Extremos
 
COLUNISTA RAFAEL DUARTE
 

Imensidão

 
texto: Rafael Duarte
8 de maio de 2018 - 09:10
 
Rafael Duarte com o Lo Lha e o Everest ao fundo.
 
  Roberta Abdanur  

Hoje completo um mês fora de casa, imerso na vida aqui do Himalaia. Cada dia é um aprendizado e ao mesmo tempo uma prova de resistência. Viver tanto tempo em um ambiente extremo transforma nosso jeito de agir e pensar. Parâmetros mudam, valores sobem à tona e novos comportamentos inundam a nossa rotina. Não tem ninguém aqui de bobeira, ou com aquele semblante blasé de férias. Cada um tem uma missão aqui.

Enquanto o foco de cada um está firme em suas tarefas, comportamentos interessantes de autoconhecimento corporal e mental pautam a maior parte do dia de cada pessoa. Não tem ninguém 100%. Seja uma dorzinha, uma tosse, algo que incomoda, um cansaço, um humor ácido, uma sensação estranha. Ficar muito tempo acima dos 5 mil é uma tarefa árdua. Aquele cortezinho no dedo que normalmente demoraria 2 dias para cicatrizar, levam 10 para melhorar um pouco, mas ainda longe da cura.

A saudade que bate forte de certa forma vai transformando a dor em amor. A distância ao mesmo tempo que faz esquecer o que não vale a pena, solidifica laços perenes. É esta saudade que faz a gente lembrar daquilo que realmente amamos e dá a força para seguir em frente, fazer o que se tem que fazer, e voltar bem para matar a saudade - a melhor parte do retorno. Enquanto isso, vamos absorvendo o aprendizado intensamente e entendendo a importância de cuidar bem de si. Aproveitando os pequenos novos prazeres. Como trocar uma meia molhada por uma seca, conseguir tomar um banho com água e sabonete, passar uma noite sem acordar com frio, degustar cada gole de um café coado ou conseguir receber de alguém um gesto genuíno de amizade.

Minha missão a esta altura vai amadurecendo junto comigo. Sinto um crescimento vertiginoso em tempo real. E por falar em tempo, venho pensando muito nisso. Na forma que o tempo tem e de que forma navegamos nele. Percebi ao longo destes anos de expedições que gosto de sentir e perceber a noção de tempo mudar. E ver como ele funciona diferentemente para pessoas, comunidades, animais, florestas, rios e mares. Quando percebo estas nuances de tempo, talvez alcance um pedaço do nirvana. É um tipo de meditação. Estar imerso na natureza me coloca neste plano. Um lugar em que me permito transcender e sair do modus operandi do egoísmo urbano. Em que o status quo se mede por conforto. Não necessariamente por felicidade.

Everest ao fundo e na parte inferior o Campo Base.   Roman Romancini e Rafael Duarte no Campo Base do Everest
   

Viver estes dias no Himalaia me permitiram mergulhar em vários universos. Seja executando a minha tarefa profissional, seja vivendo como um ser humano em ambientes extremos. A câmera para mim funciona como uma máquina do tempo. Brinco de fazer o tempo parar. Consigo me imaginar em um mundo diferente assim como crio meus próprios mundos com as imagens que coleciono.

Tenho cruzado caminhos colossais e repletos de belezas abundantes e de notas singulares. Quando faço algo que dá certo ou que vale a pena, me sinto pleno. Como se conseguisse fazer a minha alegria pessoal transbordar no meu trabalho, e vice-versa. Agora falta pouco. Mas aproxima-se o momento mais crítico. Ventos fortes sopram agora nas altas montanhas acima de 7 mil, enquanto descansamos, respiramos mais e nos recuperamos a 3.900m. Na semana que vem, quando a janela de bom tempo permitir que os alpinistas aclimatados tentem alcançar os 8.850m do cume do Everest, muita coisa vai acontecer. Para o bem e para o mal. Sinto que serei uma testemunha ocular deste fenômeno que é a paixão pelo montanhismo e a forma poderosa que isso impacta na vida de tantas pessoas. Inclusive na minha.

Passado este momento fatídico, será hora de rumar para o lar, onde mora o amor. Lá perceberei que algo mudou. Tudo isso daqui será digerido. Provavelmente ainda por muitos e muitos anos.

Obrigado!
Rafael Duarte

 
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