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A beleza bruta do Death Valley
 
texto e fotos: Pedro Botafogo e Joana Allis
26 de abril de 2017 - 07:55
 

Joana Allis na saída do Fall Canyon.
 

Diferente dos demais parques que visitamos até agora, onde a vegetação nativa ia tomando conta da paisagem ao nos aproximarmos, dessa vez a vegetação ia sumindo. Areia e rochas iam tomando conta da paisagem, que se tornava cada vez mais inóspita e interessante. O parque não tem uma portaria, apenas uma grande placa, na beira da estrada, indica que você está entrando em um parque nacional. De cara o Death Valley já demostrava a brutalidade que deu origem ao seu nome e liberdade que oferece aos que buscam solitude.

O Parque, criado em 1994, possui cerca de 13.750 km2, sendo o maior parque da Califórnia e também o maior dos chamados lower 48, ou seja, dos 48 estados sem considerar o Alaska e Havaí. Terra de extremos, o que demanda respeito pelo ambiente, no parque localiza-se o lugar considerado o mais seco e quente da América do Norte. Porém no inverno é possível ver neve nas partes mais elevadas no parque, que possui picos de até 3.368m (Telescope Peak).

Através dos seus quase 1600km de estradas (pavimentadas ou não), é possível exploras as diversidades deste lugar, que possui 91% de sua área classificada como Área Selvagem, que é o maior nível de proteção que uma terra pública pode receber nos Estados Unidos. O mais interessante é que para ser considerado Área Selvagem, além de ser proibida qualquer construção/ocupação ou uso de qualquer equipamento mecanizado, o local deve oferecer oportunidades de solitude e recreação outdoor. Ou seja, uma área sem marcas de civilização, onde se pode andar e acampar sem muitas restrições.

Cansados da estrada, paramos na primeira área de camping do parque, a Emigrant Camp Ground. Com chão de pedras, havia apenas uma torneira com água potável. O banheiro era em uma área de uso diurno (day use area), fora, mas ao lado do acampamento. Por estar localizado na parte alta do parque, não era tão quente. Talvez por ser mais isolado, o camping era de graça.

Como chegamos já no final da tarde, decidimos que não iriamos até o centro de visitantes. Aproveitamos para organizar o carro, colocando as roupar de frio na mala de teto e trazendo as roupas de calor pro nosso “armário” interno. Como o camping era apenas para barracas, também aproveitamos para armar a nossa e organizar isolante, saco de dormir, etc. Apesar de podermos dormir no carro, decidimos usar a barraca para não causar nenhum problema no camping.

 

Estrada acesso.
 

Ao longe, escutamos um cara dizer que já estava há 8 dias no parque. Focamos a atenção na conversa e decidimos puxar assunto para pegar algumas informações. Richard, muito falante e empolgado com o parque, ficou animado em nos passar suas dicas e no fim nos emprestou um mapa, para que pudéssemos entender e planejar melhor. Além do Richard, conhecemos um casal que havia feito uma trilha para o Lemoign Canyon. Uma trilha curta e que começava no próprio acampamento. Seria essa nossa primeira trilha no parque.

A noite veio e com ela o breu. Mas eis que por detrás das montanhas surge a lua, cheia, gigante e soberana. Seu brilho ofuscou as estrelas menores e iluminou o vale. Tentei algumas fotos, mesmo sem tripé, mas sem grandes resultados. Mas, o registro mental foi devidamente feito e o momento aproveitado. Dormir no carro tem suas vantagens, como conforto, porém dormir em barraca, ao mesmo tempo que nos deixa mais expostos, nos proporciona uma integração maior com o ambiente. É possível que muitas coisas na vida sejam assim, onde a melhor forma de vivermos algo seja nos expondo, nos fragilizando de forma intencional. Quem sabe assim podemos sentir e absorver de forma mais intensa e real o que nos cerca.

Talvez por isso muitas pessoas não tenham tanta preocupação ou mesmo amor pela natureza, pois cada vez mais criamos e usamos formas de nos proteger dela. Quando criamos e usamos essas armaduras e redomas, que nos protegem dos fatores “negativos”, como frio, calor, vento, mosquito, etc, corremos o risco de também deixarmos de fora os fatores positivos, como sentir uma brisa num dia quente, um banho de chuva, o pé descalço na terra ou mesmo o frio que nos faz sentir o sangue correr pelas veias.

“Em qualquer contato com a Natureza, recebemos mais do que buscamos ” John Muir

Ao amanhecer vi algo que talvez já tivesse visto outras vezes, mas talvez nuca tivesse reparado ou ficado tão impressionado. Vi algo que acontece todos os dias, mas que nunca havia pensado. Vi a lua se por. Sim, mais uma vez cheia, gigante e soberana ela saiu de cena, serena, como quem gentilmente concede o palco para seu antagonista. Fiquei maravilhado e me perguntando “Quanto pores da lua já vi?”. Talvez tenha olhado vários, mas só hoje realmente vi. A exposição ao meio mais uma vez gerou seu efeito aguçador.

 

Por da lua.
 

Comemos nosso clássico café da manhã (granola, aveia, leite -em pó...-, maça, frutas secas e mel), e partimos pra trilha. Terreno plano, trilha sem muito rastro, marcada apenas pelas clássicas pedras empilhadas. Seguimos um tempo, até a entrada de um pequeno cânion, o qual decidimos explorar. No final, nos deparamos com uma parede de rochas, a qual decidimos subir. Lá de cima pudemos ver melhor a parte baixa do parque, a Salt Basin (bacia de sal). Sim, o vale da morte é formado por uma grande planície de sal.

Como era possível avistar o camping, marcado pela única árvore em um raio de muitos quilômetros, decidimos voltar descendo pela lateral do cânion e cruzando o campo por outro lado. Umas 3,5h de caminhada e estávamos de volta.

Quase meio-dia, já era hora de darmos as caras no centro de visitante para registrarmos nossa entrada e pegarmos o jornal/mapa (depois aprendemos que com o Passe Anual, não precisávamos registrar nossa entrada nos parques). Todos os parques possuem um jornal (grátis), feito para cada época do ano (inverno, primavera, etc). Nele, além de um mapa básico, há informações sobre as principais trilhas, áreas de acampamento, condições das estradas (internas), vida selvagem e regras básicas de segurança.

 

Primeira caminhada.
 

Chegamos no centro de visitante, em Furnace Creek, por volta das 13h. O termômetro marcava 100°F (~37,5°C). Calor, mais calor seco. No sol, parece um maçarico, mas é ir para sombra ou bater uma brisa que fica tudo certo. Sendo assim, com jornal e outras informações, buscamos uma sombra para almoçar, ler e tirar um cochilo de leve até o calor reduzir. Por volta das 15h decidimos ir até a Devil’s Golf Course, onde há formações de sal grosso, criadas pela ação do vento e chuva.

Para o pôr-do-sol, rumamos para a região mais baixa da América do Norte, situada a quase
-100m em relação ao nível do mar, um local conhecido como Bad Water. Uma grande planície de sal, carreado das rochas pela agua das (poucas) chuvas que ocorrem aqui. Após a evaporação da água, resta apenas uma camada de sal. A área é imensa e impressionante. As montanhas ao redor, em vários tons de marrom, completam a paisagem surreal. Fiquei descalço, pois queria sentir a energia desse lugar mágico e único, que passa por tantas transformações e se renova a cada grande chuva.

O sol se pôs e aos poucos vieram a escuridão e o frio. Mesmo assim não queríamos ir embora, tamanha atração pelo lugar. Nesse momento haviam poucas pessoas, talvez umas 7 ou 8. Sendo assim, pudemos nos despedir do sol e de Bad Water num silêncio total. No longo caminho de volta (83km) para o acampamento, vimos a lua nascer e iluminar o vale de sal.

     
Devils Golf Course. Entrada da Bad Water. Por do Sol na Bad Water.
 

O parque é imenso, as distâncias a serem percorridas são, em geral, grandes. Porém, nada que desanime, pois as estradas que cortam a paisagem também tem sua beleza, gerando curiosidade quando somem no horizonte.

Acordamos animados para o nosso primeiro acampamento em uma área designada como wildenerss, onde se pode acampar fora de áreas demarcadas. Nosso destino era um pequeno cânion, o Falls Canyon. Devido ao calor e ao tempo de viagem, antes de partir decidimos tomar um banho. Enchemos nosso chuveiro portátil com agua de poço, gelada e penduramos arás do banheiro, na beira da estrada. Nada mal. Renovados, partimos para a trilha de uns 4,8km. Devido à baixa humidade e calor, a recomendação é de beber, no mínimo, 4 litros de água por dia. Sendo assim, boa parte da carga era de água. O cânion é relativamente estreito e não muito alto. No final, há um paredão, indicio de uma cachoeira, mas que só recebe água durante as chuvas.

     
Estrada para o Fall Canyon. Estrada para o Wildrose. Estrada do Augerbbery Point.
 

Acampamos perto do paredão. Barraca sem a capa, pois a chance de chuva nessa época era muito baixa, e, além do mais, nossa preocupação em caso de chuva era com uma flash flood onde teríamos que correr para terra mais alta em caso de chuva. Com a noite escura e sem lua, que só nasceria mais tarde, pudemos ver as estrelas. Milhares delas. Um verdadeiro quadro emoldurado pelas paredes do cânion. Não havia mais ninguém e o silêncio era total. Jantamos sob as estrelas e dormimos extasiados pela força e magia do lugar.

Acordamos cedo e surpresos com canto de alguma ave. Após comer, decidimos seguir a dica do Richard e explorar o cânion na parte além da cachoeira. Não há uma forma óbvia de se chegar lá, mas achamos uma trilha já feita. Na parte superior o cânion se estreita e as paredes ficam mais lisas. Na verdade, muito lisas e sinuosas. Tudo talhado pela água com o passar dos milhares anos. Valeu conferir.

     
Na boca do Fall Canyon. Pedro Botafogo e Joana Allis acampando no Fall Canyon. Por do sol no Fall Canyon.
 

Voltamos para o estacionamento e antes de partir, demos uma olhada no Titus Canyon. Este é um dos mais famosos cânions do parque, pois pode ser percorrido de carro, em uma estrada de cascalho, estreita, cercada pelos paredões. Devido a uma flash flood, só era possível fazer a pé.

A olhada foi ligeira, pois já passava das 13h e hoje era um grande dia. Dia de banho de verdade, um bom almoço e piscina. Decidimos esbanjar. Em Stovepipe, por 4USD, é possível tomar banho (quantos você quiser entre 8:00 e 00:00) e usar a piscina. Logo ao lado há um restaurante, com preços justos. Banho. Almoço. Piscina. Banho. Berço. Esse foi o resumo do final do dia.

   
Explorando o Titus Canyon. Saída do Titus Canyon.
 

Marble Canyon, Salt Creek e Harmony Borax Work. Esses foram os destinos no dia seguinte. Só moleza, trilhas curtas, com destaque para Salt Creek, um pequeno rio, transparente, lindo e cercado de verde. À primeira vista, parece um oásis em meio a paisagem árida. Porém, a salinidade da água é maior do que a do mar e lar do Pupfish (Cyprinodon salinus salinus), uma espécie de peixe que tem um ciclo de vida curto e por isso vive na correria. Após almoço, partimos para o Zabrinskie Point, um mirante com acesso para algumas caminhadas, entre elas a que passa por montanhas de infinitos tons de marrom e termina em Bad Water. Para fugir da multidão, pegamos a trilha e rumamos para o topo de uma dessas montanhas. De lá vimos o sol pintar o céu de laranja e, ao poucos ceder seu lugar a lua. Na volta, aproveitamos a noite para caminhar nas dunas (Mesquite Flat Sand Dunes).

 

Panorâmica do Salt Creek, Zabrinskie Point.
 

Ao chegarmos no acampamento, havia um aviso na placa sinalização dizendo que o camping estava cheio. Porém o espaço para cada carro/barraca era grande. Sendo assim, decidimos oferecer o espaço que tínhamos sobrando na nossa vaga para quem entrava no camping a procura de um canto para dormir. E assim fizemos. Algumas pessoas acharam estranho, outras agradeceram mais precisavam de mais espaço. Porém, 3 figuras aceitaram felizes. Estavam viajando de carro, pelo que entendemos, apenas por viajar. Em 4 dias já tinha cruzado 4 estados e estavam voltando para casa. Agradeceram várias vezes e foram dormir, no chão, apenas com saco de dormir.

     
Trilha no Zabrinskie Point. Fotógrafo no por do sol. Caçadores de por do sol no Zabrinskie Point.
 

Começou ai nossa ideia de sempre compartilhar o espaço na nossa área de acampamento.

Saímos cedo, deixando nossos “convidados” ainda dormindo. A ideia era de voltar nas dunas para ver o sol nascer. Lindo ver o sol iluminando as dunas os poucos, dando um tom dourado a areia. O silencio era total, pois mesmo os que também estavam por lá decidiram prestar sua homenagem ao amanhecer de forma silenciosa. Parecia que todos compartilhavam dos mesmos sentimentos e de alguma forma, se encontrassem hipnotizados ou perdidos em pensamentos que só o nascer do sol pode trazer.

     
Amanhecer na Flat Dunes. Amanhecendo. Fotógrafo na Flat Dunes.
 

De lá abastecemos (há um posto de gasolina em Stovepipe, bem mais barato que o da entrada, em Panamint Springs) e partimos para a Wildrose Road, que dá acesso a montanha com mesmo nome. Nosso plano era acampar na trilha que leva ao cume. Antes da andança, montamos nossa cozinha no estacionamento da entrada da trilha e almoçamos sob uma árvore.

Já no começo da trilha, uma vista fantástica para um vale de tons desérticos e no fundo um pico nevado. Após umas 2 horas de caminhada, achamos, em meio a uma mata pouco densa, um bom lugar para acampar. Vista para o Wildrose Peak, Bad Water e outras montanhas. O único porém era que anda havia neve em alguns pontos e logo percebemos que a noite prometia ser fria. E não deu outra. O vento passava pela neve e entrava congelante na barraca. Joana se preparou melhor e dormiu de boa, mas eu passei um veneno e acabei dormindo mal.

     
Almoço no Wildrose trail. Camping no Wildrose trail. Vista do camping.
 

Mas, nada como o sol da manhã pra aquecer e trazer animo. Na descida da trilha sentimos até calor, mesmo ainda andando com neve ao redor. De volta ao carro, partimos para um mirante, o Augerbbery Point. A parte final da estrada é na beira de um penhasco, mas a vista de lá vale o risco. Do alto é possível ver boa parte do principal vale do Death Valley e se ter uma noção da vastidão e beleza do parque.

   
Acesso ao Augerbbery Point. Vista do Augerbbery Point.
 

Almoçamos e partimos rumo a Long Beach, onde ficaríamos na casa da Val, amiga da Joana. De lá iriamos para Los Angeles, visitar amigos e meu irmão. Na saída do parque, tivemos a última demonstração da força e beleza do deserto. De longe, vimos uma tempestade de areia que cruzava a pista. Após passar pela mesma, tentei fotografar, mas o vento com areia não ajudou muito. O vento forte ainda nos acompanhou um bom tempo, dando boas sacudidas no carro e jogando areia na estrada.

 

Estrada de saída.
 

O que para nós antes parecia apenas um lugar árido, bruto e inóspito havia se tornado algo belo e intrigante. O deserto, assim com outras coisas na vida, atrai e conquista os que se permitem viver o mesmo.

Texto e fotos: Pedro Botafogo e Joana Allis
Instragam: @pbotafogo e @gringa.paraguaia

 
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