Muito já se ouviu falar do Monte Roraima, especialmente depois de uma novela global que retratou com muita fantasia uma história com eventos vividos naquele ambiente.
Excluindo toda a alegoria, entre elas, a de que existem minas de diamantes, o Monte Roraima é espetacular!!! Trata-se de uma montanha localizada na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. Conhecida pelos nativos como um tepui, um tipo de monte em formato de mesa bastante característico do planalto das Guianas. É também, uma das mais antigas formações geológicas do planeta que surgiu a cerca de 2 bilhões de anos.
Mas, porque retratar mais uma história sobre essa mística montanha? Simples, cada história é única. Cada experiência traz suas nuances, características e aprendizados pessoais. Cada olhar é novo, ainda que o ambiente seja o mesmo, antigo, rebatido, repisado e recontado. Cada passo na caminhada é o registro pessoal que se soma às vivencias, crenças e subjetividades de cada um e assim se constrói uma nova história.
Viajar é viciante e nos põe em contato com o novo e nos faz melhores em todos os aspectos. Viajar entre amigos então, é revigorante! Vivenciar belezas e aprendizados proporcionados pela experiência de cada passo resignifica e aprofunda os laços de amizade. Diferentes crenças, motivações e idades que unidos em cumplicidade torna-se mais sólido e genuíno esse afeto!
Planejar a viagem entre amigos também é uma arte que requer amor, respeito, confiança e uma boa dose de bom humor para encarar as diferenças, surpresas, dificuldades de logística e os percalços que faz parte de todo trajeto rumo ao desconhecido.
Nosso planejamento para o Monte Roraima foi realizado à distancia e com ajuda da internet, uma vez que moramos em estados diferentes, São Paulo, Santa Catarina e Espirito Santo!
Assim que chegamos a Boa Vista - RR, deparamo-nos com uma capital relativamente planejada, mas, com jeito de cidade do interior. Contratamos um taxi e embarcamos para Santa Helena de Uairén -, cidade venezuelana fronteiriça com o Brasil. Sem muitas opções para alimentação, mas, com pousadas confortáveis, a despeito de simples, Santa Helena é uma mistura de brasileiros, venezuelanos e gente do mundo todo que passa pela cidade para conhecer a grande savana e o famoso e místico Monte Roraima.
Muito peso na mochila e muita empolgação para uma empreitada de oito dias e muitas intempéries. Nossa guia, uma francesa por nome Mirela, gentil, determinada e bem adaptada ao costume nativo nos guiou com serenidade e passo firme.
Por toda savana é uma amplidão de cores em tons de marrom queimado e alguns locais de verde intenso. O silencio e o sol morno foi o primeiro impacto e nos deu o compasso enquanto a grande montanha se escondia em densas nuvens.
Ao atravessarmos o rio Tek, com suas correntes de água a demonstrar força e constância, cruzamos a fronteira do risco de molhar os equipamentos e até mesmo de sermos levados pela força daquele corpo d’água. Os perigos da travessia foram suavizados enquanto conversámos animados e focados na diversidade do belo continente, chegamos ao primeiro acampamento. A chuva caiu levantando o cheiro de terra molhada que nos encheu da doce rudeza do ambiente e nos integrou à natureza de forma incontestável. Comemos com pingos de chuva caindo no prato!
Decidimos encontrar uma palavra para definir o local e a primeira que nos ocorreu foi a ausência de gestão. O potencial da região é subaproveitado. O lugar oferece oportunidades para geração de renda de forma sustentável, mas, não identificamos uma atividade econômica capaz de alavancar e contribuir para o desenvolvimento socioeconômico equilibrado e imprescindível para as condições territoriais e culturais do local. Além disso, talvez até pela imponência do Monte, as populações locais passam quase que desapercebidas, sendo identificados geralmente apenas como carregadores.
As atividades turísticas impactam positivamente a economia local uma vez que aumenta o consumo, proporciona diversidade de produção de bens, gera empregos e renda, mas, sobretudo só será sustentável se for organizada e fizer parte uma política pública, situação totalmente ausente na região. Nesse sentido, se faz necessário dar voz às populações do Parque nacional Cainama.
Com essa reflexão, seguimos nosso caminho, e fomos recepcionados com mais chuva e logo depois por um arco íris mágico pintado no céu que nos calou e nos motivou com sua beleza.
Segundo dia e nove quilômetros de subidas e sol escaldante para chegamos ao acampamento base e, a despeito, de toda exuberância do local, também impera uma desordem que evidencia a absoluta falta de gestão nesse importante parque nacional. Muitas sacolas de lixo penduradas, papel higiênico espalhado pelo incessante vento causa uma profunda tristeza para quem ama a natureza e sabe da importância em preservá-la.
Não se vê ações governamentais que sejam capazes de aproveitar o grande potencial turístico do local promovendo retorno aos moradores ou melhorias no ambiente. A impressão que ficamos é que o turismo de aventura cresce de forma espontânea e descontrolada. São graves os problemas ambientais e sociais que se avolumam em consequência da ausência de política pública e de gestão daquele local.
Nesse ambiente, cada guia monta uma barraca vertical para que os caminhantes façam suas necessidades dentro de uma sacola plástica, coloque cal e seja carregada posteriormente para longe da montanha. Mas, na prática não há fiscalização e nem todos, infelizmente, obedecem a essa regra.
O acampamento base fica aos pés do Monte Roraima e enquanto as pessoas vão montando barracas, descansando e virando-se como pode pela absoluta falta de estrutura local, a montanha seduz e ameaça com sua imponência.
O desafio de uma ascensão de mil metros rumo ao cume começa com uma escalaminhada, íngreme, perigosa e fria. A maior parte do trecho em pedras molhadas e os pés sempre na vertical exige esforço compensado pelo humor e boas risadas entre os amigos. Por conta do terreno acidentado e escarpas o desgaste físico é extenuante e a baixa oxigenação faz o paredão um desafio inimaginável! Olhar para o alto nos faz duvidar da possibilidade de alcança-lo. O corpo exige hidratação constante e somos seduzidos pelos riachos de águas transparentes. Infelizmente a maioria esconde a contaminação antrópica, e somos alertados, geralmente, a não beber o líquido cristalino que cai da montanha. Apenas alguns corpos d’água são potáveis ao longo da subida.
Frio, ventos e umidade castigam quem sobe e quem desce. Alguns caminhantes frustrados por não ter podido ficar no topo em função do mau tempo e do mau planejamento vão passando por nós e nos desanimando com suas experiências. Os porteadores informam que a montanha está brava e nossa guia reflete que a ira da montanha é em função da poluição e barulho causada pelos montanhistas que não a respeitam.
O cansaço e a expressão desolada dos montanhistas que desciam da montanha nos impactou profundamente. Começamos a duvidar se conseguiríamos ficar no topo. Será que o tempo se aplacaria? Iríamos insistir mesmo com os péssimos prognósticos? Esse é um diferencial em estar entre amigos. Quando um desanima ou duvida da capacidade, o outro prontamente transforma-se em um Coach lembrando da força, persistência e otimismo como característica a ser perseguida na caminhada.
O segundo trecho do percurso fez tudo valer a pena. Cachoeiras generosas escorriam pelo paredão formando uma cortina de água diáfana que descia do róseo paredão e espalhava-se pelo ar feito gotas de diamante brilhando e sumindo no infinito. As capas de chuva protegeram parcialmente, mas, contemplar a grandeza do vale fez-nos esquecer do corpo encharcado e ficamos com a sensação de estarmos voando na imensidão da savana. Subir por blocos de pedras enquanto por todo lado espalhava-se gotículas de diamantes encheu-nos de ânimo e emoção na beleza úmida.
Usando mãos e impulsionando o corpo por subidas escorregadias, chegamos ao topo da montanha tremendo de frio e cansaço. Retirar as roupas molhadas sendo castigados pela chuva, fortes ventos e densa neblina foi uma experiência traumática. Pudemos entender a desistência de vários montanhistas. O local que ficamos é chamado de hotel, nada além de uma caverna aberta que protege um pouco das intempéries do tempo. Longe dessa proteção é quase impossível enfrentar a força dos ventos e das chuvas.
A umidade do lugar nos impressionou, tudo parecia molhado o tempo todo. Mesmo quando não estava chovendo. Com o tempo ruim às 14 horas tínhamos impressão de ser noite e foi impossível ficar fora das barracas por muito tempo, porquanto ventos impetuosos faziam tremer os duzentos e seis ossos.
Pedimos perdão à montanha por todo mal causado pelos montanhistas na esperança que ela se acalmasse.
Todos os dias enfrentamos tempo chuvoso mas, com alguma trégua foi possível explorar o topo da montanha. Cada lugar um cenário permeado de elementos de beleza surreal e enigmática. Rochas em diversas formas despertava nossa imaginação. Muitas espécies de plantas dava-nos a impressão de estarmos percorrendo realmente um mundo perdido, como relatado pelo criador de Sherlock Homes, Sir Arthur Conan Doyle. Rochas de arenito lapidadas por ventos e chuvas compõem um espetáculo que nos conectou a um mundo realmente belo, encantado e idílico.
Longas cachoeiras derramam-se em águas cristalinas e caminhos cobertos de cristais de diversas formas e tamanhos nos impressionou e emocionou o tempo todo.
Conquistamos o Maverick com seus 2.800 metros, o maior pico da savana. Seu formato lembra o antigo carro de mesmo nome. Do seu topo é possível avistar paredes rosáceas e uma planície de infinitos tons de verde. Ela é considerada a segunda maior montanha da Venezuela e nos possibilitou apreciar um ocaso de cor e luz que será inesquecível a todos nós.
Depois de muita caminhada ficamos impressionados com uma caverna com o teto que parecia um céu piscando estrelas. Apenas, um de nós três conseguiu arriscar um banho na cachoeira gelada e não fui eu.
Durante o tempo que permanecemos no topo foi possível visitar a tríplice fronteira, o impressionante canyon que abriga pássaros com cantos ruidosos, fosso que parece uma pintura e com areias que lembra uma praia deserta e preservada. De forma impressionante, quando a maior parte dos montanhistas havia descido, as nuvens deixaram o astro rei se exibir. De algum modo, pudemos testemunhar o saber tradicional em sua faceta mais bela: nos haviam alertado que a montanha não gostava do barulho provocado pelos montanhistas desrespeitosos. Para nosso deleite, em nosso último dia no topo da montanha, praticamente não havia mais visitantes além de nós e o Sol prevaleceu frente às nuvens.
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Tríplice Fronteira |
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Aproveitamos e nos banhamos na jacuzzi, piscina natural de águas límpidas e cheia de cristais e o mais lindo foi ver o céu refletindo em suas águas. No topo tem ainda, jardins endêmicos, abismos impressionantes e convidativos, micro sapos negros, as mais diferentes formas de rochas que mexe com a imaginação e mais uma infinidade de ambientes totalmente inóspitos. Curiosamente esse mesmo ambiente é dotado de fragilidade e beleza inconfundível e nos sentimos privilegiados por termos vivido essa experiência.
Monte Roraima é um santuário que deve ser preservado e eternizado para que muitos amigos, como nós, tenham o privilegio e o deleite de conhecê-lo. Ficamos com a sensação de dívida, de que recebemos muito e não temos nada a retribuir. Esperamos que nosso coração cheio de gratidão e respeito alcance o espirito da grande montanha.
Quésia Cunha,
Contribuições: Leonardo Bis e Marcio Sena
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