Extremos
 
COLUNISTA PEDRO ALEX
 
Armadilha de gelo
texto: Pedro Alex
24 de outubro de 2017 - 10:00
 

Escalada Urus.
 
  Pedro Alex  

Cada passo é difícil no ar rarefeito. A ausência de oxigênio cobra caro. Os pensamentos são dispersos e lentos. Um mundo onírico eclipsa o outro mundo que ficou embaixo, a vida normal. O excesso de conforto me incomoda. É sempre necessário sair, mudar a posição do corpo ao deitar, sentir frio, comer o que tiver, ver as estrelas. Um estilo de vida simples torna mais fácil ter a compreensão do quão diminutos e gigantes somos, ao mesmo tempo. Um passo em falso pode acabar com a beleza dessa oscilação. Olhando da porta da nossa barraca no acampamento base do vale Inshinca, o Tocllaraju, um nevado de 6038m, impera e seduz com suas silhuetas o olhar daqueles que se instalam nessa puna.

A sequência de aclimatação já estava completa, caminhadas de aproximação, dois cumes de cinco mil (Ishinka, 5550m; Urus, 5450m), um dia de descanso no meio e a aproximação ao acampamento Moraina do “Toclla”, já a cinco mil metros de altitude, nas bordas do glaciar, para tentar seu cume na madrugada seguinte. Impossível não estar ansioso. Como toda paixão, o medo é intrínseco. Além da altitude, essa escalada apresenta alguns trechos mais expostos e técnicos, A rota normal é graduada como difícil (D). E se não bastasse, ela também tem fama de ser caprichosa e faminta: muda constantemente em função da abertura de gretas e são raras as temporadas em que não há algum acidente grave ou fatal em seus flancos.

Foram cinco dias entorpecido pela visão desse nevado, cinco dias planejando estar no seu cume e regressar para contar. Agora estava no seu colo, sentindo o vento gelado que assoprava em sentido ao vale; perplexo com a paisagem, o frio, as estrelas, a escuridão, glaciares, seracs, a pequenez humana diante de toda aquela imensidão. Após uma boa refeição observávamos o entardecer, depois nos retiramos para a barraca – eu e Rafael Serejo, meu companheiro de cordada e de empreitada. Nas duas primeiras montanhas que subimos fomos sozinhos, sem guia. Nessa, diante de nossa inexperiência, achamos prudente contratar um. Ansiosos e vislumbrados com toda a experiência em curso, tentamos nos distrair por algum tempo assistindo os vídeos que havíamos feito nas ascensões anteriores e aos poucos conseguimos dormir.

Subida acampamento moraina Toclarajo.   Escalada Urus.
 

Meus sonhos se confundiam com o som assustador das avalanches caindo, o vento aumentou e logo veio uma nevasca forte o suficiente encobrir toda nossa barraca com uma quantidade considerável de neve. Mantive a calma, pensava que era apenas uma tempestade noturna que iria passar rápido e dar lugar a uma linda noite de céu estrelado. Despertamos a meia noite e começamos a nos arrumar, quando Fred, nosso guia, se aproximou da barraca e sugeriu que esperássemos mais uma hora para avaliar melhor a condição climática. O céu ensaiava algumas estrelas tímidas. Eu tinha certeza que, ainda que atrasados, teríamos condições de tentar a ascensão.

Peguei no sono novamente, dessa vez intenso e real. Poucas vezes desde que meu avô morreu recebo sua visita enquanto durmo. Ele apareceu mais real do que nunca, com seu sorriso brincalhão no rosto. Batemos um longo papo. Apesar de ter sido um sonho tranquilo, acordei suando e sem lembrar nada do que ele disse. Esse despertar foi embalado pelo estrondo de uma avalanche que caiu perto de nós. O barulho deixa evidente a força daquele lugar, daquela montanha. Mesmo sabendo que a zona de acampamento é segura, o som de uma avalanche é assustador. Pequeno, me retorci no saco de dormir. Difícil aceitar a impossibilidade de subir.

Escalada Urus.   Acampamento moraina.
 

Daniel, o chefe da expedição, deu a decisão final – não subiríamos. Com sua experiência, sem consultar muito o clima, ele ainda prefere sua intuição para decidir. Como me confessou tomando uma cerveja “não sei como sei, a montanha às vezes fala comigo, eu tento escutar”. Filho de um porteador que trabalhou para as primeiras expedições que vieram desbravar os cumes da Cordilheira Blanca, foi incentivado desde cedo por seu pai a ser guia. Não era uma questão de subir montanhas para “conquistar o inútil”, mas sim para trabalhar, tirar dela seu sustento, assim como seus ancestrais faziam a milhares de anos. Se adaptaram a viver em uma zona austera, tratando essas curvas da cartografia com respeito referencial de um deus ambíguo: produtor da vida e da morte. Daniel tem sua família para criar, ela é mais importante que a sede de seus clientes pelos cumes, assim como essa mesma sede é responsável pelo ganha pão de Daniel. Linha estreita.


Subida Vallunarajo.
 

Nos conformamos com sua decisão. Escalar não é apenas chegar ao cume, mas, sobretudo, estar na montanha. Conhecer seus caprichos, nossos limites e o momento exato que é possível se movimentar pelos seus enigmáticos flancos. Pela manhã, a montanha continuava encoberta, a paisagem do vale havia se transformado, muita neve havia caído aquela noite. Desde que chegamos no vale do rio Ishinca, foi a primeira vez que a montanha estava encoberta de névoa e nuvens. Um claro sinal.

Regressamos para Huaraz, descansamos um dia e fomos escalar o Vallunaraju (5.685m). Uma escalada incrível. Dessa vez o clima foi generoso. Uma noite estrelada, um amanhecer de cores e traços únicos. Ao chegar ao cume, os vários picos que compõem a Cordilheira Blanca nos rodeavam imponentes, imóveis, vazios – como nossos sentimentos pela paralisia do ar rarefeito. Ao fundo, o Tocllaraju (que em Quechua significa armadilha de gelo) estava limpo, calmo, parecia que sorria. Agradeci aquele momento, que bela lição. No próximo ano eu volto – não desisto facilmente das minhas paixões.

O guia Fred contornando a greta que dá acesso a aresta final.   Greta Vallunarajo.
 

Se tiverem interesse em saber informações sobre trekkings e escaladas em Huaraz, podem me contatar no email: pedroalex_rv@hotmail.com


Descida Vallunarajo.
 

Um forte abraço,
Pedro Alex

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