Extremos
 
COLUNISTA MANOEL MORGADO
 
Recomeçando o aprendizado
 
texto e fotos: Manoel Morgado
21 de junho de 2016 - 15:10
 
Three Sisters em Carriacou
 
  Manoel Morgado  

No dia combinado o Curtis chegou com sua esposa Therese e imediatamente senti que não haviam passados quase 10 anos desde que nos vimos pela última vez. Nos próximos dias pude confirmar que tinha feito a escolha correta. Ele é muito simpático, brincalhão e extremamente paciente.

Nos mudamos para uma casa maior com dois quartos, mas novamente muito agradável com os planos de ficar lá por apenas 3 dias e em seguida sair com o barco rumo a Grenada que fica há 24 horas de vela daqui se fôssemos diretamente, mas os planos eram de velejar algumas horas por dia fazendo o curso e parar a caminho em St. Lucia, St. Vincent, Granadinas e finalmente ao redor do dia 20 de maio chegar a Grenada já que o voo do Curtis de volta a Panamá é dia 21.

Dia 9 nos mudamos para o veleiro com a ideia de começar a velejar, mas nada foi como o previsto. Para abreviar uma longa história, os atrasos foram se acumulando a cada dia por conta do barco estar hipotecado a um banco francês mas pertencer a uma empresa de charter também francesa e estar sendo vendido para mim. Estão envolvidos neste processo o banco, o dono da empresa de charter (em Paris), o corretor da empresa de charter, o gerente da empresa de charter aqui em Martinica, o meu corretor em Miami, a agente que está organizando a transferência da bandeira do veleiro da França para os Estados Unidos e a agente da empresa de escrow. Leis americanas, leis francesas e eu no meio disso tudo entendendo muito pouco o que cada um está exigindo do outro e o que o outro não está muito feliz em providenciar.

Por grande sorte nossa o gerente daqui, Mr. Alain é uma pessoa extremamente generosa e paciente e resolveu nos ajudar. Nos ofereceu que fizéssemos um contrato de charter do meu próprio barco (que ainda não era meu) sem custo e com isso pudemos sair para cinco deliciosos e muito produtivos dias de vela na costa oeste da Martinica.

No primeiro dia planejamos sair mais ou menos cedo, mas, claro, mil coisas apareceram e no final saímos as 16 horas e ancoramos quase ao lado da marina, uma distância de apenas 2 milhas. Acho que estava tão emocionado e ao mesmo tempo estressado com a primeira saído com o barco que pouco me lembro do que aconteceu. O Curtis conduziu o veleiro e eu e a Kathy pouco fizemos. Nos próximos dias fomos assumindo cada vez mais funções até que no último dia fizemos basicamente tudo desde planejar a rota, levantar âncora, manobrar fora da baia, e velejar. A ideia do Curtis é pouco a pouco estar menos presente e deixar-nos tomar cada vez mais e mais decisões nos preparando para nossa primeira velejada solos.

Fomos parando de baia em baia percorrendo distâncias pequenas de não mais de 20 milhas e fazendo mil exercícios no caminho. Mais uma vez me surpreendi em como esta experiência em Martinica está sendo diferente da minha anterior em Guatemala, Belize e Honduras. Em todos os lugares que ancoramos haviam alguns restaurantes, várias casas e muitos veleiros. Em um dos vilarejos havia um festival rastafári que acontece uma vez ao ano e pela manhã fomos ao colorido e interessante mercado em frente ao píer. Um festival de cores nas roupas das mulheres, nas frutas e no artesanato.

A cada dia ligava para o Alain para saber como andavam as coisas e sempre tinha a mesma resposta, os papéis não haviam chegado de Paris e tínhamos de esperar. Na segunda feira voltamos para a marina já que os papéis deveriam ter chegado na sexta. Mas, não só não chegaram como segunda era um feriado francês e tudo estava fechado. Mais um dia de atraso. Fizemos uma reunião para decidir o que iríamos fazer e o Curtis me disse que estava disposto a mudar seus voos de volta ao panamá para que tivéssemos a oportunidade de ter mais dias de curso e também para que possamos cumprir o que planejamos, conhecer Grenada.

Um pouco mais sossegado continuei colocando pressão em todos os envolvidos na negociação até que finalmente dia 18, depois de quase um mês que cheguei aqui, as coisas se desembaraçaram e pude receber o contrato assinado com a passagem do barco da propriedade do banco para a empresa de charters e dela para mim!

     
 

Aproveitei este tempo também para comprar um bote inflável e desta vez do tamanho que queria, 3,1 metros com um super motor Yamaha de 15 HP que faz o dinghy voar. Passamos mais 3 dias na marina tendo algumas aulas teóricas, fazendo os testes que nos certificam em níveis progressivos de habilidade de vela e arrumando algumas coisas no veleiro em idas e vindas para as lojas de equipamento marinho ao redor da marinha.

No dia planejamos sair pela manhã para exercícios de manobras do veleiro usando o motor e a tarde completaremos nosso preparo para a travessia da Martinica para a Grenada que deve demorar ao redor de 26 horas. Como todos os atrasos decidimos que faz mais sentido ir diretamente para lá e ter um tempo para conhecer Grenada e as Grenadines.

Claro que os planos mais uma vez mudaram. Pontualmente as 8:30 estava no escritório do Alain que agora já perdeu totalmente a paciência comigo e com o tempo que está gastando comigo. Assim que entrou vi pelo seu rosto que as coisas não estavam andando da maneira que imaginávamos. Ele me disse com um triste sorriso no rosto que tinha começado uma greve geral na França e que todos os funcionários públicos não iriam trabalhar por.....não sabemos. O Murphy realmente está nos perseguindo. Basicamente tudo o que podia dar errado no sentido de atrasar nossos planos aconteceu. Feriados, greves, pessoas envolvidas na venda não muito cooperativas.

Mas, quando o Alain viu minha expressão de frustração veio imediatamente com a oferta de que levássemos o barco com um contrato de charter sem custo até que o barco pudesse ser passado para o meu nome. Saí de lá cantarolando de felicidade! Mais duas ligações e tinha o barco coberto por um ótimo seguro com um custo bem razoável de 1,5% do valor do barco. Estávamos prontos para partir. O Curtis mudou o voo dele para dia 29 o que nos dá 9 dias a mais de vela e de curso além da experiência de fazer uma travessia de 150 milhas em aproximadamente 24 horas.
As 16 horas saímos da marina e ancoramos em uma baia próxima para pela manhã podermos sair diretamente sem ter que fazer as manobras para sair desta enorme marina. Fui deitar sob uma linda luz cheia e com o coração repleto de felicidade. Finalmente o Good Karma era meu e estava partindo para um período de minha vida que ainda não posso alcançar o significado.

Fazendo o curso e nossa graduação

Acordamos cedo pois tínhamos uma longa viagem pela frente, ao redor de 150 milhas (aprox.300 km) de travessia da Martinica até o sul de Grenada, nossa casa pelos próximos 40 dias. O dia amanheceu claro e logo após levantarmos âncora já estávamos com os trade winds, ventos consistentes em uma determinada direção, assim chamados pois eram os ventos que os barcos de comércio antigos que não tinham muita habilidade de velejar em direção ao vento, apenas indo com o vento. Nosso plano calculando uma velocidade conservadora de 6 nós (aprox. 12 km/hora) era de uma travessia de 27 horas. Essa, em minha relativamente curta carreira de velejador, era a minha terceira travessia sendo que as últimas duas, de Guatemala até as Bay Islands em Honduras e de volta a Guatemala, foram há 9 anos atrás, um pouco antes de vender o Good Karma.

Com ventos constantes vindos de leste a 45 graus de nossa direção não tive muito o que fazer durante o dia, apenas pequenos ajustes de vela, mas bem espaçados. A Kathy hoje pela primeira vez teve enjoo e passou boa parte do dia dormindo. Aos poucos o mar foi crescendo um pouco com ondas de 1,5 a 2 metros e o barco começou a jogar um pouco. Paradoxalmente isso me deixou feliz já que tinha medo de que o catamarã fosse completamente estável o que tiraria um pouco da emoção de velejar.

Aproveito a cada instante para ler o muito do material que tenho pela frente, navegação, mecânica diesel, eletrônica em tudo o mais que possa colocar minhas mãos. É tanta coisa para aprender que as vezes dá medo, mas aos poucos, creio, chego lá. Nesses últimos dias a curva de aprendizado tem sido incrivelmente rápida e sinto que já sei muito mais do que jamais soube com o outro barco. Ter o Curtis aqui com sua infinita paciência e com minha também infinita curiosidade é maravilhoso. Vejo nele um pouco de mim quando os papéis se revertem e sou eu a dar explicações para meus clientes. Creio que sou tão paciente e motivado como ele para ensinar.

Durante quase todo este mês que passamos na Martinica tivemos chuvas torrenciais muito curtas várias vezes por dia, muitas vezes durando apenas 5 minutos e esperava que isso acontecesse também durante a travessia, mas tivemos muita sorte e apesar de vermos alguns relâmpagos a leste acabamos o dia sem nenhuma chuva.

Ao anoitecer dividimos os dois turnos da noite entre eu e a Kathy e o Curtis ficou dormitando no cockpit acordando a cada meia hora para checar como estávamos indo o que nos deu muito mais segurança. Como a Kathy ainda estava um pouco enjoada fiquei no timão até as 11:30 quando a acordei e fui dormir por 3 horas. O barco jogava muito e achei não conseguiria dormir, mas as 2:30 quando a Kathy me acordou percebi que tinha dormido profundamente.

A noite estava maravilhosa com uma lua cheia iluminando todo e céu a oeste. Passamos por Santa Lucia, Saint Vincent e pelo grupo de ilhas chamadas de Granadines que pertencem em boa parte a Saint Vincent e duas delas a Grenada.
Sozinho durante a noite, descansado das 3 horas que dormi, foi muito gostoso com bastante tempo para pensar na vida e em como as coisas aconteceram estes meses para mim. Olhando para trás vejo em como, no final apesar de todos os percalços com a burocracia para comprar o barco, tudo andou rápido. Em dezembro do ano passado nem pensava em comprar um barco. Em fevereiro ainda estava pensando que barco seria. Em março estava pesquisando este específico modelo e agora, em maio, estou velejando no novo Good Karma!!!

Apesar da lua cheia pouco se via da rota que estava navegando e isso me fez pensar em como eram habilidosos e corajosos os marinheiros do passado não muito distante antes da era da eletrônica. Em minha frente tenho a indicação da profundidade, minha exata posição em latitude e longitude, a rota que o veleiro está traçando em um mapa super detalhado, a velocidade real e aparente do vento, a quantas horas estou do meu objetivo além, claro, do piloto automático que direciona o barco para onde eu quero ir. Para mim sobra apenas o ajuste das velas.

As seis da manhã, já na costa de Grenada a lua em um tom muito claro de rosado mergulhou no mar enquanto a suave luz do dia me mostrava os detalhes da costa. Em mais duas horas estaremos chegando a Pricky Bay onde descerei para fazer o check in no país enquanto os outros aguardam no barco. Amei a travessia!!!!

Em Granada, na marina de Prickly Bay encontramos com uma pequena comunidade de brasileiros que por várias razões estavam por aqui há algum tempo, alguns deles em moradores meio permanentes. Deles escutamos as histórias conhecidas de problemas com os veleiros, motores quebrados, peças que não chegam, montanhas de dinheiro gastos nos barcos, listas de manutenção que a cada vez que você corta um item mais dois aparecem. Também que adoram o estilo de vida mas que está longe de ser a vida paradisíaca que todos imaginam. Embora eu saiba de tudo isso de alguma forma acho que comigo será um pouco diferente embora o porque pense assim e o porque da lógica de que apenas eu seria poupado não posso imaginar. Mas também ouvi informações práticas importantes como os tempos de que as coisas enviadas dos Estados Unidos ficam na aduana pode ser bem longo e de que a marina que estava planejando usar para fazer todos os concertos do barco ser bastante ruim. Planejava enviar todo o material de mergulho de Miami para cá, mas agora estou repensando pois pode ser que isso acabe atrasando nossa partida para Curaçau em final de junho. Quanto a que marina usar por hora sei que pelo menos tenho de dar uma olhada em outras para decidir, mas foi um banho de água fria pois em minha imaginação (e profundo desejo) acharia um lugar onde as pessoas seriam simpáticas e me ajudariam muito nas várias coisas que preciso fazer no barco.

   
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A primeira impressão do país nestes poucos dias que estamos aqui é bem positiva. Pessoas simpáticas, vegetação tropical super verde pelas chuvas diárias e idioma inglês o que é um alívio depois de ter de batalhar a cada dia com meu terrível francês e o ainda pior inglês de Martinica. A visita o supermercado para comprar mantimentos para os próximos dias também foi uma agradável surpresa. Marcas conhecidas principalmente americanas e uma boa variedade inclusive com algumas comidas asiáticas que gostamos de cozinhar. Um grande problema, porém, neste dia. Ao pagar o supermercado percebi que havia perdido minha carteira com dois cartões de crédito e minha carteira de motorista! Os cartões de crédito cancelei o o banco americano vai me enviar outro dentro de uma semana então sem muito problema, mas a carteira de motorista é um sério problema. Não tenho ideia do que vou fazer em Miami sem poder alugar um carro já que transporte público lá é inexistente e taxi caríssimo principalmente porque o aeroporto de Miami fica há uns 70 km de Fort Lauderdale onde estou.

Após duas noites em Prickly Bay saímos mais uma vez para velejar desta vez com um plano um pouquinho mais ambicioso, sete dias pelas Granadines, um conjunto de ilhas que pertence metade a Grenada e metade a St. Vincent, outro pequeno país também antiga colônia inglesa. E depois desses 7 dias o Curtis e a Theresa tomar um ferry de volta a Grenada de onde voam de volta a Panamá e eu e a Kathy fazemos nossos primeiros dias solos levando o Good Karma de volta a Grenada para o que imaginamos será um mês de reformas e upgrades.

Embora tenhamos melhorado muito em nossa compreensão de tudo relacionado a velejar a ideia de estarmos sozinhos no veleiro ainda dá bastante medo. No primeiro dia pegamos ventos de 25 a 30 nós (50 a 60 km/hora) com algumas rajadas mais fortes que apareciam repentinamente e que exigiam manobras rápidas para diminuir a área velica. Embora saibamos o que fazer, na hora de fazer isso de forma rápida e eficiente as vezes o cérebro congela frente ao stress. Mas, tenho confiança de que vamos chegar lá.

Nossa primeira ancoragem foi em uma ilha deserta com apenas outros 3 catamarãs em frente a uma pequena praia. Estava sentindo falta de estar assim longe de casas, cidades e pessoas. Após baixar âncora saímos para uma longa nadada até a praia e lá encontramos uma parede de rocha deliciosa para brincar um pouco de escalada em rocha. No fim da tarde preparei um jantar com chiken tikka, um prato indiano que gosto muito, salada e vinho. Com o dia inteiro velejando no fim do dia vem uma super preguiça de cozinhar então temos comido mal a base de snacks, de dia por que não há tempo e a noite porque não há energia e isso é uma coisa que precisamos prestar atenção. Durante estes muitos anos em que não tive casa comi principalmente em restaurantes quando não estava na montanha ou então a comida preparada pelos sherpas ou nos abrigos de montanha então quando tinha a chance de alugar uma casa gostava muito pois tinha a chance de cozinhar algo e jantar sem ter de sair. Mas isso é muito diferente do que cozinhar todos os dias. Algo a prestar atenção.

Nos próximos dias continuamos com nosso aprendizado intenso com o Curtis deixando gradualmente que tomássemos as decisões e cometêssemos os erros. Ancoramos em mais duas ilhas pertencentes a Grenada e a Kathy fez os três exames para seus certificados e passou nos três.

Um dia antes do voo do Curtis e da Theresa os deixamos em uma das ilhas e de lá eles tomaram um ferry para Grenada e nós saímos bastante nervosos para nossa primeira velejada solo de lá de volta a marina em Prickly Bay em Grenada. Mas, apesar de nervosos de não termos mais o Curtis ao nosso lado também estávamos super felizes de finalmente estarmos só os dois em nosso barco e de podermos e termos de tomar as decisões. Neste dia fizemos uma velejada bem curta, algumas poucas milhas pois a primeira das frentes da temporada de furacões. Pela previsão vimos que ia ser rápida e não forte, mas por segurança escolhemos uma baia bem protegida ali perto. O problema é que mais gente resolveu fazer a mesma coisa e a baia estava lotada de veleiros um ao lado do outro, uma situação nada confortável para nossa primeira ancoragem solo. Ao final, depois de manobrar entre muitos veleiros sem ter confiança por conta da proximidade deles acabamos lançando âncora mais para fora da baia, um pouco menos protegido, mas com mais espaço. Respiramos aliviados ao sentir que o barco estava seguro.

   
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No dia seguinte outro stress nos esperava. O dia de vela foi super tranquilo, o mau tempo que esperávamos acabou se resumindo a umas poucas chuvas e um período curto de vento de 30 nós onde fizemos uma manobra chamada “heave to”, onde você posiciona as velas e o timão de uma maneira que o barco para de se deslocar e em uma posição estável você aguarda o período de mau tempo passar. Também é ótimo para almoçar ou jantar com mar agitado. Você para o barco e consegue cozinhar e comer com muito mais tranquilidade. Mas, o stress veio ao final do dia ao termos de estacionar” o barco no dock para encher nossos tanques de água. Good Karma tem 12 metros de comprimento por 6 metros de largura, o correspondente a uns 6 carros grandes juntos. Não tem freio sendo que a desaceleração é feita colocando os motores em marcha ré e tem uma inércia fabulosa na água. Por sorte dois outros velejadores que estavam com seus barcos próximos viram minha falta de habilidade e vieram ao píer nos ajudar. Por pouco não deixo a primeira marca na popa do barco...

Após atracarmos em uma das boias da marina comemoramos nossa primeira viagem solo com muita felicidade. Sentimos que ali realmente começava nossa jornada com o Good Karma!

Nasmatê
Manoel Morgado

 
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