Escalando o Fuji
da redação, Manoel Morgado
12 de outubro de 2013 - 21:53
 
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    "Escalando" o Fuji Foto: Manoel Morgado
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    As �rvores com as folhagens coloridas e o Fuji ao fundo." Foto: Manoel Morgado
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    Fabiana Atallah pronta para a subida" Foto: Manoel Morgado
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    No dia seguinte uma bela vista do Fuji da janela do nosso quarto." Foto: Manoel Morgado
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"Escalando" o Fuji Foto: Manoel Morgado

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Estávamos preocupados com o clima. Durante toda a semana que antecedeu a escalada ficamos checando a previsão do tempo, que insistia em mudar todos os dias. Às vezes, no mesmo dia predizia chuva, para algumas horas depois mostrar uma noite e uma manhã clara. Monte Fuji ou, como é mais comumente chamado no Japão, Fuji-San, não é de forma alguma uma montanha difícil. Não se poderia nem dizer escalada e sim subida, já que é uma trilha muito bem marcada com um desnível de 1500 metros desde onde a estrada chega até o cume. No verão, a quantidade impressionante de 5000 pessoas por dia fazem a subida. Sim, não me enganei na digitação, são quase trezentas mil pessoas subindo o Fuji-San nos dois meses da temporada oficial, fazendo dela a montanha mais “escalada” do planeta! Mas, fora de estação, a coisa muda por conta do vento que pode tornar-se extremamente forte, não sendo incomum ventos de mais de 100 km/h.

Apesar de variar quanto à probabilidade de chuva, a previsão era constante quanto à velocidade do vento para aquela manhã. Deveríamos ter ao redor de 50 km/h de vento no cume, o que não impossibilitava a subida, mas a tornaria um tanto desagradável. Mas não tínhamos outra alternativa, nos dias seguintes o vento se tornaria ainda mais forte, chegando a 90 km/hora!

Da pequena cidade de Kawaguchiko, que fica a duas horas de ônibus de Tóquio, pegamos um ônibus que nos deixou a 20 minutos do abrigo de montanha onde passaríamos a noite. Ao chegarmos ao abrigo ficamos felizes ao saber que seríamos os únicos a dormir lá aquela noite, sinal de que teríamos a montanha só para nós. Em outubro, este era o único abrigo ainda aberto. A maioria fecha no final de setembro. Este abrigo, ficamos sabendo pelo dono, Sr. Sato, pertence à mesma família a 4 gerações, desde 1875. Ele, que já subiu ao cume mais de 100 vezes, muitas delas no inverno, nos contou sobre a escalada e nos mostrou dois vídeos sobre o Fuji-San. Neles vimos imagens impressionantes da montanha no verão, de uma fila interminável de milhares de pessoas, uma colada na outra, subindo lentamente montanha acima como uma fila de formigas. Mas, também lindas imagens da emoção de chegar ao topo da mais alta e mais sagrada montanha do Japão.

Para os japoneses, subir o Fuji-San não é uma atividade física e muito menos uma conquista para colocar no currículo e sim uma busca espiritual e uma continuidade de uma tradição centenária. Antes de subir a montanha os peregrinos, pois é assim que muitos se definem, visitam vários lugares sagrados, lagos, cavernas e inúmeros pequenos templos, todos com uma longa tradição espiritual. O budismo no Japão é fortemente influenciado pelo xintoísmo que cultua as forças da natureza e promove a harmonia entre o homem e seu entorno. E, em nenhum lugar, isso é mais presente do que no Fuji-San.

Nas duas vezes que saí do abrigo para ver como estava a noite, vi uma grande quantidade de estrelas e me tranquilizei. Apesar de morar no abrigo, o Sr. Sato estava enganado. Logo que chegamos, ele nos disse que era uma pena, mas subiríamos debaixo de chuva.

Às 4 da madrugada nos levantamos, comemos um Cup Noodles bem ao estilo de café da manhã japonês e nos arrumamos. Dois minutos depois de começar a caminhar começou a chover, a princípio uma garoa fria e logo depois uma forte chuva. Sr. Sato estava correto. Depois de quatro gerações habitando o mesmo lugar, com certeza ele tinha aprendido algo sobre os humores da montanha...

Fuji-San é, merecidamente, uma das montanhas mais fotografadas e admiradas do planeta. Ele ao fundo com as flores das cerejeiras, ele ao fundo com as folhas vermelhas e amarelas do outono, sempre com uma coroa de neve no cume e suas formas elegantes e perfeitas e a simetria irretocável de um cone vulcânico. De longe, uma das montanhas mais lindas da Terra. De perto, a coisa é bem diferente. Para garantir a segurança das 300.000 pessoas que sobem anualmente, foram feitas 4 rotas de subida com degraus de madeira, correntes como corrimões, dezenas de abrigos de montanha de metal parecendo containers de navios. Eles precisam ser desta forma já que ficam soterrados por metros de neve de novembro a maio. Mas o pior de tudo são os grandes muros de contenção para evitar deslizamentos a cada 50 metros. Junto com as retro escavadeiras que estavam trabalhando para fazer ainda mais muros, a cena estava longe do ambiente de montanha do qual estamos acostumados. Por mais que tentássemos “sentir” a montanha, era muito difícil entrar no clima de uma escalada, da paz que normalmente a montanha nos inspira.

Após uma hora de subida e de termos ganhado 500 metros verticais, estávamos encharcados apesar dos Gore-tex que usávamos. O vento tinha aumentado bastante e colocamos várias camadas de roupa a mais. Com a chuva e o vento, cada um estava no seu mundo. Praticamente não conversamos a subida inteira. Desde o começo, colocamos um ritmo forte de 10 metros verticais por minuto e com rapidez fomos vencendo os infinitos ziguezagues e passando pelas estações, como são chamadas as paradas para descanso na montanha. Quando faltavam 300 metros para o cume, encontramos um indonésio parado, encharcado e tiritando fortemente de frio. Estava assustado sem saber bem o que fazer. Não tinha altímetro, não sabia quanto faltava para o cume e não tinha mais roupa para colocar. Dei a ele meu gorro e meu colete de fleece, um de meus bastões de caminhada, uma barra energética e água. Mas, mais do que isso, ele ficou muito aliviado em saber que não estava sozinho na montanha. Mais uma vez, víamos em nossa frente um manual de como fazer tudo errado em uma montanha. Sozinho, sem equipamento adequado, sem experiência. Uma simples torção de tornozelo poderia, em uma situação como esta, tornar-se fatal. E, todos os anos, algumas pessoas morrem no Fuji-San, uma montanha que, de forma alguma, deveria oferecer qualquer risco.
Continuamos a subida no ritmo dele e às 8:30 da manhã chegamos na borda da cratera, 3 horas e 20 minutos de subida, quando nas brochuras sobre a montanha se fala em 6 horas!

O vento tinha aumentado muito e em várias partes tínhamos de nos segurar nos bastões de caminhada para não sermos derrubados. As lufadas vinham fortes e de forma repentina. O cume verdadeiro era do outro lado da cratera por uma trilha que demora ao redor de uma hora para fazê-la completa, dando a volta na montanha. Ela seguia serpenteando bem exposta tendo, de um lado, a cratera e, do outro, a encosta bem inclinada. Se na trilha de subida o vento estava forte, lá no topo, sem proteção alguma, ele estava perigoso. Sem visibilidade alguma, tentamos seguir por alguns metros, mas achamos que era muito perigoso e resolvemos abortar esta última parte e descer.

Como por magia, após meia hora, as nuvens começaram a se separar e nos mostrar janelas da paisagem ao redor do Fuji-San. A montanha é cercada por cinco lindos lagos dos quais, agora, podíamos ver dois. Quanto mais descíamos, mais ampla e bonita se tornava a paisagem. Quando chegamos abaixo, a montanha toda estava visível e começamos a nos questionar se não tínhamos nos precipitado ao descer ao invés de aguardar. Mas logo vimos ameaçadoras nuvens lenticulares se formando no cume, sinal certo de ventos fortíssimos. Mais tarde, consultando novamente a previsão do tempo, confirmamos o que as nuvens já nos cantavam, que os ventos lá em cima durante a manhã tinham aumentado para ao redor de 90 km/hora. Tínhamos tomado a decisão correta...

Apesar da chuva e dos ventos fortes estávamos felizes. Tínhamos feito, nós também, a peregrinação ao Fuji-San e tínhamos ajudado uma pessoa neste processo. Agora um trek de seis dias nos esperava cruzando de oeste a leste os Alpes do Norte do Japão, descrito como o mais espetacular dos trekkings de longa duração do país.