fomos substituídos por dois montanhistas de Córdoba, que nos avisariam qualquer novidade pelo rádio, mas o tempo só piorou, e até o dia 10 não pudemos ver nem a montanha.

Ficou a lembrança dos três amigos que ficaram na montanha para sempre, e a vontade de continuar a realização dos seus sonhos em busca de uma organização do esporte, e de tornar o Montanhismo reconhecido, não só como um esporte de competição mas principalmente de contemplação e respeito pelas montanhas e pelos seres animais e vegetais que as habitam.

Ronaldo Franzen - Nativo

 

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