+  BLOG DO MANOEL MORGADO
Compartilhe
A semana na montanha
 
 
 

08/04/10 – Por um dia estou só

A despedida do grupo foi muito emocionante. De todos recebi palavras carinhosas e sei que tornarei a ver muitos deles, seja em São Paulo (já estamos combinando um fim de semana em Agulhas Negras em março), seja em uma outra viajem. Eles começaram sua caminhada rumo a Lukla de onde voarão para Katmandu amanhã e eu entrei no lodge para arrumar minhas coisas. Quando voltei a sair do lodge eles não estavam mais lá e senti um pouco de solidão ao iniciar a minha volta ao campo base. Depois de 20 dias rodeado de gente pedindo minha atenção, de repente estava só. Enquanto caminhava pensava que preciso voltar o foco para dentro de mim, preciso prestar atenção a minha saúde, preciso descansar e se possível ganhar um pouco de peso. A escalada do Everest começa dentro de menos de 5 dias e nesses últimos dias não tive um segundo para mim. Agora teria dois dias calmos para caminhar até Chokhung onde encontraria a Andrea, o Guto e a Manuela que foram escalar o Island Peak e um dia depois encontrarei o grupo que irá escalar o Everest comigo, o Victor, o Greg, o Marco e o Rob. As onze da manhã, porém, os meus planos mudaram completamente. Recebi uma ligação do Sunir, meu operador, no meu celular dizendo que o Guto e a Manuela tinham chegado no cume, mas que a Andrea tinha ficado no campo alto, pois tinha adoecido. O Sunir não sabia me dizer se era grave ou o que exatamente ela tinha. Decidi no ato ir até Chokhung neste mesmo dia embora isso significasse uma caminhada de mais de 30 quilômetros e um ganho de altitude de mais de 2000 metros. Cheguei em Chokhung já de noite e encontrei os três comemorando o cume. A Andrea tinha tido febre durante a noite e sua tosse que já vinha a alguns dias tinha piorado e ela sensatamente tinha desistido da escalada. Mas, agora, já mais abaixo e com 24 horas de antibiótico estava melhor para meu grande alívio.

2 3 4 5 6 7 8 9 10 vídeo 1 mapa 1
 

09/04/10 – Descanso antes do Island Peak

Como lado bom de minha maratona, além da minha paz de espírito em saber que ela estava melhor, tive o dia seguinte livre e aproveitei para dormir muito. Acho que só então percebi o quanto de energia tinha colocado neste grupo e quão desesperadamente precisava descansar antes de iniciar o Everest. Hoje também reencontramos com meu grupo de escalada do Everest só que além dos 4 eles estavam levando outros 9 trekkers de Malta que os acompanharão até o campo base e que escalariam conosco o Island Peak. O que eu não sabia é que acabaria sendo co guia deles na escalada.

10/04/10 – Voltando ao papel de guia

De manhã cedo me despedi mais uma vez da Andrea que iria reencontar seu grupo de escalada no campo base do Everest. Mais uma vez ficamos tristes com a séria de ocorrências que culminou em nós escalarmos o Everest em expedições diferentes. A separação que no final seria de apenas 3 dias teve um sabor amargo, pois daqui para frente e pelos próximos 50 dias estaríamos na mesma montanha, mas nos vendo ocasionalmente sem poder dividir todos aqueles momentos que nos últimos 2 anos sonhamos. A primeira travessia em uma das escadas de alumínio sobre as gigantescas cravasses, a chegada ao campo 1 com a vista do campo do silêncio, a noite do cume... Agora essas experiências não mais seriam divididas e sim contadas quando tivessemos a chance.

Fui com o meu novo grupo ajudar a montar um sistema de cordas para que eles treinassem subir com jumar e descer com rapel. O dia estava ventoso e uma grande melancolia me invadiu.

Após o almoço partimos para o campo base a 5100 metros no pé do Island Peak. Jantamos cedo e as 6 da tarde já estavamos nos sleeping bags tentando descansar para o longo dia que teríamos a frente.

11/04/10 – Escalando o Inja Tse (Island Peak)

Como sempre antes de uma escalada, não consegui dormir muito. A meia noite e meia comecei a preparar meu equipamento e a uma da manhã já estava na barraca refeitório tentando comer algo, pois sabia que o dia seria terrivelmente longo. Estavamos em um grupo de 14 pessoas sendo que 9 completamente inexperientes. Este fato em si não seria problema, já que costumo levar principiantes para esta montanha. Mas, este ano as condições estavam diferentes. Com um inverno muito seco ao invéz da parede ser uma encosta de neve com degraus bem marcados, teríamos uma partede de gelo de 50 graus de inclinação. Como conheço bem a montanha o Victor me pediu para liderar a escalada e sem saber ao poucos fui mais uma vez assumindo meu papel de guia. Saimos as 2 da madrugada com uma noite estrelada e sem vento e iniciei a longa subida de 600 metros até o gelo por entre grandes blocos de rocha. Subia mantendo um ritmo confortável para o grupo ganhando ao redor de 4 metros por minuto, monitorados pelo meu altímetro. Como réplica perfeita da minha última escalada no Island Peak, as 4 da manhã uma linda lua quarto crescente surgiu sobre a crista das montanhas a leste em direção ao Makalu e um pouco mais tarde fomos percebendo o magnífico lugar por onde caminhávamos. Acima, nos rodeando, as cristas de inúmeras montanhas nevadas com seus glaciares despencando em uma massa irregular de assutadores blocos de gelo. Abaixo o vale de onde tínhamos saído com a presença enorme de um lago congelado. Como planejamos, as 6 da manhã com o nascer do sol, chegamos ao gelo e nos paramentamos com botas duplas, polainas, crampons, cadeirinhas e nos encordamos. Por duas horas escalamos por entre lindíssimas formações de gelo azul, paredes com formas bizarras e grandes cravasses. Chegamos então no grande desafio da escalada, a parede de 150 metros que leva a uma crista afilada de 50 metros e de lá a subida final ao cume. Nossos sherpas já tinham ido a frente e fixado as cordas que dariam segurança possibilitando que novatos como este grupo pudessem escalar a montanha com segurança. De cara pude ver que esta não era a mesma montanha que tinha escalado nas outras vezes. Ao invés dos suaves degraus deixados por outros escaladores tínhamos paredes de gelo vertical de até um metro e meio de altura que exigiam técnicas de escalada de front pointing onde se usam os dois dentes da frente dos crampons para cravar na parede e com o auxílio do jumar (ascensor) ganhar preciosos centímetros. Logo percebi que os trekkers necessitariam de muita ajuda caso quizessemos que chegassem ao cume. Dividimos o grupo entre eu, o Victor e meus companheiros de Cho Oyu e aos poucos, com muito incentivo e instrução, fomos conseguindo que um a um chegassem a crista e de lá ao cume. Talvez por que desta vez o Island Peak não fosse um objetivo em si e sim apenas uma etapa de aclimatação para o Everest não me senti particularmente exultante com o cume. Estava feliz, afinal esta pequena montanha está localizada em um lugar espetacular e a vista de seu cume deslumbrante. Mas, o desafio tinha sido muito mais levar essas 9 pessoas que recém havia conhecido do que para mim mesmo. Em nenhum momento senti que havia alguma chance de que eu não conseguisse chegar lá em cima.

Mas, chegar no cume era, como sempre, apenas metade do trabalho e com um grupo grande assim e a montanha do jeito como estava, sabia que descer todos com segurança seria uma tarefa árdua. Finalmente as 15 horas, após 13 horas de escalada, estavam todos felizes, sãos e salvos, de volta ao final do gelo e prontos para descer rumo ao campo base onde passariam a noite. Eu, porém, tinha outros planos. O Victor já não precisava de minha ajuda e decidi ir para o campo base do Everest o mais rapidamente possível. Queria reencontrar a Andrea e ter dois dias de descanso completo antes de enfrentar a temível cascata de gelo. Desci para o campo base voando e segui montanha abaixo para Chokhung e após um copo de chá, ainda mais para baixo para o vilarejo de Dimboche. Cheguei com os últimos raios de sol exausto, mas feliz de estar em um bom lodge, poder tomar um merecido banho quente e jantar uma gostosa sopa e um prato de macarrão.

12/04/10 – Chegando em casa

Após o café da manhã reforçado, peguei as coisas que tinha deixado na subida e mais uma vez minha mochila voltou ao seu peso habitual, trinta quilos. Tinha pela frente ao redor de duras 8 horas de caminhada com um ganho de mais de 1000 metros e de volta ao mundo acima de 5.000 metros que será minha casa pelos próximos 40 a 50 dias. No caminho fui reencontrando algumas pessoas que tinha conhecido na subida e todos me desejavam feliz escalada. Mesmo alguns sherpas vendo o tamanho de minha mochila me perguntavam se eu ia escalar o Everest e ao responder que sim podia ver em seus rostos admiração e respeito. Sei que minha motivação para subir o Everest não é massagear meu ego, mas seria mentira dizer que o ego não fica mexido neste processo. Pessoas querendo tirar fotos comigo, e-mails elogiando minha determinação, o olhar de admiração no rosto de todos, alguns dizendo que sou um heroi, tudo isso, querendo ou não acaba brincando com minha vaidade. E, creio, isso passa com todos os escaladores. Lembro-me de como olhava para aqueles que me contavam que haviam escalado uma montanha de 8.000 metros. Crei que o importante é o que fazer com esses sentimentos. Se isso for a motivação principal da escalada inevitavelmente vai levar a sofrimento pois o ego é insaciável. Ele sempre quer mais. E então vem a frustração. Como antidoto uso uma simples tática. É só olhar para os sherpas e ver o que fazem. Padawa, o sherpa principal de minha expedição já esteve no cume do Everest 13 vezes e sempre ajudando a escaladores estrangeiros a chegar lá. E ele e um entre os muitos desta região. Uma família com 6 irmãos tem entre eles 40 cumes! Então como posso me sentir vaidoso frente a pessoas como eles? Mas, de qualquer forma, é preciso ficar de guarda, pois o ego é extremamente ardiloso.

Enquanto me aproximava do campo base já vendo a multidão de barracas multicoloridas se espalhando por uma grande área de rochas e gelo olhava para a magnífica e assustadora cascata de gelo, um rio de 600 metros de altura formado por uma confusão de enormes blocos de gelo completamente instáveis pedindo para desabar. Se não soubesse que essa era a rota que percorrerei muitas vezes nas próximas semanas juraria que passar por este formidável obstáculo era completamente impossível.

Fui diretamente ao acampamento da Andrea que fica ao redor de 20 minutos adiante do meu, muito mais próximo da cascata. Ao abracá-la senti que estava um pouco triste e ela me contou que não tinha muito em comum com seus companheiros de escalada. Em seu acampamento estão 3 grupos difrentes, uma expedição de cinco guias de montanha argentinos, Willie Benegas, um conhecido guia argentino com 9 cumes de Everest guiando o presidente da ESPN da América Latina e o grupo dela com um canadense super rico e o guia Damian Benegas. Mais uma vez, como tenho certeza passará tantas vezes nestes próximos dois meses, nos arrependimos da decisão de estar em expedições diferentes. Mas, quando tomamos esta decisão, não tínhamos muita escolha. Para ela, ter o patrocínio era muito importante e para mim estar em uma expedição liderada por pessoas que não respeitava estava fora de questão.

Entrei na barraca refeitório super organizada e conheci os argentinos. Um deles me contou que tinha acabado de ir urinar atrás de uma rocha não muito distante de seu campo e que lá, entre as pedras, encontrou uma mão mumificada sem as pontas dos dedos e com partes de osso aparecendo... Bem vindo ao Everest! Nesta montanha já morreram 215 pessoas e muitos dos corpos ainda estão na montanha. Com o passar dos anos os corpos congelados podem quebrar e com o inexorável movimento do gelo encosta abaixo partes podem resurgir na superfície. Atualmente a taxa de mortalidade medida dividindo-se os que chegaram ao cume versus os que morreram é de 4,5%, ou seja, para cada vinte que chegam ao cume uma pessoa morrará escalando. Penso nas pessoas que conheço aqui na montanha e fico horrorizado com essa estatística. E esse número já foi muito mais alto. Já chegaram ao cume ao redor de 3500 pessoas e 215 morreram! Os sherpas, devido a natureza de seu trabalho subindo e descendo a montanha muito mais vezes que os escaladores estrangeiros, detém uma porcentagem desproporcionalmente alta de mortes. Dos 215 mortos trinta por cento são sherpas!

Apesar de se sentir um pouco deslocada entre seus companheiros de escalada a Andrea não pode deixar de ver os lados positivos de estar em uma expedição vip, bem diferente do que tivemos no Cho Oyu e também do que eu terei na minha. Os irmãos argentinos trouxeram 200 quilos de comidinhas, vinhos e iguarias da Argentina e Estados Unidos e a comida é excelente. Tem um enorme aquecedor na barraca refeitório, um centro de informações metereológicas e uma barraca redonda de teto escurecido para as siestas afinal são argentinos... Como os irmãos são atletas North Face tem barracas novíssimas, seus sherpas estão equipados com roupas North Face de última geração e o acampamento é impecável, desde a barraca cozinha até a barraca banheiro. Para contrabalançar, na minha expedição tenho um guia que nos anos 80 estava entre os cinco melhores do mundo e 4 amigos nos quais sei que posso contar em qualquer situação. Em uma montanha como essa sei que minha sobrevivência pode estar nas mãos de meus companheiros. Não tenho dúvidas sobre minhas prioridades aqui no Everest. Barracas mais velhas, comida mais aborrecida, banheiro incômodo, sem problemas...Mas, gostaria que a Andrea estivesse comigo.

É difícil descrever o que é um acampamento base de uma montanha como o Everest. Para que minha barraca possa estar aonde está, em uma plataforma razoavelmente plana, que exista uma banheiro que nada mais é do que uma pequena barraca retangular sobre duas rochas com um buraco no meio, que duas grandes barracas abriguem a cozinha e o refeitório, foram necessárias semanas de trabalho de nossa dedicada equipe de sherpas. De um ano para o outro todo este trabalho é destruido pelo constante movimento do gelo que está sob nossos pés e ao redor de nós. Para ir de meu acampamento ao do da Andrea sou obrigado a subir em rochas escorregadias cobertas de neve, atravessar um pequeno riacho de gelo derretido e subir e descer colinas de gelo.

Antes de entrar na minha barraca, olho ao redor e vejo um mar de barracas iluminandas e ao fundo a linha nevada de montanhas que separam o Nepal do Tibet. Na escuridão da noite a cascata de gelo deixa de ser amedrontadora e torna-se uma inocente colina branca. Instalo-me dentro de meu sleeping bag -28 graus e adormeço ao som das constantes avalanches que descem das paredes do Khumbutse. Estou onde por anos sonhei estar.

2 3 4 5 6 7 8 9 10 vídeo 1 mapa 1
 

13/04/10 – Organizando-me física e mentalmente

Que delícia depois de tantos dias sem parar, sem ter espaço mental para descansar, ter dois dias de ócio completo! Acordei na hora que o sono acabou e só sai para tomar café da manhã após o sol ter aquecido confortavelmente a barraca. Durante a noite, nevou ao redor de 5 centímetros e pela manhã o céu estava completamente azul, com esta tonalidade de azul escuro que só existe acima dos 5.000 metros. Todo o chão estava coberto por uma grossa camada de neve, as montanhas estavam imaculadas e o mundo parecia ter sido criado naquele momento.

Como única tarefa do dia, com muita calma, organizei a barraca e os barris que tinham vindo de Katmandu nas costas dos gentis yaks com meu equipamento de escalada. De resto, passei a tarde lendo, dormitando e conversando com o grupo de escaladores que dividi a mesma área que nós.

Na hora doi jantar, o tempo fechou bruscamente e inúmeros raios começaram a cortar o céu com trovões assustadores. Pouquíssimas vezes assisti a uma tempestade elétrica tão intensa aqui no Khumbu. Logo depois começou a nevar pesadamente e corri para o conforto de minha barraca. Tentei ler um pouco, mas o cansaço das últimas semanas foi mais forte e adormeci. Tínhamos combinado da Andrea vir dormir comigo, mas com esta mudança de tempo achei que ela tinha mudado de idéia. Ela ainda está com uma tosse bem feia e achei que ela tinha decidido ficar no seu acampamento. Mas, as 9 da noite ouvi sua voz me chamando e quando abri a porta da barraca a encontrei toda coberta de neve. Desta vez foi ela que se aventurou para me encontrar. Ficamos dentro de nossos quentinhos sleeping bags contando um para o outro de nossos dias. Imagino que casais normais são assim, no final do dia encontram-se e contam um para o outro o que aconteceu. Para nós que passamos os dias juntos, sempre, isso é um pouco de novidade e não sem o seu encanto. Ela fez seu treino de atravessar e subir escadas da cascata e se saiu super bem, mas está um pouco preocupada com seu compamnheiro de escalada, o canadense, que aparentemente é bem inexperiente. Com a multiplicação de expedições comerciais cada vez mais o Everest atrai pessoas que não estão habilitadas para enfrentar um 8.000. Se tudo vai bem, acho que qualquer pessoa com ótima forma física tem boas chances, mas se as coisas dão erradas, como com muita frequência dão, aí as coisas podem se complicar. Nem todos fazem um treinamento progressivo como nós fizemos ou tem os anos de experiência que temos nas montanhas conhecendo nossos corpos e como eles reagem a altitude.

Adormecemos com o agradável ruido da neve cobrindo gradualmente nossa barraca.

14/04/10 – Reunindo-me com meu grupo

Tínhamos colocado o despertador para as 3 da manhã para a Andrea comunicar-se com o time dela para ver se iriam fazer a primeira viagem até o campo 1 a 6000 metros, mas como ventasse bastante e tivesse caído uma grande quantidade de neve, a saída foi abortada. Voltamos a dormir e só acordamos as 8 da manhã já com o sol aquecendo a barraca. A Andrea voltou para o campo dela e eu fui tomar um preguiçoso café da manhã que quase se uniu com o almoço. Aproveitei o calor da manhã para tomar um banho e escrever.

As 13 horas o grupo dos malteses chegou com cara de muito cansaço. Tinham saído de Lobuche de madrugada para ver o nascer do sol no Kala Patar, um lindo espetáculo, mas o cansaço dos dias anteriores, da escalada ao Island Peak, fez com que muitos desistissem antes do cume. Fiquei muito feliz ao revê-los, mas sinto que só realmente nos tornaremos o time que tínhamos no Cho Oyu quando os trekkers de seu grupo se forem, depois de amanhã, e voltarmos a sermos apenas nós cinco. Victor, como sempre, está com uma grande disposição, mas sinto que Greg, Marco e Rob estão bem cansados. Ainda não sei qual será a programação dos próximos dias, mas sinto que eles precisam de pelo menos um dia de repouso antes de podermos com confiança subir ao campo 1.

Não vejo a hora de realmente começar a escalada. Esses vinte dias desde que sai de Katmandu foram extremamente importantes para dar o último toque em minha forma fisica que está excelente e para ajudar na minha aclimatação, mas sinto que quero finalmente colocar os pés na montanha e começar a subir.

15/04/10 – Após pedir permissão aos deuses, estou pronto para subir

Pela primeira vez desde que estou acima dos 5.000 metros durmo a noite inteira sem acordar, sinal que finalmente estou ficando aclimatado a esta altitude. Mesmo assim, para ir de minha barraca a barraca refeitório, meros 10 metros, fico um pouco ofegante. Mas, pelo menos, a lassidão que sentia dois dias atrás desapareceu. De todos os sintomas de altitude este é o que mais me incomoda. É muito desagradável sentir uma profunda preguiça para fazer qualquer coisa. Penso em colocar um casaco e entre sentir que preciso e tomar a decisão de buscar na bagunça da minha barraca, vários minutos passam.

Assim que acordo percebo que não nevou muito esta noite, ao contrário das últimas dias. Com isso sei que a Andrea deve ter saido as 3 da manhã para "tocar" o campo 1. Então, enquanto me espreguiço no conforto do meu sleeping bag sei que ela está a caminho do fim da cascata e sinto medo. Este trajeto é muito perigoso e ao mesmo tempo impossível de evitar os perigos, uma espécie de roleta russa. De todos os lados negativos de estarmos escalando separados este é o pior. A cada dia estaremos fazendo coisas perigosas e separados, um sem saber do outro até que o dia termine. Mentalmente desejo a ela boa sorte, pois nesta parte da montanha técnica, experiência e dextreza pouco valem. É tudo uma questão de sorte..

Hoje é o grande dia, o dia em que realmente a expedição começa, o dia do puja, da cerimônia onde pedimos aos deuses que habitam o Chomolongma que nos deem passagem segura por sua casa. Para muitos que aqui estão esta cerimônia não passa de um curiosidade para contar em casa na volta. Para mim é muito mais do que isso. É o momento de me concentrar e realmente criar a energia positiva que me ajudará e a todos mais para que possamos superar os obstáculos que nos esperam, com saúde, segurança e respeito. Enquanto o lama idoso que veio especialmente de Pamboche, dois dias de caminahda daqui, entoa os mantras, fecho os olhos e mentalmente desejo uma escalada segura e alegre a todos os que conheço aqui na montanha. Penso primeiro nos que me são mais próximos, na Andrea, Victor, Greg, Marco, Rob, e aos poucos vou incluindo mais e mais gente, sempre procurando ver os seus rostos enquanto lhes desejo o melhor nestes dias que virão. Todos os nossos amigos sherpas, os outros escaladores que estão na nossa expedição, os outros de outras expedições e até os irmão argentinos que tanta dor nos causaram.

A cerimônia termina com todos atirando aos céus grãos de arroz e depois tsampa, cevada torrada e moida que é o alimento básico dos sherpas. Em seguida, com muita brincadeira passamos tsampa no rosto um dos outros com o significado de que possamos viver até que nossos cabelos sejam da cor da tsampa, cinza claro. Enquanto passo tsampa no rosto de meus amigos lhes desejo vida longa. Pintados como índios para guerra abrimos latas de cervaja San Miguel e brindamos a saúde de todos.

Ao voltar para a barraca estudo a cascata de gelo com binóculos e vejo infinitamente pequenos pontos movendo-se entre blocos de gelo gigantescos. Neste ponto, grande parte das expedições já fez seus pujas e se dirigem ao campo 1, ainda não para dormir lá, apenas para "tocar", ou seja, chegar até ele e daí descer. Como fizemos o Island Peak vamos saltar esta etapa.

A tarde, com todo o grupo de trekkkers de Malta, subimos 200 metros na cascata para que eles tenham uma pequena experiência do que é estar na montanha. Claro que, com eles demoramos muitíssimo e não conseguimos chegar nas escadas para praticarmos, mas mesmo assim foi uma caminhada agradável com formações lindíssimas de gelo azul contra as paredes do ombro oeste do Everest e a parede norte do Nuptse. Como sempre será por aqui, não existe zona de conforto térmico. A variação é tão grande e tão brusca que você sempre está ou com calor ou com frio. Basta entrar uma nuvem para que a temperatura caia mais de 10 graus!

Enquanto subia encontrei a Andrea que vinha do campo 1, cansada mas feliz. Disse que a rota mais acima é bem dura com pedaços bem expostos e uma parede vertical com 3 escadas uma atada a outra de maneira que ao subir ela balança loucamente dando a impressão de que você vai cair a cada instante. Uma grande prova de que a cascata é tão instável é que para descer tiveram que usar uma rota completamente diferente em um trecho, já que uma grande seção tinha desabado. Nos despedimos combinando de ela vir passar a noite comigo no dia seguinte que será seu dia de descanso.

Voltamos para o campo e passamos o restante da tarde conversando com o grupo.

Finalmente a escalada está comecando...

16/04/10 – O treinamento

Novamente dormi a noite toda e pela manhã acordei já com o sol aquecendo a barraca, sinal de que minha aclimatação para esta altitude esta melhorando. Nos despedimos do grupo de malteses e finalmente ficamos só nós cinco e com isso agora realmente podemos concentrar nossa energia na escalada. Ao ver o grupo partir Greg disse – "Lets go guys, we have a mountain to climb" (vamos amigos, temos uma montanha para escalar) – Acho que essa é mesmo a sensação, agora tudo realmente começa. Se a escalada do Everest pode ser dividida em três etapas – aproximação, aclimatação e cume, cada uma delas com aproximadamente 20 dias, acabamos de completar a primeira etapa. Agora temos que montar os campos de altitude, subir progressivamente até eles e aclimatar-nos. Depois disso, se estivermos saudáveis, fortes e o tempo colaborar vem o ciclo do cume.

Aproveitamos a manhã para fazer um pequeno treino de como cruzar as escadas horizontais sobre as cravasses ou as verticais para ganhar as paredes de gelo. Ao lado da escada colocamos duas cordas que servem de corrimão, mas essas cordas não estão tensas então o truque é inclinar o corpo para frente tensionando as cordas por trás e com isso ter mais estabilidade. O que dificulta é que os crampons tem 10 dentes e você tem que achar o intervelo correto entre dois dentes para apoiar no degrau da escada. Não demorou muito para sentir-nos confortáveis, mas aqui a situação é ideal. As escadas estão sólidas, estamos descansados e colocamos a escada apoiada sobre duas pequenas cristas de gelo de maneira que a escada estava a apenas um metro do chão. Amanhã, quando enfrentarmos as verdadeiras, sob nossos pes estarão abismos de mais de 50 metros de profundidade.

A tarde foi gasta arrumando as barracas e preprando a mochila para nossa primeira noite fora. O plano, mas nas montanhas os planos dependem de muita coisa fora de nosso controle, é amanhã cedo subir ao campo 1, passar o restante do dia lá e no dia seguinte tocar o campo 2 e descer diretamente ao campo base, um plano ambicioso já que estamos a 5.300, o campo 1 a 6.000 metros e o campo 2 a 6.600 metros.

 
 
PARTICIPE, DEIXE SEU COMENTÁRIO.
 
 
 
Guia e Alpinista
 
 
Dividir minhas experiências com as pessoas!

- Este é o objetivo destes artigos e foi uma das motivações que me levou, 13 anos atrás, a começar a guiar pessoas em lugares que amo, para entrar em contato com culturas que admiro e realizar atividades que fazem com que enfrentemos desafios e ampliemos nossos limites. Sempre procurei direcionar minha carreira profissional para que estivesse em harmonia com o estilo de vida que almejo.

Para mim trabalho e prazer se combinam de forma quase indestingüível. Isso me permite viajar doze meses por ano, seis meses guiando grupos pelo mundo, principalmente na Ásia e o restante do ano viajando pelos lugares dos meus sonhos. Então, se assim como eu você é um viajante habitual ou apaixonado por relatos de viagens, poderá encontrar aqui informações, impressões, dicas, bibliografia e videografia, sobre os lugares por onde viajo.

Venha comigo explorar alguns dos mais fantásticos destinos deste planeta!
 
 
 

2009
Cho Oyu (China) com 8.201 metros