Extremos
 
COLUNISTA MÁRCIO BORTOLUSSO
 
Conheça uma Patagônia inóspita
 
Texto e fotos: Márcio Bortolusso
4 de maio de 2015 - 17:05
 
Márcio e os demais integrantes da expedição fotográfica pelo Estreito de Magalhães e pela Terra do Fogo.
 
 
  Márcio Bortolusso  
“Para a minha sorte este dócil mamífero marinho que pesa dezenas de toneladas, com uma manobra rápida, mergulhou a apenas um metro da minha embarcação e cuidadosamente poupou-me de ser nocauteado por sua larga e poderosa cauda. Equilibrando-me entre a espuma que engolia parte do meu caiaque ainda pude apreciar o seu majestoso corpo deslizando abaixo de mim, ao lado de um filhote que vibrava em tons de verde através de águas claras. Cena inesquecível de um dia mágico, interagindo com várias baleias jubarte, um dos mais espetaculares animais que eu já fotografei. E a minha viagem pelo “extremo sul” estava só começando!”_ Márcio Bortolusso

Já tive o privilégio de vivenciar a Patagônia em outras oportunidades – pedalando ou correndo como Cinegrafista-Atleta em duras Corridas de Aventura cruzei três vezes os Andes por zonas selvagens (e outras quatro com “motor”), remei entre baías e canais agitados no Pacífico, sobrevoei vulcões com helicópteros, percorri seus cartões postais (Torres, Chalten, Perito Moreno, etc.) e até caronei por milhares de quilômetros na caçamba de velhos caminhões –, mas esta travessia marítima pelo mítico Estreito de Magalhães e pelos fascinantes glaciares e fiordes da Terra do Fogo me surpreendeu.

Diferente do formato extremista que estou acostumado, esta trip mesclou o sabor da Aventura com uma boa dose de conforto e segurança. À convite da Slowtravelers, especialista em propostas diferenciadas para experiências personalizadas, acompanhei um grupo de fotógrafos iniciantes, amadores e avançados em uma Expedição Fotográfica perfeita em seus detalhes. Para quem se animou a conhecer a ponta sul das Américas por conta dos belos cenários da nova novela da Rede Globo, gravada em locações populares da cidade de El Calafate (centenas de quilômetros ao norte), garanto que esta viagem vai além, muito além, com uma logística cuidadosamente desenhada para observação da fauna marinha em uma das regiões mais remotas, pouco conhecidas e preservadas do planeta.

     
     

Logo ao embarcar na chilena Punta Carrera, uma das comunidades mais austrais do planeta, senti uma profunda imersão na singular história desta simbólica região, tão intensa que em certas alvoradas tive a impressão que ao cruzar algum cabo iria ser surpreendido pela esquadra do lusitano Fernão de Magalhães, o primeiro europeu a explorar o estreito que leva o seu nome. Após o reconhecimento de milhares de quilômetros da costa brasileira e argentina, no dia primeiro de novembro de 1520 o navegador descobriu esta grande passagem marítima que por 570 quilômetros liga os oceanos Pacífico e Atlântico, durante a sua tentativa da primeira circum-navegação do globo.

Passei diante de monumentos históricos como o Forte Bulnes, marco da colonização das solitudes austrais, e cruzei pontos emblemáticos como o temido Cabo Froward, o ponto mais meridional do continente americano, batizado em 1587 pelo corsário inglês Thomas Cavendish, o mesmo que atacou e levou terror a vários povoados da costa brasileira. Seu nome - “hostil”, “intratável” - provém das duras condições enfrentadas pelo pirata ao dobrá-lo.

Triste capítulo da história patagônica, conheci as ruínas da Sociedade Baleeira de Magalhães, que entre 1905 e 1916 chacinou cerca de 3755 baleias, além do farol San Isidro, o mais austral do continente, construído em 1904, e vários pontos visitados pelo naturalista Charles Darwin durante a sua épica jornada pela região.

Percorri grandes distâncias diariamente, até 200 quilômetros em 17 horas, às vezes com bom tempo ou navegando sob tempestade. No enorme canal Almirantazgo, meu barco foi castigado com fortes ondas, chuva e ventos que segundo os instrumentos de bordo ultrapassaram os 80 quilômetros por hora. Temendo que eu fosse arrastado sob a fúria da natureza, o Capitão apenas me permitiu ficar sozinho no convés após eu prometer a um dos seus marinheiros que trabalharia com os braços fortemente engatados na murada. Roupas impermeáveis com Gore-tex me deram energia para resistir a um gélido açoitamento que mal me permitia abrir os olhos, porém sem tempo de proteger a minha teleobjetiva não tardou para eu perdê-la para o "céu das lentes". Mas foi um dia incrível, misto de adrenalina e beleza, imponência e fragilidade.

     
     

Durante uma semana segui por entre ilhas coroadas com altos cumes nevados, ladeados pelo verdejante bosque subantártico, e por estreitos canais como o Gabriel, decorado com altas cascatas de degelo que despencavam por centenas de metros de vertiginosas muralhas rochosas. Em alguns dias, após pernoitar em paradisíacas enseadas, caminhei aos pés de glaciares de um azul sublime e até a base de cadeias de montanhas excepcionalmente imponentes e selvagens, raramente visitadas, com cumes virgens e inúmeras zonas intocadas. Tudo incrivelmente protegido pelo Parque Marinho Francisco Coloane, que faz parte da Reserva Nacional Alacalufes, e pelo Parque Nacional Alberto de Agostini, que integra a inóspita Reserva da Biosfera do Cabo Horn, áreas de conservação que resguardam as milhares de ilhas e ilhotes que compõem a vastidão do Arquipélago da Terra do Fogo.

Registrando espetaculares desmoronamentos ou remando entre milhares de blocos de gelo até alguns dos glaciares dos fiordes Hellado, Parry e Serrano, no total avistei ou visitei cerca de quinze geleiras, a maioria no emaranhado de canais e fiordes que se estendem aos pés da majestosa Cordilheira Darwin, que abriga um dos maiores campos de gelo do mundo.

Sempre encoberto pelas nuvens, não consegui vislumbrar o icônico Monte Sarmiento - nas palavras de Darwin “o mais sublime espetáculo na Terra do Fogo", tema do filme brasileiro Extremo Sul, imortalizado em novelas de Jules Verne e nos livros do padre italiano Alberto Maria de Agostini, um dos maiores exploradores do século XX. Mas foi altamente recompensador documentar os magníficos e pontiagudos cumes da Cordilheira Sella, como os belíssimos montes Buckland, Aosta e Giordano, segundo o experto guia Francisco Vidal: “tan hermosos como las famosas montañas de Torres del Paine!”

Tornando a experiência ainda mais memorável, logrei extraordinários encontros com alguns encantadores espécimes da rica fauna foguina, como divertidos pinguins de Magalhães nas Ilhas Tuckers, enormes elefantes-marinhos-austrais na maior colônia reprodutiva do Chile e um dos últimos exemplares de foca-leopardo da Patagônia.

     
     

Mas sem dúvida a baleia-jubarte foi o destaque da viagem, em um dos momentos mais especiais da vida de todos os presentes, por mais de duas horas pude interagir em proximidade inacreditável com uns doze exemplares. O extasiado grupo de fotógrafos se dividiu em dois botes infláveis motorizados e eu, após apresentar as devidas credenciais diante das fortes correntes que comprometiam uma remada totalmente segura, enfim fui autorizado pelo Capitão a entrar na água com um caiaque, o que me proporcionou momentos ímpares de emoção com um dos seres mais belos e amados do planeta. Apesar de quase ser atropelado por algumas baleias acidentalmente, a docilidade destes animais é apaixonante e me senti o cara mais feliz e sortudo do mundo. Para tornar o dia ainda mais especial, dezenas de simpáticos lobos-marinhos nadavam curiosos ou faziam malabarismos ao meu redor.

Para encerrar, como parte do trabalho de valorização do segmento que tanto amo, dentre outras apresentações a bordo, ministrei aos fotógrafos e demais amantes das imagens que compunham o nosso amigável grupo a palestra “Imagens de Montanha e a documentação de Aventura e Natureza em expedições e áreas remotas”.

Existem alguns lugares que após sentir suas vibrações, ouvir seus sons, galgar as irregularidades do seu solo e tocar suas variadas formas jamais sairão das nossas mentes. Após quase mil quilômetros navegados, vivendo incontáveis momentos exageradamente especiais, registrando áreas primitivas imutáveis há milênios, sem avistar qualquer outro ser humano além do meu barco, meu corpo enfim regressou para a minha amada Ilhabela... apenas meu corpo!

* Viva este sonho! Aos privilegiados que quiserem viver esta inesquecível experiência, programem-se, pois em 2016 tem mais: www.slowtravelers.com.br

     
     

Márcio Bortolusso é documentarista de Aventura, Natureza e Cultura Regional (www.photoverde.com.br) e aventureiro patrocinado pelas marcas norte-americanas Gore-tex e Windstopper e apoiado pela Outex.

 
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