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Niño de las Montañas
 
texto de: Vinícius Maltauro
19 de julho de 2015 - 22:35
 

Aconcágua envergonhado, escondido atrás das nuvens!
 

Este "guia" foi elaborado depois de 10 anos de aprendizado com meu filho Caynã e outras crianças, 2 anos instruindo crianças num ginásio de escalada indoor e um tanto de pesquisa em literatura sobre o assunto. Ao longo deste período, Caynã e eu tivemos a oportunidade de sair em diversas caminhadas de um dia e de múltiplos dias, acampamos em áreas remotas, escalamos vias esportivas em top rope e guiando, escalamos vias longas com proteções fixas e móveis, fizemos boulder, bastante escalada indoor, brincamos de psicobloc, solamos, estivemos em altitude extrema, cozinhamos, tomamos sol, chuva, vento e neve, brincamos, lemos, jogamos, competimos quem ficava mais tempo no rio gelado, procuramos estrelas cadentes, ficamos de bobeira, tivemos conversas profundas, fizemos cocô no mato (sem rastros!), fugimos de marimbondos, catamos pinhões e navegamos com mapa e bússola. Fizemos isso na companhia de amigos, parentes, gente que conhecemos na montanha, outras crianças, clientes, mas também fomos só nós dois e em outras vezes deixamos de ir pra ficar na piscina da casa da vó! Estas experiências marcaram nossa história, nos aproximaram e ajudaram a construir as bases da nossa relação, elas também trouxeram aprendizados perenes que estão contribuindo para a formação do caráter do Caynã.

Do parquinho ao parque nacional, cuide das experiências

Nas rodas de amigos escaladores vez ou outra surge o assunto ter filhos e as expectativas de levá-los a trilhar o nosso caminho, a ameaça de termos que deixar em segundo plano o esporte que tanto gostamos e ainda o risco de "errar a mão" e o novato não curtir montanha.

As crianças são abertas a conhecer coisas, tudo é novidade para elas e a natureza é um universo fascinante para seus sentidos recém-chegados a este mundo. O que faz uma criança gostar ou não de ir para a montanha é a qualidade da experiência que lhe é proporcionada, é essencial planejar atividades com foco nelas. Saídas com crianças não são o momento adequado para você tentar a cadena daquele 8b que ficou engasgado, vai ser entediante demais para o seu filho ficar esperando sem muita coisa para fazer e vai ser desconfortável estar longe de você neste ambiente novo. Por outro lado evite expor os pequenos a atividades muito duras sem uma boa preparação antes, experiências ruins são seu pior inimigo se pretende ensinar montanhismo ao seu filho!

Plante a semente!

Uma pesquisa da Associação Brasileira das Empresas de Turismo de Aventura - ABETA revelou que a maioria das pessoas que busca viagens de aventura na natureza é motivada por um certo saudosismo, um resgate de experiências que tiveram na infância quando tinham um contato maior com a natureza.

Levar as crianças para natureza para vivências lúdicas certamente irá contribuir para que elas aprendam a amar a natureza e que sigam buscando montanhas pelo resto da vida.

Pela minha experiência pessoal, variar o cardápio de programas ajudou bastante a manter o Caynã estimulado. Às vezes íamos para algum sítio e ficávamos de preguiça lá, às vezes montávamos uma espécie de parquinho/treinamento em casa com os equipamentos, o que despertou nele o interesse em aprender a manusear aquela parafernália e em outras vezes íamos para a montanha. Vivemos próximos ao Parque Nacional do Itatiaia, picos como o Agulhas Negras e as Prateleiras me formaram montanhista e estão formando o Caynã também. As características peculiares das rochas do maciço do Itatiaia permitem muitas "escalaminhadas", o que é muito mais estimulante que uma caminhada e menos difícil e assustador do que uma escalada vertical, excelente para a criançada! Descubra onde fica a "escolinha" mais próxima de você e aproveite!

Um fator que contribui muito para o desenvolvimento técnico dos pequenos é a escalada indoor. Inscrever seu filho num ginásio de escalada pode ser bastante estimulante e trazer resultados mais rápidos na evolução dele. Melhor ainda se acompanhado de amigos, crianças têm uma natureza gregária e adoram ter parceiros da mesma idade no que quer que façam.

     
 

Garanta a segurança

Aqui vamos um pouco além de apenas "evitar experiências ruins". É essencial que você, como responsável por uma criança em áreas remotas, esteja preparado para evitar e tratar problemas relacionados à saúde e segurança dela.

O melhor a fazer é buscar treinamento especializado. No Brasil existem cursos de primeiros socorros em áreas remotas em diferentes níveis de aprofundamento, mas sempre bem direcionados à nossa atividade e bastante realistas em relação à disponibilidade de recursos que temos nas montanhas. Carregar um kit de primeiros socorros bem elaborado e conhecer particularidades médicas do seu filho também são essenciais.

Tão importante quanto o treinamento é ter um plano que envolve saber como sair rapidamente de uma determinada área em caso de emergência, ter contatos e informações dos hospitais e outros serviços de saúde disponíveis nos arredores, bem como saber chegar até eles, conhecer os perigos da área que pretende visitar. Use o bom senso para definir quanto risco está disposto a assumir com o seu nível de treinamento em primeiros socorros e seu conhecimento técnico de montanhismo/escalada. Baseado nisso e no nível de intimidade que a criançada está com o ambiente de montanha decida se determinada área é adequada ou se é melhor se preparar um pouco mais antes de se aventurar por ali ou ainda se é melhor contratar um profissional para acompanhar vocês na trip.

Por fim, mantenha-se capaz de ajudar. É muito fácil negligenciar sua própria segurança por estar tão focado no outro, mas você não vai poder ajudar se for mais uma vítima. Os acidentes normalmente acontecem pela somatória de pequenos descuidos, esteja sempre atento.

     
 

Capriche na seg!

Assegurar crianças em escaladas pode parecer simples, afinal, elas são tão levinhas, não é mesmo? A verdade é que existe um conjunto de particularidades em assegurar uma criança, a começar pelo equipamento.

Nunca improvise/adapte equipamentos de adultos para crianças, é imprescindível que eles utilizem sempre uma cadeirinha de formato e tamanho adequado; crianças menores e/ou menos experientes devem usar cadeirinha de corpo inteiro, que tem seu jeito especial de vestir e encordar ou usar um peitoral. O mesmo vale para o capacete, ele precisa ser adequado ao uso e no tamanho certo para cumprir seu papel, dê o exemplo e use capacete também (lembre-se de evitar pequenos descuidos e de que as crianças se inspiram nos pais).

Freios automáticos estão previstos para trabalhar com peso de adultos, crianças com menos de 20kg podem não ter peso suficiente para serem baixadas com um Grigri, por exemplo. Os pequenos normalmente têm dificuldade em por e tirar a corda de mosquetões e podem não conseguir tirar a corda (tensionada!) de uma proteção para progredir num top rope. Em escaladas de múltiplas enfiadas a melhor estratégia é entrar em cordada tripla em "A", dessa forma sempre haverá um adulto por perto auxiliando a criança. Crianças podem aprender a rapelar sozinhas e isso vai ajudar bastante em vias longas, mas sempre devem ter segurança de baixo (anjo) e não devem usar nós autoblocantes (autoblock, prussik) como back-up pelo risco de ficarem presas no meio de um rapel por não conseguir tirar a tensão no nó.

Cada coisa ao seu tempo

De 3 a 6 anos

Nos primeiros contatos com o mundo vertical o foco deve ser a autodescoberta da criança, o desenvolvimento do equilíbrio e da coordenação motora. Nada de exigir que siga uma via marcada no ginásio, movimentos precisos, que use sapatilha ou que aprenda a fazer nós. Apenas garanta a segurança e a diversão, você quer criar um ambiente lúdico, então estimule propondo jogos de escalada, crie algum frame (um ambiente de fantasia), mas não exija que a criançada "entre na sua onda", pois eles tendem a perder o foco rapidamente. Em acampamentos e caminhadas ainda é cedo para exigir responsabilidades, o ambiente incomum já traz suas novidades e aprendizados. Deixe por conta da mamãe natureza, apenas providencie conforto e segurança física e emocional. As palavras chave são: movimento, curiosidade, disposição, falta de concentração e imitação.

De 6 a 10 anos - competitividade

Agora eles têm alta atividade motora, se interessam por esportes, processam informações e conseguem distinguir os movimentos. A escalada começa a ganhar diversidade e a molecada mais "sangue no zóio" está pronta para entrar em competições. Ao ar livre eles já podem carregar suas coisas, ajudar a buscar água e preparar os sandubas. Não dispense essa valiosa ajuda!

De 10 a 13 anos - técnica e independência

Nesta fase a criança tem mais concentração, é uma boa hora para aprender teoria e lições mais mentais. Também é o momento de consolidar conhecimentos técnicos como fazer nós e entender para que servem, rapelar (agora eles têm alto controle do corpo). Ao ar livre é a hora de iniciar em paredes e fazer trekkings, eles têm necessidade de mover-se e disposição para se arriscar (cuidado!). Eles podem ajudar bastante no acampamento e na cozinha, além de carregar todos os seus pertences pessoais. Eles precisam participar ou vão morrer de tédio.

Dos 13 em diante - é hora de morfar

Chega aquela fase da adolescência... Têm menos impulso para mover-se, crescem rápido e ficam meio desajeitados nos movimentos, também ficam críticos e sua identidade passa a ser mais uma identidade de grupo do que pessoal. Portanto, é importante que tenham bons exemplos e motivação. É um crux, podem negar tudo o que aprenderam sobre montanha e escalada porque isso era coisa da infância e agora é hora de negar esta fase. Ao mesmo tempo é uma oportunidade de encontrar as pessoas/grupos/referências certos e se desenvolver muito no mundo da escalada. Acho que o papel dos pais é cuidar para que bons caminhos estejam disponíveis, porque a escolha da molecada agora está nas mão deles mesmos, não importa o que você faça.

 

Gráfico: Aprendizagem na infância (com enfoque na escalada) Precisa colocar as legendas dos eixos do gráfico também, sendo x: idade; e y: capacidade de aprender.
 

O tempo passa rápido!

Neste texto quis trazer um pouco sobre o que aprendi na pratica com meu filho ou lendo sobre montanhismo com crianças e procurei trazer informações verdadeiras, de fontes confiáveis. Mas não tome como regra tudo o que eu disse, da mesma forma que nenhum pai deve tomar como regra o que se diz por aí em livros de "como criar seu filho". Acredito que o foco na diversão, na confiança mútua, em fortalecer os laços, isso sim vai ajudar bastante. Então, simplesmente desfrute momentos especiais com seus filhos, não deixe para depois. Aventure-se, tenha histórias de aventuras na montanha para lembrar com eles, pois essas memórias vão ficar para sempre interligando vocês independente do venha pela frente. Have fun!

Aguardo comentários,
Vin�cius Maltauro

 
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