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45 dias a bordo de um veleiro
 
texto: Sofia Willert
11 de agosto de 2015 - 14:00
 

Em Sagres, durante a minha experiência de 45 dias em um veleiro.
 

Em maio de 2013, após dar início a uma nova fase da vida, decidi fazer algumas coisas novas, entre elas, tirar a habilitação de arrais amador. Meu pouco contato com o mundo náutico vinha da infância, quando saíamos eu e minha amiga Maitê, então com 11 ou 12 anos de idade, para pescar com o pai dela em Canto Grande/SC.

No fim de 2013, acabei conhecendo através de amigas em comum a Lorena Kreuger, diretora do Estaleiro Kalmar, e que, diferentemente de mim, vinha de uma família em que a “água salgada corre nas veias”, como ela gosta de dizer, sendo neta do comandante de navios mercantes Erik Kreuger e filha de Lars Kreuger, que juntos fundaram e deram início ao Estaleiro Kalmar, hoje referência em marcenaria naval.

Nossa sintonia nos tornou amigas próximas e, claro, parceiras de skate, trilhas, surf (eu aprendendo), aventuras e velejadas no Ventura, um Kalmar 38 pés, juntamente com o seu marido Zac, que trabalhava a bordo de um veleiro particular que dá a volta ao mundo, no qual, aliás, a história de amor dos dois começou.

Em setembro de 2014, contudo, quando sentia que estava vivendo a melhor fase da minha vida, morando sozinha, com uma viagem marcada para fazer um mochilão pelo Deserto do Atacama no mês de dezembro, sofri uma torção de tornozelo treinando, e quebrei a tíbia e a fíbula da perna esquerda. O médico informou que minha fratura fora “espiralada”, por ter acontecido em um movimento de torção e consequente rotação da perna, e que esse tipo de fratura muito dificilmente consolida sem deixar graves sequelas apenas imobilizando a perna, sugerindo a cirurgia e a colocação de uma haste intramedular tibial, uma placa e alguns tantos parafusos.

Em 13 dias, realizei a cirurgia e tive o pior pós-operatório que poderia imaginar: por conta de uma reação alérgica à morfina - que me causou uma coceira que dava a sensação de estar sendo comida viva por formigas -, senti muita dor durante mais de 24 horas por não poder fazer uso dela.

     
     

Passei dois meses e meio aos cuidados dos meus avós, por não poder dirigir e mal conseguir caminhar de muletas, e fiquei 7 meses em licença para tratamento de saúde, no total, o tempo que levou para consolidar a fratura. Fiz 130 sessões de fisioterapia - quase diariamente -, e, quando pude voltar a me exercitar, contratei um personal trainer para continuar o trabalho de recuperação. Ainda hoje, quase onze meses depois, não recuperei totalmente a massa muscular perdida, nem a amplitude dos movimentos do tornozelo ou a sensibilidade da região, e ainda sinto dores quase diariamente, e eventualmente manco ao caminhar, não conseguindo correr.

O longo repouso e o isolamento decorrente dele – enquanto todos estavam vivendo as suas vidas normalmente, eu estava indo da cama pro sofá, e pra fisioterapia e as curtas (e lentas) caminhadas que o médico recomendou que fizesse – levaram a reflexões profundas sobre a vida. Bateu aquela vontade de “viver tudo que há pra viver”, de experimentar coisas novas e de me arriscar mais – pois se mesmo na nossa zona de conforto podemos sofrer acidentes, então melhor que seja fazendo alguma coisa que renda uma boa história pra contar!

Assim, após algumas velejadas de fim de semana e muitas conversas animadas com o Zac e a Lorena – a paixão com que os dois falam do mar contagia qualquer um ao seu redor! – foi surgindo essa vontade de experimentar um pouco mais que os "day sails" que fizemos, de passar um tempo a bordo e vivenciar a realidade dos marinheiros de verdade.

O plano inicial era passar entre 15 e 20 dias a bordo de algum veleiro no Caribe ou América do Sul, no mês de setembro deste ano, quando estavam marcadas minhas férias. Por sugestão do Zac, fiz um perfil no site findacrew.net, uma rede social que conecta barcos e tripulantes, a lazer ou a trabalho, e mostra as compatibilidades dos perfis.

Passei um mês olhando perfis de barcos à vela, e não achava nenhum que houvesse compatibilidade para a data ou os lugares que eu queria, ainda mais por ser inexperiente, e também por haver uma oferta muito maior para barcos a motor e pouca para veleiros. Então, passei também a olhar perfis de barcos na Europa e Mediterrâneo.

Encontrei um veleiro de 41 pés com boas recomendações e que aceitava pessoas sem experiência, e resolvi entrar em contato. O proprietário do barco, que era também o comandante, Johan, foi muito solícito nos e-mails que trocamos e se mostrou uma pessoa experiente e apaixonada pela vida no mar. Porém, a viagem que ele planejava teria 45 dias de duração, e velejaria de Ramsgate (Reino Unido) a Portugal, parando em várias cidades ao longo da costa norte da França e Espanha, regressando a Ramsgate.

Mandei alguns perfis para o Zac dar uma olhada, e ele me disse “se eu fosse você, faria um esforço para embarcar neste”.

Não estava planejando ir para a Europa em um ano de crise econômica e comecei a fazer contas e mais contas pra ver se seria possível viajar e ficar tanto tempo fora. O custo da estadia no barco seria de dez libras por dia, incluindo a alimentação, o que é muito menos que eu gastaria em terra, então seria possível pagar.

Mas, além disso, ainda teria que ver com a minha chefe se seria possível antecipar minhas férias de 2015 e emendá-las com as férias do ano anterior, que não usufruí. Recebi carta branca e, pelas contas, eu ia passar um pouco de aperto, mas ia ser possível, então resolvi arriscar.

Meu nível de comunicação em inglês é bom, e como eu já vinha aprendendo a navegar e velejar com a Lorena e o Zac, que é americano, já sabia os nomes das coisas mais importantes do barco em português e em inglês. Acabei prestando também, pouco antes de partir, a prova de mestre amador - fui aprovada -, e já vinha estudando como fazer a navegação com o uso de cartas náuticas, utilizar as marcações e etc, então não iria embarcar com conhecimento zero e ficar completamente perdida.

Compradas as passagens para Londres, que tive a sorte de achar por um bom preço promocional mesmo faltando pouco mais de um mês pra data da partida, bateu um sentimento de desespero. O que foi que eu fiz? Como que eu vou aguentar passar 45 dias em um barco? Convivendo com um monte de estranhos? Será que é seguro? Essas e mil outras dúvidas pipocaram na minha cabeça e tiraram meu sono por alguns dias. Seria minha primeira viagem completamente sozinha ao exterior. Havia viajado para a Holanda em 2013, mas fiquei na casa de amigos que me pegaram no aeroporto e me levaram para fazer vários passeios. Dessa vez, eu teria que me virar pegando metrô e trem até chegar à casa do comandante em Essex.

     
     

Segurei a notícia o máximo que pude e informei a minha mãe umas três semanas antes de partir. Ela achou que eu estava "louca" e que ia me meter em roubada, assim como meus avós, e tentaram me demover da ideia, especialmente por conta da minha perna.

Então, o comandante me contatou e informou que “houve uma mudança de planos”. Esperei o pior, mas ele informou que estava negociando a compra de um barco maior, um veleiro de 53 pés que estava no sul da França, e que se conseguisse vender o dele e fechar o negócio, nosso itinerário seria levar o barco de lá até a Inglaterra, velejando pelo Mar Mediterrâneo e passando por Barcelona, Ibiza, e até pelo norte da África. Informou que a viagem continuaria tendo a mesma duração e mesmas datas de partida e chegada, e perguntou se havia algum problema pra mim.

Terminei de ler o e-mail com um sorriso enorme no rosto!. Eu poderia não só ver de perto, mas também navegar pelo Mar Mediterrâneo! Fiquei dias na expectativa e logo fui informada que a negociação tinha transcorrido bem e que ele estava comprando o novo barco. Solicitou que eu comprasse uma passagem aérea de Londres/Stansted a Marselha por uma companhia aérea “low cost” e indicou o voo que ele iria pegar, sugerindo que eu escolhesse o mesmo.

Nesse meio tempo, ele colocou os demais tripulantes em contato uns com os outros através de e-mail e tive a grata surpresa de que haveria mais três mulheres a bordo. Passou todas as informações a respeito do barco, os números de registro, os telefones de contato – inclusive telefones por satélite que haviam sido instalados no veleiro. Com todas essas informações, minha família ficou mais tranquila.

A nossa rotina seria de dois turnos de vigília de seis horas por dia, sendo que as escalas seriam alteradas ao longo do percurso, podendo-se fazer o que quisesse nas outras doze horas livres. Todos se revezariam nas demais tarefas do barco - lavar a louça, cozinhar, limpar o interior e o exterior e etc. Não era permitido consumir bebidas alcoólicas enquanto estivéssemos navegando, somente quando ancorados e, logicamente, nunca antes de partir.

Levei do Brasil apenas uma mochila de 30 litros nas costas. Queria aproveitar e praticar o desapego, afinal não se precisa muito em um barco – e nem se tem espaço pra armazenar muita tralha. Além disso, o voo pela companhia “low cost” custava mais barato que despachar uma bagagem extra e eu queria economizar tantas libras quanto pudesse, já que a cotação estava a R$ 5,25. O comandante informou as coisas que eu deveria levar – uma blusa de “fleece”, touca, jaqueta e calças térmicas - pois mesmo no verão pode ficar muito frio no barco quando em alto mar -, além de "deckshoes" e botas antiderrapantes, com solado que não deixe marcas. A roupa à prova d'água, toalha, lençol e saco de dormir ele teria para me emprestar. Acabei deixando para comprar os calçados por lá, pois aqui são difíceis de encontrar, e mais caros.

No dia 3 de junho, embarquei em Florianópolis para Londres, fazendo uma escala em Guarulhos e outra em Roma. Consegui um assento na saída de emergência para poder esticar minha perna – como a circulação ainda está comprometida, não consigo mantê-la flexionada muito tempo, muito menos um voo de 12 horas na classe econômica.

Sentada no assento ao lado da janela, assisti a um magnífico pôr do sol próximo à costa da África. Sobrevoamos o Saara à noite e foi possível ver vários amontoados de luzinhas em meio às areias do deserto. A viagem ao menos tinha começado bem!

Cheguei a Londres pelo City Airport, que fica bem no centro e permite uma vista aérea incrível da cidade e de alguns de seus pontos turísticos, sendo possível avistar do alto a ponte, a London Eye e as curvas do Tâmisa.

Tinha o dia livre para passear pela cidade e tive a sorte de chegar em um dia ensolarado e quente, o que é um privilégio. Peguei um metrô de superfície e fui até a estação Covent Garden, onde aprendi – do jeito difícil, claro – a respeitar o aviso de “Essa escada tem 193 degraus. Só use em caso de emergência. Aguarde o elevador”.

Pouco depois de sobreviver às escadas, encontrei a Stanford's, a “maior loja de mapas e livros de viagens do mundo”, e gastei uns bons minutos ali, olhando a infinidade do acervo deles. Passeei pela região da Leicester Square, tomei café na Café in the Crypt - que realmente é um café na cripta da igreja St. Martin-in-the-fields, na Trafalgar Square -, passei em frente à Scotland Yard, Westminster Abbey e Big Ben, além de outros pontos turísticos da região. Tudo meio sem querer, porque eu, sinceramente, como teria poucas horas em Londres, não tinha outros planos além do café, nem tinha olhado no mapa onde ficavam os principais pontos da cidade.

Peguei o metrô até a estação Fenchurch Street, de lá um trem até Essex, e um táxi até a casa do comandante, onde fui recebida pela sua esposa e pude tirar um cochilo antes que ele voltasse do trabalho, às 19 horas. Uma das outras tripulantes, a Sarah, que mora em Manchester, chegou pouco depois dele e jantamos todos juntos com mais um amigo do casal. Passamos a noite na casa e, no dia seguinte, um táxi nos levou até o aeroporto de Stansted.

Lá que aconteceu o primeiro contratempo da viagem. Enquanto o comandante e a outra tripulante fumavam um cigarro, eu saí para ir ao banheiro e disse que retornaria ao local. Quando voltei, cadê? Imaginei que tinham ido despachar as malas, mas rodei o aeroporto e nada de encontrá-los. Confesso que fiquei um pouco desesperada – não tinha como telefonar pra ninguém do meu celular, consegui um emprestado e ninguém atendeu – mas resolvi que a decisão mais inteligente seria passar pela segurança e encontrá-los antes dos portões de embarque, afinal, se eles não tinham esperado por mim seria o lugar mais lógico pra me encontrar, já que estava quase na hora do voo. Esperei uma longa meia hora, e então apareceram, pra meu alívio.

Os portões de embarque do aeroporto de Stansted são um tanto caóticos; além de se ter que andar muito até chegar a eles (parece que por ironia, sempre embarco nos portões mais distantes), as filas se misturavam umas às outras e o local estava lotado.

Voamos para Marselha, e chegando lá a temperatura estava em torno de 37 graus – quente, muito quente! Aguardamos no aeroporto a chegada de outro dos tripulantes, Davide, um italiano - ops, sardiniano! - que residia na Escócia e, por ter experiência, revezaria turnos com o comandante, e então alugamos um carro já reservado por ele.

Até então, eu nem sabia o nome da cidade onde o barco estava ancorado. Dirigimos algumas horas pela região da Provence, por uma estrada que oferecia belas vistas para o mar e para as vinícolas, e chegamos a Bormes les Mimosas, um pequeno e charmoso balneário em cujo iate clube o veleiro estava atracado.

Logo em seguida, mais uma das mulheres que fariam parte da tripulação chegou ao local, a Nolleig, vinda da Irlanda, e então fizemos compras no supermercado e o comandante cozinhou o jantar e abriu algumas garrafas de vinho e champanhe para comemorarmos o início da viagem.

No dia seguinte, tivemos uma instrução sobre os equipamentos do barco com o comandante e o corretor que efetuou a venda, que também ensinou como içar a vela "ballooner", uma vela que é específica para este modelo de veleiro, um Amel modelo Super Maramu, fabricado no ano 2000.

Partimos a motor, pois não tinha vento, logo depois de fazer mais compras no mercado e de limpar e organizar nossas coisas dentro dos armários, ancorando na Île des Porquerolles, que ficava próxima. Tomamos banho de mar ao pôr do sol nas geladas águas da Côte-d'Azur, jantamos e dormimos, pois na manhã seguinte seguiríamos para Barcelona.

Tivemos o azar de, novamente, não haver vento o suficiente, e a viagem foi praticamente inteira a motor, com uma tentativa de velejo que não durou muito, por conta do vento fraco. Ainda não tínhamos escalas e eu acabei me voluntariando para o turno noturno com o comandante, que iniciou às 23 horas e acabou às seis da manhã.

Ele me ensinou a usar o radar e o GPS, bem como a usar uma "bearing compass". Não encontrei a tradução para este instrumento nos meus livros, mas é uma alidade manual (uma bússola, que no barco chamamos de "agulha") que funciona como um taxímetro, instrumento que serve para determinar se uma embarcação está em rota de colisão ou não, pelo enfiamento (alinhamento) do olho com o centro do instrumento e o objeto que se está observando.

Também marquei alguns pontos na carta náutica e preenchi o "logbook", nosso livro de bordo, nos quais devíamos constar, a cada duas horas no máximo, a hora, o ponto (pelas coordenadas geográficas), o rumo, a distância, a pressão atmosférica, a distância percorrida, as horas de motor, os níveis de água potável e energia, a velocidade do vento, da embarcação e do GPS, e também a visibilidade e o estado do mar.

     
     

A noite estava calma e foi possível ver plânctons luminosos e azulados ao redor do barco, mais alguns solitários peixes nadando ao nosso redor. Também parece haver muito mais estrelas no céu quando estamos no mar, afastados das luzes das cidades. Senti a importância das roupas térmicas, pois realmente fica muito frio no cockpit durante a noite quando em alto mar.

Chegamos ao final da manhã a Barcelona, e ficamos em uma marina que, apesar de ser a mais barata que contatamos via rádio, possui instalações "cinco estrelas" e abriga alguns pretensiosos superiates, além de possuir uma localização privilegiada, ao lado do bairro La Barceloneta, quase em frente à estátua de Colombo, e pertinho da La Rambla.

Então, a última mulher tripulante, Ivana, se juntou a nós, uma sérvia que trabalha como chef de cozinha - nada mal!

Decidimos passear por La Barceloneta e procurar um lugar para jantar. O charmoso bairro de ruas estreitas fica na Ciutat Vella de Barcelona e foi construído no século XVIII. O que mais me chamou a atenção foi a bandeira da "Catalunya" pendurada em quase todas as sacadas dos apartamentos. Acabamos comendo uns petiscos em um restaurante meio escondido, que achamos pelo cheiro mesmo (e infelizmente não recordo o nome). As mesas ficavam ao fundo e o lugar estava lotado, as mesas eram apertadas e fazia o maior calor, e não foi difícil descobrir o motivo depois que chegou a comida - deliciosa! Paramos depois no Ké? Bar para uns drinks e jantamos mais tarde em outro restaurante chamado L'Óstia, que possuía uma grande variedade de tapas.

Logo nesta primeira noite, percebi que seria um pouco difícil acompanhar o pique, o apetite e o gosto por vinhos do restante da tripulação. No meu cotidiano, costumo dormir e acordar cedo, atualmente bebo pouco e apenas ocasionalmente, bem como procuro ter uma alimentação leve e saudável e uma rotina de exercícios, o que foi impossível manter nos 45 dias de viagem.

Na manhã seguinte, eu, Ivana e Nollaig, saímos para conhecer um pouco a cidade e passear pela La Rambla, e também precisávamos comprar os calçados próprios para usar no barco em uma loja de artigos esportivos que ficava nas proximidades. Visitamos a La Boquería, um mercado público com uma imensa variedade de frutos do mar, petiscos, presuntos e sucos.

Voltamos para o barco após algumas horas e decidi sair para conhecer as praias da região, desta vez sozinha, pois sempre gosto e faço questão de ter um tempo só pra mim, ainda mais que conviveria com muitas pessoas em um espaço de vinte metros de comprimento por quatro e meio na maior largura, que era o tamanho do nosso barco.

Possuo um primo de segundo grau, o Narlon, que reside em Barcelona há mais de vinte anos e (re)conheci pessoalmente na celebração das bodas de ouro dos meus avós em janeiro de 2014. Já havíamos combinado de tentar nos encontrar em Barcelona durante minha curta estadia de dois dias, e na segunda noite ele me buscou na marina, e fizemos um "tour" noturno de motocicleta, no qual ele me levou para jantar comida grega, bater um papo animado e ver diversos pontos turísticos que eu não tinha conseguido ver a pé, como a casa Batlló, de Gaudí, o Museu Nacional de Arte da Catalunha e o templo da Sagrada Família.

Partimos no dia seguinte ao meio dia, rumo a Ibiza, mais uma vez sem vento. Durante o dia, fomos acompanhados por um bando de golfinhos se exibindo para nós, que nos dirigimos todos para a proa, para contemplar o espetáculo. E parece que eles gostam de plateia: ficaram uns bons vinte minutos saltando, nadando de um lado para o outro, e virando de barriga para cima, enquanto todos nos sentíamos como crianças felizes e emitíamos diversos "ohhhh".

No final da tarde, por volta das 20h30, o mar estava balançando um bocado e eu fiquei completamente enjoada. Não consegui jantar e, no dia seguinte, vomitei o café da manhã e depois o almoço, então tive uma certa folga dos turnos. Dizem, normalmente, que o enjoo para quem não está acostumado a velejar pode durar em torno de 72 horas, e que depois disso eu passaria o restante da viagem tranquila - o que eu esperava, mas não foi bem o que aconteceu. Apesar disso, acabei dormindo razoavelmente bem e o balanço do barco estava até agradável para o sono.

Um dos fatores agravantes foi que, apesar de o perfil do barco no site dar preferência a tripulação não fumante, o próprio comandante fumava e, liberado o cigarro no cockpit, ao menos metade da tripulação passou a fumar também. Recomendo que os não fumantes que pretendem se aventurar a bordo se certifiquem disso antes de embarcar, pois a fumaça do cigarro favorecia os enjoos e dava dores de cabeça. E se engana quem pensa que o vento vai dissipar a fumaça rapidamente. Em um momento da viagem chegamos a ter quatro fumantes e dois não-fumantes a bordo, então é só fazer as contas pra ver que, durante os turnos, havia sempre pelo menos um cigarro aceso e eu fumei passivamente pra caramba.

Chegamos no dia 11 de junho a Ibiza por volta das 13h, e eu estava me sentindo exausta, então acabei descansando por mais algumas horas depois de ancorarmos em uma praia. Foi nesse dia que também comecei a sentir uma certa saudade da minha rotina, eis que os dias pareciam intermináveis - além de amanhecer pouco antes das 6h e escurecer por volta das 22h, o fato de se estar vivenciando uma coisa nova fazia cada dia parecer durar o dobro, e foi o momento em que comecei a me questionar se seria possível aguentar ainda outros 40 dias a bordo.

Neste dia se juntou a nós mais um membro da tripulação, o Ori, um judeu que reside na Inglaterra, fala diversas línguas e, inclusive, conhece alguns bons palavrões em português!

No dia seguinte, saímos do ancoradouro em que estávamos e atracamos em Santo Antônio, o lugar onde ficam localizadas as famosas "sunset parties" de Ibiza. Saímos somente as quatro mulheres tripulantes para dar uma volta e assistir ao mais famoso e cobiçado pôr do sol da ilha.

Os rapazes acabaram ancorando o barco na praia enquanto estávamos fora e, na volta, já escuro, fomos buscadas pelo nosso botinho de borracha a motor, o que rendeu boas risadas, pois estávamos com a lotação máxima e achamos que iríamos acabar todos na água antes de chegar ao veleiro.

Na tarde seguinte, partiríamos ainda sem certeza se para Cartagena ou Melilha, que é território espanhol, mas fica localizada no norte da África. Meus dois turnos seriam das 3h às 9h.

Saímos por volta das 15h, após passarmos a manhã nos bronzeando no deque, e, no início, a travessia estava tranquila.

Contudo, durante a noite, na hora da minha folga, pegamos vento contra e muita ondulação. A cabine que eu dividi com mais uma tripulante ficava na proa, o lugar que mais recebe impacto durante a navegação. Foi impossível dormir por conta do barulho da água, das fortes batidas do barco nas ondas, e das chachoalhadas, além de muito frio.

A Lorena já havia mencionado e eu também havia lido sobre os "sonhos vívidos" que são comuns de se ter no barco enquanto se navega, e pra mim eles foram muito semelhantes a alucinações. Eu não dormia, mas também não estava completamente acordada, e via nitidamente algumas coisas que sabia não serem reais. Em um certo momento, enquanto estava pirando um pouco e achando que o casco do barco não ia resistir à força do impacto e iríamos naufragar, eu claramente me vi levantando da cama com meus sapatos e pondo os pés no carpete submerso por quase dois dedos de água. Só que eu estava deitada, e descalço. Sabia que não era real, mas ainda assim a imagem estava ali - vívida -, e até fiquei com receio de levantar da cama e o chão estar realmente molhado; mas não estava.

Além dos alucinados sonhos, foi interessante e ao mesmo tempo assustador que, durante o começo da viagem, eu não conseguia pensar em mais nada além do barco, de estar ali e das coisas que aconteciam ou poderiam acontecer. Não conseguia, por um momento sequer, pensar em família, amigos, na minha casa, em nada que fazia parte da minha vida, por mais que tentasse, numa tentativa de buscar algum conforto durante uma situação de tensão. Parece que a mente entra em um outro modo de funcionamento, que não temos total controle sobre ela, e a impressão que eu tinha às vezes é de que ia acabar voltando de viagem amarrada em uma camisa-de-força!

Pra colaborar, a bomba d'água deu problema durante essa travessia, então não tínhamos água nas torneiras, chuveiros e descargas, precisando pegar água do mar com um balde, o que era um sacrifício estando completamente enjoada.

Acabamos parando na cidade de Torres Viejas, após navegar e velejar por cerca de 28 horas. Cheguei à cidade me sentindo completamente frustrada, já que o restante da tripulação não parecia sentir tanto desconforto quanto eu, e alguns desconforto algum. Além do mais, enquanto você está passando mal, acaba não podendo ser muito útil a bordo, e eu sentia que talvez estivesse sobrecarregando os outros por não estar dando conta dos meus turnos como deveria, ou que pudessem pensar que eu estivesse fazendo "corpo mole" para me esquivar das tarefas.

Acabei conversando via Whatsapp com a Lorena, minha mãe e outra grande amiga, a Sheila, que me deram apoio e tentaram me animar a seguir em frente. Também desabafei com as meninas do barco e elas me deixaram mais tranquila, dizendo que ninguém a bordo se importava em assumir as tarefas de quem não estivesse se sentindo bem e todos estavam ali para aprender e fazer o que tivesse de ser feito.

Tomamos um merecido banho na marina, que tinha um vestiário com ótimas instalações, e também lavamos roupas na lavanderia. O barco possui máquina de lavar roupas, e até uma lava-louças, mas não tínhamos testado até então, e nem podíamos com a bomba d'água sem funcionar.

À noite, saímos todos para dar uma volta, e havia uma feira de rua ao lado da marina, dessas com brincadeiras de tiro ao alvo, dardos e etc, e o comandante acabou animando todos nós a brincarmos como se fôssemos crianças. Acabei ganhando um flamingo de pelúcia quase do meu tamanho ao estourar balões com dardos e dei risada vendo todos brincarem nos carrinhos de choque (não fui porque um trauma de infância me deu receio de machucar a minha perna já lesionada). Depois disso, acabei pensando que, por mais que a travessia pudesse ser difícil, cada chegada valia a pena, e que ainda haveria muitas outras chegadas e muitos lugares a conhecer!

Na manhã seguinte, eu, Ivana e Ori fomos a um supermercado reabastecer, e conseguimos convencer a gerente a nos deixar sair pela rua com o carrinho, já que a marina não era muito próxima e tínhamos diversas garrafas de água e litros de leite e suco, muito pesados para carregarmos a pé, especialmente no calor escaldante que fazia. Acabei deixando meu passaporte como garantia e quase que isso não foi uma boa ideia, pois quando voltamos para buscá-lo e devolver o carrinho, o supermercado estava fechando para a "siesta". Aliás, essa é a peculiaridade de toda a Espanha: às duas da tarde, (quase) tudo para para a "siesta".

À exceção de alguns poucos bares e cafés, as lojas, padarias, supermercados e comércios todos fecham e a população some das ruas, reabrindo às seis, quando uma profusão de gente se aglomera nas muitas pracinhas rodeadas por restaurantes e bares - crianças e seus pais, jovens e velhos, homens e mulheres, todos vão para as praças, que se enchem de barulho e vida.

No final da tarde, saí para uma última caminhada pela orla e também pelo deque elevado que havia ao lado da marina e se estendia por muitos metros dentro do mar, proporcionando uma linda vista para a cidade e o pôr do sol.

Outra particularidade da Espanha: cidades feitas para as pessoas. Em quase todas as que visitamos, foi possível ver uma preocupação com o bem estar de quem caminha, havendo sempre calçadas largas ao longo das orlas, praças arborizadas, deques e mirantes, além de ser muito fácil de se deslocar a pé mesmo em cidades grandes como Barcelona; tudo isso muito bem aproveitado pelos espanhóis, que me pareceram muito animados e muito ativos. Não imaginava, antes de partir, que fosse voltar tão fascinada pelo país e pela alegria do povo espanhol.

Saímos de Torres Viejas às 11h45 do dia 16 de junho e iniciamos a navegação num rumo de 165°, em direção a Cartagena. A travessia, felizmente, foi tranquila, e finalmente pegamos vento em popa e navegamos relativamente rápido. O balanço do barco se tornou agradável e relaxante, e, apesar de eu não ter conseguido dormir, deu pra relaxar e dar algumas cochiladas revigorantes. Chegamos ao nosso destino no final da tarde.

Cartagena é uma cidade portuária, mas incrivelmente charmosa, possuindo castelos, um museu naval e diversos monumentos, como o Rabo de Ballena e os dedicados aos marinheiros que lutaram em guerras. Logo que cheguei, saí sozinha para conhecer o local e tirar algumas fotos, e voltei para jantar no barco com o restante da tripulação, que saiu quase inteira depois à procura de um bar e alguma baladinha local.

Eu acabava me sentindo cansada a maior parte do tempo, pois, diferentemente dos demais, não conseguia dormir durante as travessias, mesmo que não estivesse me sentindo enjoada ou desconfortável. Vale lembrar que não é lá muito fácil dormir em uma cama que sacode pra todos os lados e em uma "casa" em que tudo faz barulho: é o "nhec" das dobradiças da retranca, é o "cling" de alguma coisa metálica batendo em outra, o "flop" das velas ao vento, é o "bum" de uma onda maior batendo, os passos de alguém andando no deque, acompanhados sempre do som de água deslizando pelo casco, que deve ser semelhante a tentar dormir dentro de uma máquina de lavar. E na hora das manobras de cambada e jibe, quem está dormindo também acorda no susto.

 

Na manhã seguinte, alguém estava insistentemente nos chamando do lado de fora, e como ninguém acordou por causa da ressaca, fui atender, e vi que era a polícia de fronteiras espanhola. Os oficiais pediram os passaportes de todos os tripulantes e tive que acordar todo mundo. Acabei batendo um papo com os oficiais, que me informaram que, por conta dos imigrantes ilegais vindos da África em embarcações, a polícia de fronteiras vinha fazendo um rígido controle de passaportes de quaisquer embarcações que atracassem nos portos ou marinas; mesmo nós sendo obrigados a apresentar nossos passaportes em todas elas, eles apareciam para conferir pessoalmente.

Saí sozinha para fazer algumas compras pessoais nas lojas da Calle Mayor, e encontrei com a tripulação para tomarmos um café da manhã e comer alguns deliciosos quitutes locais.

No final da tarde do dia 17 de junho, deixamos Cartagena, dessa vez rumo a Ceuta, que também é território espanhol e fica no norte da África, sendo que nosso plano inicial seria aportar em Melilha. Esperávamos um vento forte a nosso favor, mas ficamos na esperança. Foram quarenta e oito horas de travessia, praticamente todas a motor, com umas pouquíssimas horas de vento fraco empopado.

A segunda noite da travessia foi minha primeira noite inteira de sono com o barco em movimento, sendo que meus turnos, dessa vez, eram das 5h às 11h. Paramos para um banho em alto mar no segundo dia, nas límpidas águas do azul tão peculiar e intenso do Mar Mediterrâneo, que merecidamente tem seu correspondente na escala de cores Pantone.

Porém, com o barco à deriva, além de termos que tomar um certo cuidado para subir de volta a bordo - pois ele balançava violentamente pros lados -, assim que terminei o banho já comecei a enjoar novamente, e tive que correr pra deitar no convés até que começássemos a nos deslocar, quando, felizmente, meu enjoo passou.

Chegamos a Ceuta às 17h30 do dia 19 de junho, e nosso plano era cruzar a pé a fronteira do Marrocos na manhã seguinte. Uma das tripulantes, por ser da Sérvia, teria que ficar em território espanhol, por não ter conseguido visto para o Marrocos (brasileiros não necessitam de visto).

O dia em Marrocos foi uma aventura, nem sempre das mais agradáveis. Preenchemos alguns papéis para entregar para a polícia de fronteira, e passamos alguns minutos tentando dispensar alguns locais que queriam ser nossos guias. Iríamos a Tetouan e depois a Chefchaouen (ou Shafshawan, em árabe), a cidade azul. Chegamos a um local com dezenas de táxis parados, e um homem no local nos colocava e tirava de táxis repetidamente. Essas pessoas abordam os turistas, que no começo não entendem nada, e ficam tentando "vendê-los" aos taxistas pela maior comissão possível: o motorista que pagar mais, faz a corrida. Em um ponto percebemos o que estava acontecendo, e então nos recusamos a sair de dois táxis que ocupamos - estávamos em seis pessoas.

O veículo era uma Mercedes Benz antiga, sem cinto de segurança, sem ar condicionado (lembrando que o verão no Marrocos é extremamente quente e seco), com o hodômetro sempre marcando zero. Um dos vidros não descia, uma das portas não abria por dentro, e de tempos em tempos o taxista parava o carro, abria o capô e jogava água no motor.

Estava tudo fechado em Tetouan e descobrimos então que estávamos no Marrocos em meio ao Ramadã, em que poucos estabelecimentos abrem por conta do jejum do islamismo que dura até as oito da noite. Foi uma infeliz descoberta precisar de um banheiro depois de beber muita água por conta da sede, ir a um hotel e me deparar com aquele buraco no chão, sem nenhum lugar pra se apoiar exceto as paredes imundas e lodosas. Felizmente eu possuía lenços umedecidos na bolsa e consegui me equilibrar e fazer o que devia ser feito sem nenhum acidente de percurso.

Passamos por um mercado de rua que começava a abrir, onde vendiam frutas, doces, temperos, peixes frescos e galinhas vivas. Acabamos sendo abordados por outro marroquino, que disse que nos levaria a uma casa de chás. O comandante resolveu segui-lo e nós acompanhamos. Paramos em um local que parecia uma casa de três andares, mas também era um mercado, onde vendiam tapeçaria e artesanatos produzidos no país, que tentaram nos fazer comprar a todo custo e por preços muito acima dos que encontramos depois nas feiras de Chefchaouen. Tomamos o chá e o rapaz ainda insistiu em nos levar a uma farmácia, onde novamente tentaram nos vender todos os tipos de ervas e unguentos.

Quando voltávamos ao táxi, o comandante e o rapaz tiveram uma discussão a respeito do preço do chá, e a situação ficou tensa e acalorada. Ressalto que quem fazia todas as negociações era o comandante, e o passeio em Marrocos foi oferecido a nós por ele, que sequer possuíamos moeda local, e em nossa maioria não tínhamos muito dinheiro disponível para gastar em terra, pois a intenção principal da viagem era velejar, e a viagem ao Marrocos envolvia um longo e dispendioso trajeto de táxi, na ausência de outros meios de transporte. Logo fomos rodeados por diversas pessoas que falavam e gritavam umas com as outras em árabe, e acabamos um pouco assustados pois não sabíamos o que estava acontecendo. O taxista acabou intercedendo e então houve um acordo a respeito do valor.

Partimos, então, rumo a Chefchaouen, que fica nas encostas dos montes Kelaa e Megu, na cordilheira do Rife. A subida - após passar por um depósito de lixo em que podiam ser vistas milhares de sacolas plásticas voando por sobre os muros e se acumulando na natureza ao redor - oferecia uma linda vista para florestas, rios e lagos de águas leitosas, mas de um azul claríssimo. Quanto mais subíamos, mais quente e seco ficava, e mais tínhamos que parar para resfriar o motor, e então comecei a lamentar por haver deixado o papel do seguro-viagem no barco em Ceuta, pois o motorista parecia ter tirado habilitação em um jogo de "Carmaggedon".

Quando finalmente chegamos à cidade, fomos brindados por todas aquelas paredes e portas azuis de diversos formatos e tamanhos. Novamente, dois locais insistiram em ser nossos guias, mesmo após as inúmeras recusas do comandante, que já estava na cidade pela terceira vez. Acabamos chegando a um restaurante, infelizmente, não lembro o nome, - com os dois "guias" que não aceitaram a recusa e nos seguiram mesmo assim - no qual comemos o que pra mim foi a melhor refeição de toda a viagem. Pedimos seis menus e cada um experimentou um pouco de tudo, e saí de lá apaixonada pela culinária marroquina. Os dois "guias" passaram todo o almoço tentando nos vender uma generosa porção de haxixe, cujo consumo é tradicional e habitual por lá. Segundo nos disseram, a principal economia do Marrocos é a exportação de haxixe, embora não oficial, por ser ilegal.

Ao final, o comandante acabou pagando aos dois por terem "nos guiado" ao restaurante, mesmo que o serviço tenha sido recusado desde o princípio. Essa foi a parte mais desanimadora do Marrocos: o assédio aos turistas, pois os locais não nos deixaram sozinhos um momento sequer, sempre tentando conseguir algum dinheiro por algum serviço que não tinham prestado, ou por um valor acima do combinado inicialmente.

Passeamos pela feira e fomos em direção à Mesquita, e depois voltamos aos táxis para regressarmos a Ceuta. A experiência da descida do monte foi de quase-morte, pois ao menos três vezes o taxista quase colidiu de frente com outros veículos em alta velocidade ou despencou ribanceira abaixo, e foi um alívio chegar à base do morro, e ainda maior descer do táxi na fronteira, pois mesmo dirigindo em terreno plano ele não aliviava o pé, e volta e meia quase atropelava alguém, buzinando o tempo todo para as pessoas correrem. Foi um alívio voltar a Ceuta, pois, infelizmente, apesar das inúmeras belezas naturais e culturais e da deliciosa comida, sentimo-nos inseguros durante quase todo o tempo no Marrocos.

Partimos na manhã seguinte para Gibraltar, onde a Nollaig e o Ori deixariam o barco e o Bram entraria, vindo da Holanda. A despedida foi rápida, pois atracamos em cima da hora do embarque de um deles, o que evitou algumas choradeiras, pois havíamos todos nos tornado bons amigos, dividido risadas e também momentos difíceis. O confinamento e a vivência de uma situação nova e peculiar nos aproximou, a ponto de parecer que já nos conhecíamos há tempos.

Gibraltar é território britânico ultramarino, localizado no extremo sul da Península Ibérica, sendo a atividade portuária a principal economia local, uma das mais frequentadas vias marítimas do mundo. Ficamos apenas um dia e uma noite, e, como era domingo, quase tudo estava fechado.

Partimos na manhã do dia 22 de junho rumo a Cadiz, de volta à Espanha, chegando às 22h30, aproximadamente. Fiquei imprestável por conta dos enjoos durante quase todo o percurso, mas a essa altura da viagem, ao menos a minha mente conseguia descansar, embora o corpo nem sempre - especialmente o estômago. Não tinha mais alucinações, conseguia pensar na minha vida "além-barco"; e os dias já não pareciam tão longos, o tempo transcorria normalmente.

Cadiz é mais uma cidade espanhola com uma bela orla e vista, prédios históricos, vielas estreitas e agradáveis de se caminhar e pracinhas lotadas de pessoas. Dali, partimos para Lisboa, sendo essa travessia um pouco mais agradável, apesar de eu ainda ter vomitado duas vezes - ao menos depois eu me sentia bem e disposta, apesar de não conseguir comer nem beber muita água, e também era possível dormir sem acordar muitas vezes durante as minhas folgas. Fomos novamente acompanhados por golfinhos (tivemos encontros com pelo menos três espécies deles, em diversos trechos da viagem) e ancoramos em Sagres para nadar e relaxar um pouco antes do nosso destino.

Em Lisboa, eu estava determinada a abandonar o barco e regressar ao Brasil.

Em Lisboa, eu estava determinada a abandonar o barco e regressar ao Brasil. Apesar de me sentir mais adaptada, eu ainda sentia enjoos, enquanto todo o resto da tripulação não, e eu sabia que a partir dali os ventos se tornariam mais fortes e as ondas maiores. Ainda, não haveria aeroporto nas próximas cidades em que planejávamos parar. Dessa vez, contudo, eu não me sentia frustrada por querer desistir como quando cheguei a Torres Viejas, mas sentia uma sensação de dever cumprido por haver aguentado metade dos 45 dias e que maior vergonha que reconhecer que meu estômago não é de marinheiro e voltar pra casa, seria nunca ter tentado algo tão inusitado e impulsivo quanto essa viagem foi pra mim. Além do mais, sempre compensei o fato de às vezes ter que repousar no horário dos meus turnos fazendo outras atividades quando ancorados - assumi com gosto a tarefa da limpeza do interior e de escovar os carpetes, até porque a vida a bordo não te permite muito exercício e eu sentia falta da minha rotina de treinos, que procurava compensar fazendo algum trabalho braçal.

Atracamos em uma marina na região portuária de Lisboa, e caminhei um bom percurso sob o escaldante sol do meio dia; o termômetro marcava 41 graus. Queria encontrar o metrô para ir ao aeroporto e tentar trocar a minha passagem de volta, e no caminho também não encontrei táxis por muito tempo.

Acabei parando no Mercado da Ribeira, um charmoso mercado gastronômico repleto de restaurantes que ofereciam comida gourmet a preços acessíveis. Almocei um polvo ensopado com batata doce na "Cozinha da Felicidade", e comi o "melhor bolo de chocolate do mundo", acompanhado de duas bolas de sorvete, na Santini. Não comi todos os bolos de chocolate do mundo pra saber se isso é verdade, mas está perto de ser!

Depois, cheguei a uma estação de trem em frente por engano, achando que era do metrô, e lá fui informada que o metrô estava em greve. Acabei pegando um táxi e gastando uns bons dez euros, pois Lisboa é uma cidade grande e, diferentemente das cidades espanholas, não é tão fácil se deslocar a pé. O sistema de metrô também não é grandes coisas. Ainda por cima, o aeroporto ficava afastado da região central e portuária, no nordeste da cidade.

Porém, não consegui trocar as passagens por conta do tipo de tarifa. Não tinha outra opção a não ser ir até o fim, pois cancelar e comprar uma nova passagem custaria muito caro. Mas não fiquei frustrada; encarei como um "agora vou até o fim" (até porque não tinha outro jeito).

Voltei de táxi até o centro e, com um mapa na mão, resolvi ir até a Fundação José Saramago - Casa dos Bicos, por ser uma grande fã do autor. Paguei três euros para acessar o acervo histórico e poder ler um pouco dos seus manuscritos - e concluir, feliz da vida, que ele também tinha letra feia. O andar superior possui uma livraria que vende diversas obras, e acabei comprando três livros do Saramago para ler no barco, nas horas vagas, quando estivéssemos ancorados. Caminhei pela região e vi alguns pontos turísticos como a Catedral da Sé, e depois voltei a pé ao anoitecer.

A longa caminhada de volta me fez sentir muita dor na perna operada, e houve até mesmo um momento em que achei que não ia mais conseguir andar. Já era possível notar a diferença de mais de vinte dias sem treinar musculação - havia perdido bastante massa magra, especialmente nessa perna, e passado a sentir dores frequentes no joelho, na canela - altura da fratura-, e no tornozelo, que já apresentava também maior rigidez articular.

No sábado, acabei acordando mais tarde e saindo com o resto da tripulação para almoçar. Falei a respeito do Mercado da Ribeira e eles resolveram seguir a minha indicação e conhecer o lugar. Dessa vez, o interior do mercado estava cheio e não conseguimos encontrar um lugar que abrigasse nós cinco (uma tripulante não quis sair do barco para o almoço), mas acabamos conseguindo uma mesa em um dos restaurantes que tinha área externa. O único problema era o calor de 42 graus, muito intenso mesmo sob os ombrelones. A comida também estava deliciosa. Depois, passamos em um supermercado na estação de trem em frente ao mercado para reabastecer o barco com provisões.

Ainda teríamos tempo de sobra no domingo para conhecer a cidade. Eu havia marcado previamente um tour de motocicleta com um rapaz pelo Couchsurfing que tinha excelentes recomendações, mas ele me informou que havia sofrido um acidente dois dias antes e que não ia poder me levar para o passeio. Acabei recebendo outra proposta semelhante pelo site, e consegui conhecer um pouco mais da cidade da garupa de uma motocicleta.

Havia um festival de música aberto em uma praça na parte moderna da cidade, e acabamos passando uma boa parte da tarde sentados na grama junto a outros jovens que curtiam uma banda famosa de Portugal (não lembro o nome da banda, mas eles tocaram até alguns refrões de Gabriel o Pensador).

Mal sabe ele que eu fiquei desejando mais um!

Depois, seguimos para ver a Torre de Belém, o mosteiro, e, a pedidos, ele me levou para comer os legítimos Pastéis de Belém, que eu desconhecia ser também uma marca registrada (os demais locais que vendem o doce no país têm de chamá-lo Pastel de Nata). Pedi logo três. Meu guia se surpreendeu e, rindo, disse que era a primeira vez que via uma mulher comer tantos pasteis. Mal sabe ele que eu fiquei desejando mais um!

No dia seguinte, zarpamos para a travessia que seria a mais longa da viagem, de em média 72 horas. A intenção era navegar para oeste, pois havia a previsão de entrada de um vento sudoeste fora da costa, durante a madrugada, que nos empurraria na direção oposta, para a qual devíamos seguir.

Durante o primeiro dia, velejamos contra o vento e praticamente num rumo verdadeiro de 270°, quase oeste, indo pouquíssima coisa pra cima. Pela primeira vez eu comecei a tomar as pílulas antienjoo que o comandante, que é médico de profissão, havia levado. As pílulas diminuem a produção de líquidos do corpo, ressecando a pele, olhos e mucosas, e foi por essa razão que eu resolvi esperar tanto tempo para ceder e começar a tomar o medicamento. Mesmo assim, passei o primeiro dia nauseada.

O vento previsto não entrou (aliás, a previsão foi traiçoeira conosco durante quase toda a viagem), e no outro dia tivemos que navegar rumo ao nordeste, a maior parte do tempo a motor, alternando com poucas horas de vento fraco empopado. Pela primeira vez, por conta do remédio, eu estava navegando em um mar agitado e me sentindo bem, podendo comer refeições normalmente. Até então, em todos os trechos que navegamos em alto mar, eu não conseguia comer mais que alguns poucos biscoitos, além de beber pouquíssima água.

Fiz turnos das 7h à 1h nessa travessia, então consegui dormir razoavelmente bem e durante quase toda a noite. Mesmo assim, foi meio difícil aguentar a travessia mais longa; não por conta dos enjoos, mas sim pelo tempo confinada no barco. A Ivana, que é muito ativa, também estava incomodada com o confinamento, e achou que não ia conseguir ficar 72 horas direto tão parada, deixando o barco e pegando um avião para Porto.

A bordo, nem sempre muita coisa acontece, e o espaço é pequeno e compartilhado, então ficar 72 horas sem poder caminhar e sem se movimentar muito acaba gerando ansiedade em quem está acostumado a fazer mil coisas ao mesmo tempo. Na folga, ou eu dormia, ou ficava deitada lendo ou escrevendo. No turno, ficava sentada observando os instrumentos de navegação e as embarcações e objetos ao redor. O barco era quase todo automatizado, então tínhamos que fazer pouco ou nada de esforço físico para velejar, praticamente apenas quando atracávamos às marinas, em que todos têm que amarrar as defensas na lateral do barco, bem como amarrar os cabos ao cais e vez ou outra usá-los para puxar o barco mais pra lá ou mais pra cá.

Acabamos pescando um atum de uns cinco quilos nessa travessia, então comemos durante três dias sashimi de atum, atum assado, atum frito, sopa de atum... até não aguentarmos mais e devolvermos pro mar o que sobrou do peixão.

 

Ria de Viveiro. Foto: Sofia Willert
 

No dia 4 de julho, após uma breve parada em Riveira, na Galícia (que foi a primeira cidade espanhola que não me pareceu tão aconchegante quanto as outras), chegamos à pequena cidade de Viveiro.

Para se chegar ao porto de Viveiro navegando, tem-se que entrar na Ría de Viveiro, Ensenada Concha d'Area, que é cercada de morros de mata virgem e costões de pedra cheios de cavernas. Ainda, há várias pequenas praias isoladas, que pareciam sequer ter acesso por terra, provavelmente apenas através de estreitas trilhas por dentro da mata. Assumi muito feliz a função que me foi designada, de ficar na proa observando se não havia nenhuma corda flutuando em que pudéssemos enroscar a hélice, pois havíamos passado por duas.

Sentei na proa e fiquei contemplando a beleza daquele lugar que sequer estava nos nossos planos iniciais de viagem e que, até aquele momento, eu sequer sabia o nome. Só sabia que era lindo, e que aquela vista havia valido todos os enjoos e o confinamento. Só é possível ver essa beleza de Viveiro chegando a ela pelo mar!

Nessa região, o clima já havia mudado por completo. Ao invés do calor de 40° e do sol forte que até então nos havia acompanhado - não pegamos um dia de tempo fechado sequer! -, a temperatura estava baixa o suficiente para usar um fleece ou uma jaqueta e calças.

Havia várias pessoas saindo do porto remando caiaques, o que deve ser uma ótima forma de aproveitar ainda mais a natureza da Ría de Viveiro e visitar todas aquelas pequenas praias desertas. Deixamos a marina para almoçar, e pude constatar que estava em mais uma cidade espanhola cheia de vida, apesar de seus pouco mais de 15.000 habitantes.

Almoçamos no restaurante La Quinta, e os pratos foram muito mais bem servidos do que esperávamos. Acabei comendo polvo, novamente, por ser uma fã do molusco, e tive até que pedir para embrulhar as sobras para levar, pois elas eram suficientes para meu jantar.

De volta ao barco, cochilei um pouco, acordei de mau humor - não gosto de dormir durante o dia, mas me sentia muito cansada pelas 72 horas de pouco sono -, que melhorou depois que tomei o banho mais longo da minha vida no chuveiro da marina. Vale lembrar que, por mais que o barco tenha duchas e inclusive água quente, não é nada fácil lavar os cabelos enquanto se tem que segurar a mangueira da ducha, e ainda por cima se equilibrar e eventualmente ter que se segurar em algo quando o barco dá um inesperado solavanco. Então, os banhos a bordo eram rápidos, e nas piores condições de tempo, em que eu enjoava a cada vez que levantava da cama, recorria ao "banho de gato", usando lenços umedecidos.

Calcei os tênis e resolvi explorar a cidade. Estava morrendo de vontade de subir um morro que podíamos avistar da marina e que tinha uma vista privilegiada. Andei pelo centro, passei pela frente de uma antiga igreja, e quando vi estava aos pés do morro, que ficava na região rural da cidade e possuía uma estrada asfaltada que levava até o topo.

A subida oferecia vista para diversas casas de pedra, em que até as telhas eram de pedra, aparentando ser muito antigas, patrimônio histórico. Também era possível avistar uma solitária estrada de ferro em meio ao verde, curiosos cavalos e animais de fazenda, muitas flores e algumas plantações.

Em um certo ponto, cheguei a uma trilha pela mata e resolvi subir, pois levava exatamente ao lugar que eu queria chegar. Fui até o topo e, entre as árvores, foi possível relaxar e ver o quão charmosa era a cidade também quando vista de cima. Na descida, ainda encontrei diversos moranguinhos selvagens e tão minúsculos que fiquei em dúvida se eram morangos mesmos, mas o perfume era inconfundível, e mais doces que qualquer morango de bandeja vendido em supermercado.

Voltei para a estrada e resolvi subir mais um pouco, pois as placas indicavam que havia um mirante no cume. Contudo, a subida foi um pouco mais longa que minha perna conseguiu aguentar, e como já eram quase 22h - apesar de ainda ser dia claro -, resolvi descer.

Tirei algumas fotos, dei uma volta pelo agitado centrinho, e parei em uma confeitaria que vendia apetitosas "galetitas"; na dúvida entre qual escolher, pedi uma de cada! Voltei pela margem do rio para o barco, sentando um pouco para apreciar a vista da ponte. Jantei o que tinha sobrado do polvo e dormi.

Na manhã seguinte, saímos da cidade para ancorar em uma praia da enseada, chamada Playa de S. Julián. Fundeamos próximo à praia e, apesar de estar com vontade de mergulhar, fazia frio, mesmo com sol forte, e a água estava gelada. Acabei ficando no convés, lendo e ouvindo música, e me divertindo ao observar os diversos adolescentes ao redor que estavam em um acampamento de férias fazendo aulas de vela, windsurf e wakeboard.

     
     

Dormimos no local, e no dia seguinte o comandante resolveu fundear em outra praia. Contudo, tivemos algumas dificuldades com a âncora e ele resolveu voltar. Aliás, todas as tentativas de fundeio sempre levavam um longo tempo, e nem sempre conseguíamos ancorar, e o comandante estava insatisfeito com aquele tipo de âncora, que não unhava muito bem na maioria das vezes, especialmente se havia algas no fundo, além de ser pequena pro tamanho do barco.

Depois, no dia 8 de julho, regressamos à marina de Viveiro, pois um tripulante desembarcaria e outro entraria em seu lugar. Feita a troca, partimos rumo a Brest, na França, na travessia que foi a pior de toda a viagem, pois cruzamos a temida Baía de Biscay. A Lorena já havia me perguntado, toda preocupada, se faríamos a travessia pela costa ou por alto mar, pois ela havia visto alguns dias antes um vídeo do time feminino SCA, que competiu na regata Volvo Ocean Race, passando trabalho nessa travessia.

E ela tinha razão. Pegamos entre 30 e 38 nós de vento contra, e as ondas tinham aproximadamente cinco metros, com algumas maiores. Fazia muito frio, e mesmo tendo comprado algumas roupas térmicas a mais em Viveiro, luvas e meias de lã, tive dificuldade para me aquecer.

Pra piorar, mesmo com o remédio, fiquei enjoada. Muito enjoada. Vomitei tudo que tinha no estômago e, quando acabou, vomitei a bile diversas vezes. Contei doze em um dia e depois parei de contar. Não conseguia continuar tomando o remédio, pois ele voltava. Estava imprestável. O novo tripulante, que era um senhor experiente, também não se sentia bem. Outra tripulante também se sentiu desconfortável; só o comandante e o velejador italiano que estavam adorando toda a ação e as ondas grandes.

No dia seguinte, ainda acordei mal e vomitei outras duas vezes, mas depois acabou passando, assim como as condições de tempo e vento haviam melhorado. Ainda assim, eu me sentia muito fraca e não conseguia comer nem beber água o suficiente para ao menos me manter hidratada.

Sequer tive tempo de sair da marina e conhecer Brest, pois chegamos numa manhã e partimos na manhã seguinte, já que havia diversas tarefas a se fazer no barco, e o cansaço que eu sentia depois da última travessia me desmotivou a fazer um esforço extra e sair para caminhar.

O plano inicial seria atravessar de Brest a Ramsgate em 48 horas, mas havíamos chegado a Brest com uma semana de antecedência. Então, o comandante resolveu que velejaríamos somente durante o dia e pararíamos em alguma cidade nova no final da tarde, e no dia seguinte a mesma coisa, até matarmos tempo o suficiente para fazer a travessia do English Channel, que então seria mais curta.

Chegamos ao final da tarde na encantadora vila de L'Aber Wrac'h, na região da Bretanha, a cidade francesa das hortênsias. Apesar do clima ainda frio e levemente chuvoso, resolvi sair para uma das minhas longas caminhadas após jantar com a tripulação. Os demais tripulantes não gostavam muito de caminhar pelas cidades, ficando a maior parte do tempo no barco; no máximo parando em algum bar ou restaurante próximo. Só que eu, muito provavelmente, não vou ter a oportunidade de conhecer estas cidades de novo, e não queria perder a chance de ver o máximo que eu podia ver e andar tanto quanto minhas pernas aguentassem, mesmo com a perna esquerda doendo a maior parte do tempo.

Segui por uma estrada à beira mar, passei por casas com jardins floridos, e acabei na Baie des Anges, onde havia uma trilha pela costa. Segui durante um certo período, mas voltei para a parte urbana pois não faltava muito para escurecer e eu não queria me embrenhar no mato e não ver a cidade.

 

As folhas gigantes. Foto: Sofia Willert
 

Acabei voltando por uma estrada paralela à que vim, uma pequena subida, e me diverti com umas folhas imensas próximas a um lago artificial, maiores que guarda-chuvas, que me fizeram sentir como se estivesse em uma terra de gigantes. No alto da subida, também há um mirante da cidade. Voltei logo após escurecer.

Partimos na manhã, e chegamos às 20h40 em Tréguier. Como apenas velejávamos durante o dia, não precisávamos fazer turnos, e estávamos livres para acompanhar a vigília ou não. Como estava frio, acabei alternando entre a cama quentinha e o cockpit gelado, mais na cama - confesso. Estávamos pegando sempre vento a favor e velejando mais próximos da costa, então passei a me sentir bem mais confortável no barco, e pude me ocupar com os livros que havia comprado em Lisboa e em Viveiro - era tanto ócio que li quatro livros e meio.

Tréguier, também na Bretanha, tem pouco mais de dois mil habitantes e é uma cidade histórica do século XIII, sem as lindas flores de L'Aber Wrac'h, mas cheia de monumentos. Como já era tarde, acabei focando em conhecer os principais pontos turísticos, como a catedral Iliz-veur, o "Bois du Poéte" e a escultura La Douleur, de Francis Renaud, uma homenagem aos mortos da Primeira Guerra Mundial e que é considerada um dos monumentos mais belos da Bretanha.

Na manhã seguinte, partimos para Guernsey, território britânico localizado nas Channel Islands. Apesar de aportarmos na marina, o cais era flutuante, e só podíamos chegar até a cidade usando o bote. Estava chovendo, era quase noite, e preferi ficar no barco, enquanto eles resolveram sair para beber.

Novamente, partimos pela manhã, e aportamos em Cherbourg, mais uma vez na França, na região da Normandia. Chegamos com um intenso nevoeiro, e precisamos auxiliar um outro barco que estava sem GPS e não possuía visibilidade alguma na neblina.

Em Cherbourg, o clima era instável e mudava diversas vezes por dia; ora frio e chuva; ora calor e sol; frio e chuva de novo... Uma cidade com aproximadamente 43 mil habitantes, agradável e com um centrinho repleto de lojas, restaurantes e confeitarias.

Passei por um prédio que possuía diversas esculturas de concreto imitando guarda-chuvas, e depois, vendo os cartões postais da marca Heula em uma banca de revistas, descobri o porquê. Aparentemente, a Normandia é a região mais chuvosa da França, e a bem humorada marca faz referência a isso em quase todos os seus cartões postais, como o que dizia "presente da Normandia" e trazia uma gota d'água desenhada, ou o que retratava duas pessoas usando capas de chuva na praia e dizia "nudistas na Normandia". Perdi bons minutos me divertindo com os postais e não pude deixar de trazer alguns para presente.

Na loja La Trinitaine, ainda foi possível comprar diversos produtos da região da Normandia, como bebidas, produtos de beleza e doces, que são deliciosos! O destaque vai pros tradicionais caramelos da manteiga salgada, que compõem balas, biscoitos e chocolates.

Passamos duas noites em Cherbourg, e por volta das 17h do segundo dia, zarpamos para nossa última travessia, rumo a Ramsgate, que duraria em média 26 horas, já que da França para a Inglaterra pelo English Channel a distância mínima é de aproximadamente cinco quilômetros. Peguei o turno das 8h às 2h e não tive grandes problemas com enjoos porque velejamos pela costa pela maior parte do tempo. Também não fazia tanto frio e consegui me manter acordada.

 

Os famosos Cliffs of Dover. Foto: Sofia Willert
 

No dia seguinte, pude ver os famosos Cliffs of Dover e os menos famosos, mas igualmente bonitos, Cliffs de Beachy Head, em Eastbourne. Não fazia frio, o dia estava ensolarado, estávamos velejando com o vento, e pela primeira vez, não estando enjoada demais, pude fotografar a colorida e fotogênica vela "balooner" aberta.

Aportamos em Ramsgate ao final da tarde e comemoramos a chegada, após navegar 2.516 milhas náuticas, com champanhe, vinho, sopa e "moules", um marisco típico das regiões que tínhamos visitado por último na França e que é, como tudo mais no país, servido com batatas fritas.

Dormimos a bordo e, no dia seguinte, fizemos a limpeza interna e externa do barco, descartamos o lixo, arrumamos nossas malas e também tiramos as comidas perecíveis das geladeiras. Nos despedimos e peguei um ônibus às 13h40 para Londres, descendo na estação Victoria.

Segui a pé, dessa vez não só com uma mochila, mas também com uma mala de 31 kg (cheia de vinhos!) e outra bem leve, até o Airways Hotel Victoria, um "bed and breakfast" que fica a 600 metros da estação e estava em promoção de última hora pelo Booking.com por 62 libras. Nem li a resenha, pois com os gastos que tinha tido até então, topava até dormir no chão do aeroporto. Apesar de esse valor, convertido, ser mais de 300 reais, eu não tinha encontrado antes nenhuma hospedagem por menos de 100 libras; mesmo os hostels possuem um preço muito elevado.

Por sorte, o quarto era confortável e limpo, e o chuveiro fazia até massagem nas costas. Tomei um banho relaxante e saí para caminhar pela beira do rio Tâmisa, que estava colorido por conta dos reflexos do sol poente. Meu segundo dia em Londres, e eu novamente fora premiada com sol!

Segui até a Abadia de Westminster, o Palácio de Buckingham, e voltei para o hotel pela via do palácio. Como os restaurantes não estavam mais servindo, comprei um jantar para levar no Leon's, um gostoso fast food natural com ótimo preço e atendimento, que fica na estação Victoria.

Pela primeira vez em 45 dias, eu estava dormindo em uma cama de um quarto que não se movia! Acordei disposta, tomei um bom e farto café da manhã no hotel, e fiz o check out um pouco antes do horário, que é às 10h30. Deixei minhas malas em um quarto destinado a isso e, como não tinha muito tempo pois teria que arrastar minhas malas pelos metrôs da cidade até Heathrow, de onde meu voo sairia às 20h17, resolvi ficar pela região de Victoria e passear pelas lojas da estação.

Almocei novamente no Leon's, busquei as malas, e peguei a District Line no metrô da estação Victoria, trocando para a Piccadilly Line, que me levaria direto até o aeroporto de Heathrow. Felizmente, duas pessoas pelo caminho me ajudaram com a mala pesada nas escadarias, então não foi tão sofrido quanto pensei.

Cheguei com antecedência ao aeroporto, e o voo da Air France saiu com algum atraso. Acabei conhecendo um casal de brasileiros de Viçosa/MG que iria pegar os mesmos voos que eu, e estávamos um pouco preocupados com a conexão no aeroporto Charles de Gaulle, pois seria de apenas uma hora.

A conexão foi um caos. Felizmente, a cia aérea mandou funcionários para nos direcionarem para nossos voos, pois tínhamos vinte minutos para pegar o avião para o Brasil. Ainda assim, tive que correr, o que não já não é nada fácil com a minha perna esquerda ainda não recuperada, e foi ainda menos ao final da viagem.

O voo acabou atrasando uns minutos, à nossa espera. Eu havia reservado um assento com mais espaço para as pernas e o voo de volta foi tranquilo. No Rio de Janeiro, deveríamos retirar as malas, mas a atendente da Air France chamou alguns nomes no microfone - entre eles, o meu e o do casal de Viçosa -, informando que nossas bagagens haviam ficado em Paris e viriam no dia seguinte no mesmo voo.

Confesso que, para mim, foi um alívio, pois minha escala no Rio era de 14 horas e eu iria ficar no apartamento de um tio em Copacabana. Não precisaria carregar minhas malas por aí, e elas ainda seriam entregues na porta da minha casa em até 48 horas.

Segui a dica da minha prima e peguei um ônibus "Frescão" às 6h, descendo em Copacabana, na Rua Figueiredo de Magalhães, somente às 9h, em virtude do trânsito completamente caótico. Tinha planos de visitar uma amiga no Recreio, mas desisti por conta do tráfego e resolvi descansar e passear na praia. Peguei um táxi final de tarde e cheguei ao aeroporto com uma certa folga antes do embarque. O voo saiu no horário previsto e cheguei a Florianópolis às 22h horas do dia 21 de julho, quando, oficialmente, encerrou-se a minha aventura.

Minhas impressões da viagem

As impressões que tive ao final da viagem foram que, apesar de todos os pesares, eu faria novamente uma viagem a bordo de um veleiro. Mas confesso que 45 dias foi tempo demais, especialmente para quem enjoa e não tem experiência para se entreter com o que está acontecendo a bordo.

Navegar é uma forma diferente de viajar e de ver os lugares, e a experiência do confinamento com diversas pessoas de diferentes nacionalidades - todas falando inglês com seu sotaque peculiar! - foi enriquecedora, especialmente para quem havia se acostumado a morar sozinha, como eu. O que achei que seria o maior desafio, no fim acabou sendo a parte mais fácil, pois viver uma situação nova e passar por contratempos se torna muito mais fácil tendo pessoas ao seu lado pra te ajudar. O senso de cooperação no barco foi inspirador e algo que deveríamos trazer para o nosso cotidiano - quem estava bem ajudava quem estava mal e assumia suas tarefas, e quando a situação cessava, quem estava mal assumia outras para compensar.

Não descarto, mas não me sinto preparada tão cedo, para fazer uma travessia oceânica mais longa. O corpo e a mente precisam estar preparados para o confinamento e eu preciso aprender a administrar melhor o ócio a bordo e tornar esse tempo livre mais produtivo para começar a pensar em algo do tipo.

Voltei com a sensação de que é muito mais fácil encarar um desafio do que a gente imagina, afinal, aguentei muito mais tempo do que realmente achava que iria conseguir. Talvez devesse ter esperado pra me recuperar um pouco mais fisicamente, mas eu precisava dessa aventura logo, pra voltar a acreditar na minha capacidade e nos meus sonhos, depois do longo período de repouso e reabilitação pelo qual passei. Risquei um item importante da minha lista de resoluções de ano novo, conheci lugares e pessoas incríveis, saí completamente da minha zona de conforto e superei os meus limites.

E descobri que Van Gogh estava certo: “O coração é muito como o mar: tem suas tempestades, suas marés e suas profundezas; tem as suas pérolas também”.

Sofia Willert

 
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