Extremos
 
COLUNISTA MANOEL MORGADO
 
Um pequeno relato de um grande resgate
 
texto: Manoel Morgado
2 de junho de 2018 - 10:15
 
Kathy Gonzalez durante o nosso trekking em uma floresta temperada intocada
 
  Manoel Morgado  

Em 1989, quando deixei o Brasil em busca da vida que sonhava ter, meu primeiro destino foi justamente aquele que em 1983, na longa viagem de dois anos pelo mundo, tinha me impressionado mais, o Nepal. Estava sozinho, tinha dinheiro para viajar de forma muito econômica por dois anos e tinha total liberdade de escolher o que queria fazer.

Após alguns dias em Katmandu, tomei um ônibus para Jiri onde terminava a estrada em direção leste e onde começava a trilha rumo ao campo base do Everest. Nos próximos 30 dias explorei diversos vales, encontrei pessoas maravilhosas, vi paisagens deslumbrantes. Mas, ao final deste mês ainda não tinha saciado minha vontade de caminhar pelos Himalaias. Fiquei sabendo então de uma trilha que saia de Lukla e que chegava dez dias depois a Tumlingtar, um pequeno vilarejo a leste do Nepal às margens do Rio Arun que desce de sua nascente nos glaciares do Makalu, a quinta mais alta montanha da Terra. Era uma trilha quase desconhecida e com estrutura de hospedagem basicamente inexistente. Era exatamente o que eu buscava.

Nesses 29 anos desde que fiz esta trilha sempre tive vontade de refazê-la já que minhas memórias dela eram de um lugar com natureza intocada, sem outros estrangeiros e com lindos vilarejos. Desde aquele trek voltei 65 vezes ao campo base do Everest guiando meus grupos, mas nunca tive a oportunidade de fazer este trekking de Lukla a Tumlingtar que tanto havia me impressionado. A oportunidade apareceu agora, entre um grupo ao campo base e outro ao cume do Kilimanjaro, a mais alta montanha da África. Ou melhor, não é que apareceu a oportunidade e sim que eu fiz com que ela acontecesse. Como em agosto vou guiar a escalada do Muztagata, uma montanha na China com quase 7600 metros, eu tinha de treinar e treinar muito. O grupo que guiarei é bastante forte e eu como guia tenho de estar mais forte do que eles. Então unindo essa necessidade de treino com a grande vontade de refazer este remoto trek parti acompanhado da Kathy para 17 duros dias de muito sobe e desce por montanhas raramente visitadas. Para minha grande felicidade, nesses 29 anos pouca coisa mudou nesta região. As florestas ainda estão virgens, os vilarejos se mantem de forma tradicional e as pessoas ainda extremamente hospitaleiras.

A viagem começou com um voo de 45 minutos de Katmandu a Tumlingtar que, como seria de se esperar, saiu com um atraso de 2 horas. Como o trek começa a uma altitude muito baixa, 600 metros e estamos em um dos meses mais quentes do ano tinha esperança de poder começar cedo a caminhada, mas não foi isso que aconteceu. Neste primeiro dia o calor nos castigou terrivelmente e no fim, por conta disso, resolvemos fazer um dia mais curto, de apenas 10 quilômetros, ganhando 600 metros de altitude. Nossa acomodação não poderia ter sido mais básica, um pequeno quarto de não mais de 2 por 2 metros tendo como janela uma cortina que dava diretamente para a pequena rua de terra batida do vilarejo. Mas, não podíamos reclamar, foi exatamente em busca disso que viemos, rever um Nepal que nas trilhas tradicionais como a do Everest ou do Annapurna não existe mais.

Lindo monastério cercado de árvores   Típico vilarejo na região mais baixa da trilha com plantação de arroz em terraços
Família que nos convidou para almoçar no meio da trilha   Ponte precária.
 

Para fugir do calor no dia seguinte acordamos muito cedo e as 5:30 da manhã já estávamos caminhando após um café da manhã de miojo com ovos. Neste dia subimos 1500 metros e descemos ao redor de 600 e este foi o padrão nos próximos dias. A cada dia íamos dormir cansados, mas extremamente felizes com as experiências que havíamos vivido. Acompanhamos um casal de noivos que acabavam de casar e que caminhavam pela mesma trilha que a nossa por duas horas até sua casa, brincamos com crianças que todos os dias subiam e desciam centenas de metros até a escola, fomos convidados a almoçar por pessoas que eram muito pobres, mas ainda assim nos receberam. Enfim, o trek estava lindíssimo...., mas, no oitavo dia descíamos a encosta de uma montanha super íngreme após uma chuva torrencial que havia durado toda a noite. Era uma longa escadaria de pedras escorregadias entre uma floresta fechada. Eu estava um pouco a frente da Kathy quando ouço um grande grito de dor. A Kathy havia escorregado e caído sobre seu tornozelo esquerdo. Lhe ajudei a tirar a mochila pesada que carregava, tentei acalmá-la e tirei com cuidado sua bota temendo o pior, mas ao examinar pude ver que possivelmente não havia fratura. Apesar do alívio por achar que não era muito grave ao olhar onde estávamos comecei a pensar o que iríamos fazer. Havíamos descido 600 metros desde a última vila que consistia em 3 casas e estávamos a outros 300 metros de descida até uma ponte seguido de 600 metros de subida até o próximo pequeno vilarejo. Para todos os lados que olhava não podia ver nenhum lugar minimamente plano para o pouso de um helicóptero de resgate. E sabia que não haveria nenhuma possibilidade da Kathy continuar o trekking.

Casal de noivos que encontramos na trilha   Plantações de arroz na parte mais baixa do trekking
Típica tea house o precursor dos lodges modernos   Criança brincando de carregar a mochila da Kathy… 18 quilos!!!
 

Por sorte estávamos a poucos metros de uma pequena casa e subi para conversar com os donos e perguntar se podia trazer a Kathy para lá enquanto pensava no que poderia fazer. Com a típica atitude dos nepaleses, um dos povos mais especiais deste planeta, não só concordaram, mas também me ajudaram a levar as mochilas enquanto eu carregava a Kathy até lá. Dois minutos depois já nos traziam duas xícaras de chá e me ofereciam seu telefone para chamar meu operador em Katmandu. Mas, antes de chamá-lo novamente olhei ao meu redor para pensar o que poderíamos fazer. A situação parecia sem solução. Desci pela estreita trilha por 200 metros verticais para ver se encontrava algum terreno plano, mas nada. Apenas umas pequenas plataformas com plantações de trigo, mas nenhum grande suficiente para um pouso.

Antes da existência de resgate por helicópteros o normal nas trilhas do Nepal era que 3 carregadores se alternando levassem nas costas o paciente. Mas, no lugar onde estávamos só havia um homem. Eram 11 da manhã, o tempo estava fechando e mesmo sem ter uma solução resolvi ligar para o Sunir em Katmandu, uma das pessoas mais eficientes que conheço. Para minha grande surpresa ele me disse que tinha um amigo que era desta região e iria ver se ele podia nos ajudar. Como que por magia, meia hora depois aparecia um jovem sherpa dizendo que era amigo do amigo do Sunir!!! Não podíamos acreditar!! Nos disse que 300 metros abaixo de onde estávamos havia uma casa com uma pequena área gramada que ele achava que era grande o suficiente para o pouso do helicóptero. Desci com ele até lá, conversamos com a dona da casa e ela autorizou o pouso no pequeno gramado dela. No centro do gramado que não era maior do que uns 7 por 7 metros havia uma vara com bandeiras budistas como é o costume nesta área. A dona disse que poderíamos tirar e pronto, tínhamos um lugar de pouso. Liguei novamente para o Sunir e ele entrou em contato com nossa seguradora, a World Nomads, e eles me colocaram em contato com o seu médico. Me identifiquei como médico, expliquei a situação e ele autorizou imediatamente o resgate. Voltei até onde a Kathy estava e com a ajuda do sherpa a carregamos nas costas trilha abaixo, eu pisando com cuidado a cada passo e o sherpa, com a habilidade de uma cabra montanhesa correndo trilha abaixo com a Kathy nas costas.

Crianças fascinadas com fotos do mundo   Dormitório em típica tea house
Casal de noivos caminhando com mala e tudo na trilha rumo a sua futura casa   Helicóptero pousado em uma área mínima
Rio Arun   Aeroporto de Tumlingtar
 

Uma hora depois o helicóptero circulava a área que havíamos marcado com uma colcha vermelha e com a fumaça de uma fogueira de ramos de árvores. A habilidade do piloto foi incrível, no pequeno espaço disponível fez o pouso sem titubear. Apesar de ganharem muito menos do que em seus países de origem, experientes pilotos europeus, americanos e australianos vem trabalhar no Nepal em busca do desafio de voar e fazer resgates nas montanhas mais altas do planeta. Uma hora depois estávamos na excelente Ciwec Clinic em Katmandu onde após um raio X se confirmou o diagnóstico de uma entorse do tornozelo e nada mais grave.

Além de ter uma das paisagens de montanha mais espetaculares do planeta, de um dos povos mais hospitaleiros, de uma cultura rica o Nepal ainda oferece uma estrutura de apoio aos trekkings digna de elogios., mesmo em lugares remotos como o que estávamos.

Claro que estávamos tristes com o acidente e com o fato de termos de interromper nosso lindo trekking, mas também extremamente gratos às pessoas que nos ajudaram de forma tão desinteressada. Ficou a grande vontade de em breve voltar a esta região para concluir nosso trekking.

Nasmatê
Manoel Morgado
www.morgadoexpedicoes.com.br

 
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