Wakhan Corridor
da redação, Manoel Morgado
9 de dezembro de 2013 - 14:30
 
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    Um de nossos acampamentos, apenas n�s. Foto: Manoel Morgado
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    Paisagem do Wakhan no in�cio da viagem." Foto: Manoel Morgado
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    Fabiana e crian�as wakhanis." Foto: Manoel Morgado
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    Fabiana e duas mulheres wakhanis." Foto: Manoel Morgado
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    Rapaz cobero com o turbante por causa da poiera." Foto: Manoel Morgado
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    Uma das �nicas pontes da regi�o." Foto: Manoel Morgado
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    ESQUERDA: Mulher wakhani em seu traje de dia a dia. DIREITA: Mulher Kyrgyz." Foto: Manoel Morgado
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    Montanhas do Pamir." Foto: Manoel Morgado
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    Atravessando os in�meros rios." Foto: Manoel Morgado
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    Fim de tarde em um vilarejo." Foto: Manoel Morgado
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    Saverio, Fabiana e Manoel no in�cio do trek." Foto: Manoel Morgado
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    Paisagem �rida dos Pamirs." Foto: Manoel Morgado
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    Ponte pedestre no Wakhan." Foto: Manoel Morgado
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    Saverio atravessando um rio." Foto: Manoel Morgado
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    Rosto do antigo testamento." Foto: Manoel Morgado
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    Irm�os viajando." Foto: Manoel Morgado
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    Dentro de uma das yurtas." Foto: Manoel Morgado
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    Acampamento n�made." Foto: Manoel Morgado
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    Fam�lia em sua yurta." Foto: Manoel Morgado
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    Travessia do Pequeno ao Grande Pamir." Foto: Manoel Morgado
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    Paisagem espetacular de montanha." Foto: Manoel Morgado
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    Lago Glaciar." Foto: Manoel Morgado
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    Grupo de nomads viajando." Foto: Manoel Morgado
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    Camelos bactrios." Foto: Manoel Morgado
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Um de nossos acampamentos, apenas n�s. Foto: Manoel Morgado

 

Eu não podia acreditar! Nosso carro havia parado no alto do passo e, na minha frente, estava o rio que dividia o Tajiquistão, onde estávamos, do Afeganistão, país com que vinha sonhando há mais de 20 anos. Em 1976, quando estava no segundo ano de faculdade, quase tranquei a matrícula e fui para a Ásia para uma longa viagem. Naquela época, os que faziam a sonhada viagem de Londres a Katmandu por terra diziam que o mais bonito, interessante, culturalmente rico país da rota era o Afeganistão. Acabei fazendo esta viagem para a Ásia anos depois, em 1983, e então a Rússia já tinha invadido o Afeganistão e meu sonho de caminhar por suas montanhas tinha sido adiado por muitos anos. Até este momento.

O que via na minha frente correspondia ao que imaginava. Logo após a estreita margem do rio caudaloso, imponentes montanhas se erguiam abruptamente. Suas encostas abrigavam por alguns metros plantações de trigo mas, logo acima, se tornavam áridas.

Éramos apenas três, eu, a Fabiana e o Saverio, e já estávamos viajando há 3 dias além de uns poucos dias em Dushanbe, a capital do Tajiquistão, que tinha sido nossa base para organizar os últimos detalhes de nossa viagem. Mas a preparação desta viagem tinha começado muito antes, mais de um ano atrás. A região que escolhemos, o Wakhan Corridor, era a única que poderíamos visitar sem corrermos um risco extremo. Fora dela, o Taliban continuava muito ativo e seria uma temeridade nos aventurarmos. O Wakhan é habitado por uma etnia que segue uma corrente diferente do Islamismo, que se opõe radicalmente às políticas do Taliban e, com isso, mesmo no auge da dominação do país, o Taliban não conseguiu entrar nesta remota área do Afeganistão.

O Wakhan Corridor foi o resultado do que se chamou, na virada do século XIX para o século XX, de “Great Game”, a guerra fria entre os dois poderes coloniais da época nesta região, a Rússia Czarista e a Inglaterra. Nesta época, ambas as potências tinham grandes interesses coloniais e se expandiam uma em direção à outra. Para evitar um confronto que parecia cada vez mais certo, desenharam uma região buffer para que não houvesse uma fronteira comum. Estava criado o Wakhan, um corredor de ao redor de 300 km de extensão por não mais do que 30 km de largura, entre duas das mais altas cadeias de montanha do planeta, o Hindu Kush e os Pamirs. Uma das consequências deste acidente geopolítico foi o “aprisionamento” de uma população de nômades quirguistanes dentro de suas bordas. Esse povo, até então, cruzava as fronteiras entre Tajiquistão, Afeganistão, Quirguistão e China livremente. Não mais...

Após cruzarmos a fronteira, nossa primeira parada foi o vilarejo de Ishkashin. Não posso dizer que nossa primeira impressão tenha sido muito agradável. A cada passo sentíamos os olhos dos habitantes nos seguindo e não eram olhares amistosos. Em nada melhorou minha situação quando ao esquecer que estávamos no Ramadan, o mês de jejum dos muçulmanos, eu comprei um refrigerante, estava um calor muito forte, e saí bebendo pela rua de terra, que era a principal do vilarejo. Um senhor me chamou, tomou a garrafa de minha mão e a jogou no chão. Entre expressões furiosas reconheci a palavra Ramadan e me dei conta da grande ofensa que havia cometido. Por gestos, mostrei a ele o quanto sentia e a tensão se desfez parcialmente. Para a Fabiana, apesar de estar com um véu sobre a cabeça e usando um traje local, a sensação era ainda pior.

O encontro com nosso guia não melhorou muito nosso ânimo. Turismo é uma coisa extremamente nova nesta região e após pesquisarmos muito na internet havíamos encontrado um operador turístico que parecia honesto e competente. Mas, por alguma razão que nunca compreendemos, ele não estava em Ishkashin para nos receber e seu irmão não tinha ideia do que fazer conosco. A comida não havia sido comprada, o guia falava muito pouco inglês, a comunicação era muito difícil e ele não tinha ideia de nossos planos, para onde queríamos ir. Com um peso no coração nos conformamos com a ideia de ficarmos mais uma noite no sinistro vilarejo até que tudo fosse comprado.

Nosso plano era bastante ambicioso, percorrer a pé o Pequeno e o Grande Pamir, um trajeto de 300 km em 15 dias por entre altíssimas montanhas, atravessando rios sem pontes que mudavam de calmos riachos a torrentes em questão de horas e com um clima que nos brindaria com variações de temperatura de 30 graus positivos até 10 abaixo de zero.
Mas, antes de começarmos a caminhar, ainda tivemos outros 3 dias de carro por uma estrada que, ora era um caminho estreito de terra, ora apenas o leito pedregoso do rio. Nossa hospedagem nesses dias era em pequenas pousadas, o embrião de um projeto turístico na região, apoiado pela Aga Kan Foundation. A simplicidade da acomodação e a dureza da viagem dentro de velhos jeeps era mais do que compensada pelo encontro com a população local que correspondia à nossa curiosidade sobre eles com sua curiosidade sobre esses 3 estranhos estrangeiros. Durante todos os 22 dias que passamos no Wakhan encontramos apenas outros 3 estrangeiros, escaladores em busca de uma primeira escalada em uma das muitas montanhas virgens da região. As crianças, muito menos inibidas que os adultos, nos rodeavam e passamos deliciosos fins de tarde brincando com elas sem que a barreira linguística atrapalhasse em nada.

Quando finalmente começamos nossa caminhada, a dificuldade dos dias nos espantou. Mesmo em excelente forma física, como normalmente estamos, vindo de guiar um grupo no Kilimanjaro e dois no Elbrus, acabávamos os dias exaustos. Nos primeiros três dias, ainda a pouca altitude, o calor judiou muito e a escassez de água só deixou ainda mais duro. Mas, mais sério ainda do que isso, foi aos poucos notar que as paisagens espetaculares que esperávamos não apareciam. Anos antes, eu e o Saverio tínhamos feito um dos treks mais espetaculares de nossas vidas a poucos quilômetros dali, no noroeste do Paquistão, do outro lado do Hindu Kush. A paisagem árida do Paquistão era quebrada pelas plantações douradas de trigo. Era quase época da colheita e o trigo balançava lentamente com a brisa refletindo a luz suave do sol. Mas no duro clima do Wakhan não existem plantações. Sua escassa população é composta exclusivamente de nômades que não plantam nada. Vivem apenas de seus animais, ovelhas, cabras, yaks, camelos e seus amados cavalos.

Além do clima cruel e dos muitos quilômetros que caminhávamos todos os dias, aos poucos também começamos a nos sentir fracos. Nossa comida comprada na última hora consistia em arroz, batata e pão velho. Nada mais...

Durante cinco dias percorremos o Pequeno Pamir, sempre com a esperança de que a paisagem iria magicamente tornar-se o que esperávamos. Começamos, então, a travessia pelas montanhas rumo ao Grande Pamir. Ah, finalmente ganhamos o prêmio com que tanto sonhávamos! Por outros cinco dias caminhamos por uma paisagem de sonho com montanhas nevadas, lagos glaciares de um azul imenso, vales floridos e acampamentos de nômades quirguistanes que nos recebiam com um grande sorriso, um forte aperto de mão e uma yurta decorada com coloridos tapetes para descansarmos. O frio nos dava muito mais disposição e as caminhadas, apesar de ainda muito duras, eram feitas com um sorriso no rosto. Após tomarmos o tradicional chá, passávamos as horas do fim da tarde caminhando pelo acampamento observando a dura rotina de trabalho dos nômades. Antes mesmo do nascer do sol e ainda dentro de nossos sleeping bags, ouvíamos o balir dos carneiros sendo levados pelas crianças, os responsáveis pelo rebanho dos animais menores, para as encostas das montanhas para pastar. De lá, elas só voltavam no final da tarde. Um pouco mais tarde era a vez dos homens levarem os yaks para os pastos de altitude. O espetáculo de ver esses grandes e lindos animais voltarem ao acampamento no final da tarde levantando nuvens de pó espesso está impresso em minha memória para sempre. Já a labuta das mulheres não era menor. Desde cedo, buscavam água no rio, cozinhavam, preparavam queijo de leite de cabra que guardariam para os longos meses de inverno, faziam o iogurte ácido que dava a pouca proteína de sua dieta e ordenhavam os animais, assim como cuidavam das crianças.

Assim que chegávamos a cada novo vilarejo se seguia uma longa discussão para a definição do preço do aluguel de animais para o próximo dia. O direito de alugar mulas ou yaks aos pouquíssimos estrangeiros que passam por seus vilarejos é exclusivo do lugar onde os visitantes dormem e assim, a cada dia se segue uma nova negociação.

Acordávamos com os animais e, normalmente, às 7 já estávamos caminhando para cobrir os muitos quilômetros do dia. Apesar de termos barracas e teoricamente podermos fazer nossos dias tão longos quanto quiséssemos, na prática, tudo era bem diferente. Dependíamos dos animais que alugávamos e também de encontrar água e, com isso, acabávamos fazendo 25 a 30 quilômetros todos os dias.

Nos últimos dias do trekking, quando começamos novamente a descer em direção aos vales, foram os mais duros. Nos sentíamos muito fracos por causa de nossa dieta e, mais uma vez, a paisagem tornou-se monótona e os quilômetros demoravam o triplo para passar.

Após 15 dias de caminhada chegamos novamente à estrada onde nosso jeep nos esperava para mais dois dias de viagem até Ishkashin e a fronteira com o Tajiquistão. Enquanto sacudia estrada afora, tentava olhar dentro de mim para tirar uma conclusão do que sentia sobre esta viagem. Sentimentos extremamente contraditórios lutavam. Lembrava dos piores momentos de calor, péssima comida, aridez deprimente. Mas então vinham as imagens dos fins de tarde brincando com as crianças, dos sorrisos generosos dos homens com rostos do Antigo Testamento, das noites estreladas no silêncio dos acampamentos. Dos encontros com esse povo que, por decisões políticas tomadas em capitais a milhares de quilômetros, havia mudado seu estilo de vida e os prendido em uma das regiões com clima mais brutal do planeta, mas que apesar disso ainda nos recebia com tanta generosidade.

Não sei se um dia voltarei ao Afeganistão. Infelizmente, não há como ter otimismo em relação a este país. As divisões tribais internas são muito profundas, o interesse geopolítico e econômico muito forte. Por quanto tempo o Wakhan conseguirá se manter à margem da guerra é incerto. Considero uma sorte muito grande ter podido viver o que vivi nesses dias tão duros.