ANDRÉ DIB
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A cidade de Delfinópolis é ponto de partida para uma travessia inexplorada na Canastra,
coroada pela cachoeira mais impressionante do Parque
 
 
27/11/2009 - 17h16 - Matéria publicada na Revista Aventura & Ação n°154
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  OLHOS ATENTOS A Canastra chama atenção pela vastidão, tão surpreendente quanto a biodiversidade sutil, que se mostra para os olhos atento.
Foto: André Dib
   
 
  CASCA D´ANTA Maior queda do Rio São Francisco, despenca em incríveis 186 metros, anunciados a quilômetros de distância por um barulho intenso.
Foto: André Dib
   
 
 
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Ouvindo o ranger das molas do jipe, enquanto subíamos pela Serra Preta em direção ao começo da trilha, sentíamos o vento levar as nuvens, descortinando a paisagem vista do alto. O frio na barriga, que antecede toda a jornada, era iminente. Sabíamos que a Serra da Canastra, apesar de muito visitada, escondia um percurso pouco conhecido. Viajávamos à procura de espaços inexplorados e aquele seria o cenário ideal.

Delfinópolis foi o ponto de partida para a travessia que eu e a Cassandra, minha companheira, vínhamos programando há algum tempo. Munidos com nossas mochilas cargueiras, partimos para o começo da jornada. A subida íngreme que costeia a Serra é chamada pelos nativos de "Escada de Pedras", antigo caminho de cavaleiros que liga o município ao vale da Gurita. O local faz parte de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), no “Complexo Paraíso".

A trilha avança por entre rochas e cactos, que compõem pequenos jardins sobre o cenário rupestre. Marcas de pneus de motos tornam-se evidentes. Motoqueiros mal-educados insistem em invadir a área particular a contragosto dos moradores, que travam uma batalha exaustiva contra o crime ambiental. As trilhas de moto, nesse sistema frágil, comprometem diretamente o desenvolvimento de algumas espécies de plantas, dilacerando as rochas, sulcando a terra, abrindo caminho para as enxurradas e condenando o solo à erosão.

Apesar do mau-trato, a natureza ainda é soberana por ali. Só não sabemos até quando. Após o primeiro obstáculo vencido, caminhamos no alto da Serra Preta até avistarmos a Serra do Cemitério, que se destacava na paisagem e nortearia nosso rumo a partir dali. Começamos a descida por pequenas trilhas e caminhos indistintos, até atingirmos um poço de coloração esverdeada. Após o deleite nas águas tranquilas, seguimos nosso rumo atravessando uma pequena escarpa da própria Serra Preta, chamada de Serra da Furna, até atingirmos o Vale da Gurita, que entremeia as duas grandes serras.

De volta à trilha, passamos por uma pequena igrejinha conhecida como Itajuí, chegando ao Rio Babilônia exauridos e castigados pelo sol. Após um bom banho e alguns minutos de descanso, descobrimos que estávamos munidos por uma energia secreta que nos colocou, novamente, a caminho do nosso destino. Cruzamos algumas casinhas e partimos em busca da trilha que passa por um antigo cemitério de pedras, usado no passado para enterrar pessoas mortas por doenças infectocontagiosas.

O muro de pedras, construído sem qualquer tipo de argamassa já está tomado pelo capim alto e rodeia algumas lápides de pedra guardadas por uma grande cruz de madeira carcomida, criando uma atmosfera lúgubre e taciturna. Voltamos à trilha rapidamente. O caminho, agora com um desnível acentuado, não continha o nosso ritmo, pois teríamos que chegar ao ponto de pernoite antes do crepúsculo. Subimos o escarpado rochoso margeando abismos vertiginosos até alcançar o alto da serra. Após o acampamento pronto, e já guiados pelas lanternas frontais, fomos preparar nossa comida e curtir aquele céu que só enxergamos quando deixamos de lado nossas feições urbanas e buscamos paisagens longínquas repletas de paz e silêncio.

Levantamos aos primeiros raios de sol e após a organização das mochilas seguimos para a Casca D’anta, nosso destino final. Seguimos por um caminho marcado que nos guiava pelo meio do chapadão, desviando de algumas depressões. Já a nossa esquerda, avistamos a Serra da Canastra em toda sua magnitude, e mais a oeste, vislumbrávamos o Chapadão do Zagaia, que possui esse nome por causa de uma antiga fazenda que serviu de cenário para uma história marcada pela avidez humana.

Uma história escrita com sangue

Próxima à Vila de Desemboque, ficava o casarão da fazenda, que servia de estalagem para tropeiros e mineradores que ali se hospedavam. Zagaia era uma armadilha composta por uma roda de madeira repleta de lanças de ferro, postada em cima da cama dos hóspedes e camuflada por um forro de palha. Quando o viajante se deitava para dormir, o proprietário da fazenda soltava a armadilha matando o viajante desprevenido para ficar com todos os seus pertences. Certa vez, um peão presenteou uma escrava da fazenda com um rolo de fumo-de-corda. Sensibilizada com o agrado, a escrava alertou-o da possível emboscada. O boiadeiro se escondeu em outro canto do quarto, e quando o proprietário da hospedaria soltou a zagaia e entrou no quarto para roubar seus pertences, foi surpreendido pelo peão que o matou, acabando com uma série de assassinatos misteriosos que havia por aqueles lados. Os moradores contam com pesar e com um bocado de medo a história da antiga fazenda. A sede ainda existe em ruínas e fica dentro do Parque, os mais velhos não gostam de passar por ali.

Seguimos pelo Chapadão sobre um sol escaldante, e quando nossa água começava a faltar, achamos um córrego de água cristalina, onde restabelecemos os ânimos para a reta final. A partir desse ponto, o campo limpo começou a se erguer suavemente e dar vazão a estranhas rochas que afloravam do cerrado; começamos a buscar a visão da Canastra onde sua forma final define o nome da serra majestosa. Chegamos próximo a Casca D’anta ao cair da tarde, e deixamos o terceiro dia para coroar a travessia nas águas da cachoeira. Para descrevê-la em toda sua opulência, tomo emprestadas as palavras de Saint-Hilaire, tiradas do livro “Viagem às Nascentes do Rio São Francisco”:

"Embrenhamo-nos na mata e dentro em pouco começamos a ouvir o barulho da cachoeira. Pelas informações que me tinham dado havia poucos instantes, eu sabia que ela se despencava do lado meridional da Serra da Canastra. De repente, avistei o seu começo e logo em seguida pude vê-la em toda a sua extensão, ou pelo menos o máximo que podia ser visto do ponto onde nos achávamos. O espetáculo arrancou de José Mariano e de mim um grito de admiração."

 
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