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Sobre Amigos, Viagens e os Desafios do Monte Roraima!
 
texto e fotos: Quésia Cunha
26 de setembro de 2016 - 11:00
 

Quésia Cunha, Leonardo Bis e Marcio Senano início do trekking ao Monte Roraima.
 

Muito já se ouviu falar do Monte Roraima, especialmente depois de uma novela global que retratou com muita fantasia uma história com eventos vividos naquele ambiente.

Excluindo toda a alegoria, entre elas, a de que existem minas de diamantes, o Monte Roraima é espetacular!!! Trata-se de uma montanha localizada na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. Conhecida pelos nativos como um tepui, um tipo de monte em formato de mesa bastante característico do planalto das Guianas. É também, uma das mais antigas formações geológicas do planeta que surgiu a cerca de 2 bilhões de anos.

Mas, porque retratar mais uma história sobre essa mística montanha? Simples, cada história é única. Cada experiência traz suas nuances, características e aprendizados pessoais. Cada olhar é novo, ainda que o ambiente seja o mesmo, antigo, rebatido, repisado e recontado. Cada passo na caminhada é o registro pessoal que se soma às vivencias, crenças e subjetividades de cada um e assim se constrói uma nova história.

Viajar é viciante e nos põe em contato com o novo e nos faz melhores em todos os aspectos. Viajar entre amigos então, é revigorante! Vivenciar belezas e aprendizados proporcionados pela experiência de cada passo resignifica e aprofunda os laços de amizade. Diferentes crenças, motivações e idades que unidos em cumplicidade torna-se mais sólido e genuíno esse afeto!

Planejar a viagem entre amigos também é uma arte que requer amor, respeito, confiança e uma boa dose de bom humor para encarar as diferenças, surpresas, dificuldades de logística e os percalços que faz parte de todo trajeto rumo ao desconhecido.

Nosso planejamento para o Monte Roraima foi realizado à distancia e com ajuda da internet, uma vez que moramos em estados diferentes, São Paulo, Santa Catarina e Espirito Santo!

Assim que chegamos a Boa Vista - RR, deparamo-nos com uma capital relativamente planejada, mas, com jeito de cidade do interior. Contratamos um taxi e embarcamos para Santa Helena de Uairén -, cidade venezuelana fronteiriça com o Brasil. Sem muitas opções para alimentação, mas, com pousadas confortáveis, a despeito de simples, Santa Helena é uma mistura de brasileiros, venezuelanos e gente do mundo todo que passa pela cidade para conhecer a grande savana e o famoso e místico Monte Roraima.

Muito peso na mochila e muita empolgação para uma empreitada de oito dias e muitas intempéries. Nossa guia, uma francesa por nome Mirela, gentil, determinada e bem adaptada ao costume nativo nos guiou com serenidade e passo firme.

     
     

Por toda savana é uma amplidão de cores em tons de marrom queimado e alguns locais de verde intenso. O silencio e o sol morno foi o primeiro impacto e nos deu o compasso enquanto a grande montanha se escondia em densas nuvens.

Ao atravessarmos o rio Tek, com suas correntes de água a demonstrar força e constância, cruzamos a fronteira do risco de molhar os equipamentos e até mesmo de sermos levados pela força daquele corpo d’água. Os perigos da travessia foram suavizados enquanto conversámos animados e focados na diversidade do belo continente, chegamos ao primeiro acampamento. A chuva caiu levantando o cheiro de terra molhada que nos encheu da doce rudeza do ambiente e nos integrou à natureza de forma incontestável. Comemos com pingos de chuva caindo no prato!

Decidimos encontrar uma palavra para definir o local e a primeira que nos ocorreu foi a ausência de gestão. O potencial da região é subaproveitado. O lugar oferece oportunidades para geração de renda de forma sustentável, mas, não identificamos uma atividade econômica capaz de alavancar e contribuir para o desenvolvimento socioeconômico equilibrado e imprescindível para as condições territoriais e culturais do local. Além disso, talvez até pela imponência do Monte, as populações locais passam quase que desapercebidas, sendo identificados geralmente apenas como carregadores.

As atividades turísticas impactam positivamente a economia local uma vez que aumenta o consumo, proporciona diversidade de produção de bens, gera empregos e renda, mas, sobretudo só será sustentável se for organizada e fizer parte uma política pública, situação totalmente ausente na região. Nesse sentido, se faz necessário dar voz às populações do Parque nacional Cainama.

Com essa reflexão, seguimos nosso caminho, e fomos recepcionados com mais chuva e logo depois por um arco íris mágico pintado no céu que nos calou e nos motivou com sua beleza.

Segundo dia e nove quilômetros de subidas e sol escaldante para chegamos ao acampamento base e, a despeito, de toda exuberância do local, também impera uma desordem que evidencia a absoluta falta de gestão nesse importante parque nacional. Muitas sacolas de lixo penduradas, papel higiênico espalhado pelo incessante vento causa uma profunda tristeza para quem ama a natureza e sabe da importância em preservá-la.

Não se vê ações governamentais que sejam capazes de aproveitar o grande potencial turístico do local promovendo retorno aos moradores ou melhorias no ambiente. A impressão que ficamos é que o turismo de aventura cresce de forma espontânea e descontrolada. São graves os problemas ambientais e sociais que se avolumam em consequência da ausência de política pública e de gestão daquele local.

Nesse ambiente, cada guia monta uma barraca vertical para que os caminhantes façam suas necessidades dentro de uma sacola plástica, coloque cal e seja carregada posteriormente para longe da montanha. Mas, na prática não há fiscalização e nem todos, infelizmente, obedecem a essa regra.

     
     

O acampamento base fica aos pés do Monte Roraima e enquanto as pessoas vão montando barracas, descansando e virando-se como pode pela absoluta falta de estrutura local, a montanha seduz e ameaça com sua imponência.

O desafio de uma ascensão de mil metros rumo ao cume começa com uma escalaminhada, íngreme, perigosa e fria. A maior parte do trecho em pedras molhadas e os pés sempre na vertical exige esforço compensado pelo humor e boas risadas entre os amigos. Por conta do terreno acidentado e escarpas o desgaste físico é extenuante e a baixa oxigenação faz o paredão um desafio inimaginável! Olhar para o alto nos faz duvidar da possibilidade de alcança-lo. O corpo exige hidratação constante e somos seduzidos pelos riachos de águas transparentes. Infelizmente a maioria esconde a contaminação antrópica, e somos alertados, geralmente, a não beber o líquido cristalino que cai da montanha. Apenas alguns corpos d’água são potáveis ao longo da subida.

Frio, ventos e umidade castigam quem sobe e quem desce. Alguns caminhantes frustrados por não ter podido ficar no topo em função do mau tempo e do mau planejamento vão passando por nós e nos desanimando com suas experiências. Os porteadores informam que a montanha está brava e nossa guia reflete que a ira da montanha é em função da poluição e barulho causada pelos montanhistas que não a respeitam.

O cansaço e a expressão desolada dos montanhistas que desciam da montanha nos impactou profundamente. Começamos a duvidar se conseguiríamos ficar no topo. Será que o tempo se aplacaria? Iríamos insistir mesmo com os péssimos prognósticos? Esse é um diferencial em estar entre amigos. Quando um desanima ou duvida da capacidade, o outro prontamente transforma-se em um Coach lembrando da força, persistência e otimismo como característica a ser perseguida na caminhada.

O segundo trecho do percurso fez tudo valer a pena. Cachoeiras generosas escorriam pelo paredão formando uma cortina de água diáfana que descia do róseo paredão e espalhava-se pelo ar feito gotas de diamante brilhando e sumindo no infinito. As capas de chuva protegeram parcialmente, mas, contemplar a grandeza do vale fez-nos esquecer do corpo encharcado e ficamos com a sensação de estarmos voando na imensidão da savana. Subir por blocos de pedras enquanto por todo lado espalhava-se gotículas de diamantes encheu-nos de ânimo e emoção na beleza úmida.

Usando mãos e impulsionando o corpo por subidas escorregadias, chegamos ao topo da montanha tremendo de frio e cansaço. Retirar as roupas molhadas sendo castigados pela chuva, fortes ventos e densa neblina foi uma experiência traumática. Pudemos entender a desistência de vários montanhistas. O local que ficamos é chamado de hotel, nada além de uma caverna aberta que protege um pouco das intempéries do tempo. Longe dessa proteção é quase impossível enfrentar a força dos ventos e das chuvas.

A umidade do lugar nos impressionou, tudo parecia molhado o tempo todo. Mesmo quando não estava chovendo. Com o tempo ruim às 14 horas tínhamos impressão de ser noite e foi impossível ficar fora das barracas por muito tempo, porquanto ventos impetuosos faziam tremer os duzentos e seis ossos.

Pedimos perdão à montanha por todo mal causado pelos montanhistas na esperança que ela se acalmasse.

Todos os dias enfrentamos tempo chuvoso mas, com alguma trégua foi possível explorar o topo da montanha. Cada lugar um cenário permeado de elementos de beleza surreal e enigmática. Rochas em diversas formas despertava nossa imaginação. Muitas espécies de plantas dava-nos a impressão de estarmos percorrendo realmente um mundo perdido, como relatado pelo criador de Sherlock Homes, Sir Arthur Conan Doyle. Rochas de arenito lapidadas por ventos e chuvas compõem um espetáculo que nos conectou a um mundo realmente belo, encantado e idílico.

Longas cachoeiras derramam-se em águas cristalinas e caminhos cobertos de cristais de diversas formas e tamanhos nos impressionou e emocionou o tempo todo.

Conquistamos o Maverick com seus 2.800 metros, o maior pico da savana. Seu formato lembra o antigo carro de mesmo nome. Do seu topo é possível avistar paredes rosáceas e uma planície de infinitos tons de verde. Ela é considerada a segunda maior montanha da Venezuela e nos possibilitou apreciar um ocaso de cor e luz que será inesquecível a todos nós.

Depois de muita caminhada ficamos impressionados com uma caverna com o teto que parecia um céu piscando estrelas. Apenas, um de nós três conseguiu arriscar um banho na cachoeira gelada e não fui eu.

Durante o tempo que permanecemos no topo foi possível visitar a tríplice fronteira, o impressionante canyon que abriga pássaros com cantos ruidosos, fosso que parece uma pintura e com areias que lembra uma praia deserta e preservada. De forma impressionante, quando a maior parte dos montanhistas havia descido, as nuvens deixaram o astro rei se exibir. De algum modo, pudemos testemunhar o saber tradicional em sua faceta mais bela: nos haviam alertado que a montanha não gostava do barulho provocado pelos montanhistas desrespeitosos. Para nosso deleite, em nosso último dia no topo da montanha, praticamente não havia mais visitantes além de nós e o Sol prevaleceu frente às nuvens.

 

Tríplice Fronteira
 

Aproveitamos e nos banhamos na jacuzzi, piscina natural de águas límpidas e cheia de cristais e o mais lindo foi ver o céu refletindo em suas águas. No topo tem ainda, jardins endêmicos, abismos impressionantes e convidativos, micro sapos negros, as mais diferentes formas de rochas que mexe com a imaginação e mais uma infinidade de ambientes totalmente inóspitos. Curiosamente esse mesmo ambiente é dotado de fragilidade e beleza inconfundível e nos sentimos privilegiados por termos vivido essa experiência.

Monte Roraima é um santuário que deve ser preservado e eternizado para que muitos amigos, como nós, tenham o privilegio e o deleite de conhecê-lo. Ficamos com a sensação de dívida, de que recebemos muito e não temos nada a retribuir. Esperamos que nosso coração cheio de gratidão e respeito alcance o espirito da grande montanha.

 

Quésia Cunha,
Contribuições: Leonardo Bis e Marcio Sena

 
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