Extremos
 
COLUNISTA LISETE FLORENZANO
 
Escalando o Cho Oyu, a Deusa Turquesa
 
texto: Lisete Florenzano
16 de outubro de 2013 - 19:12
 
No cume do Cho Oyu (8201m)
 
  Lisete Florenzano  

Há muitos e muitos anos, li um livro – All 14 eighthousanders – de Reinhold Messner, sobre sua escalada de todas as montanhas com mais de 8.000m. Me lembro de ter ficado deslumbrada com aquele mundo de neve, gelo, botas, crampons e falta de oxigênio. Ao mesmo tempo, achei que aquilo era um sonho distante... na época, eu morava em Analândia, interior de São Paulo e minha realidade era terminar meu mestrado e escalar em rocha, no Cuscuzeiro.

Creio que a escalada do Cho Oyu começou lá, naquele ponto da minha vida. Não que eu soubesse que um dia escalaria uma dessas montanhas, mas creio que o sonho, ainda que aparentemente impossível, havia se criado em minha mente.

“Um dia é preciso parar de sonhar e, de algum modo, partir”

Amyr Klink

A aproximação

A escalada do Cho Oyu tem algumas peculiaridades. Primeiro, todos os acampamentos são muito altos. Ter o acampamento base a 5.700m é difícil! Nessa altitude (mais alto que o Mt. Elbrus na Rússia, para se ter uma idéia...) nosso corpo nunca descansa e nunca estamos 100% aclimatados. Outra peculiaridade é que vamos de carro por um longo trecho, de Katmandu no Nepal até o chamado Acampamento Base Chinês (no Tibet / China). Como ganhamos altitude muito rápido, temos que parar no caminho em algumas cidades tibetanas (ou chinesas) e passar nelas alguns dias, para fazer caminhadas de aclimatação. A partir do Acampamento Base Chinês, onde passamos 4 noites (mais caminhadas de aclimatação), seguimos finalmente caminhando rumo ao Acampamento Base do Cho Oyu. Paramos num acampamento intermediário e somente no dia seguinte é que chegamos no Acampamento Base do Cho Oyu, a 5.700m, que seria nossa “casa” no próximo mês.

A caminhada até o Acampamento Base do Cho Oyu começa por uma estrada de terra e depois de algumas horas finalmente entramos numa trilha em meio à moraina lateral do glaciar que desce das montanhas. Sinto finalmente a sensação de estar “na montanha”. A paisagem muda radicalmente, os picos estão cada vez mais próximos, podemos finalmente ver o glaciar e o famoso Nangpa La – o passo por onde os mercadores tibetanos seguiam com destino ao Nepal. Hoje em dia essa passagem é proibida pelo governo chinês.

Quando chegamos, toda a estrutura de nosso acampamento já está montada: cozinha, barracas, barraca refeitório, barracas banheiro, barraca chuveiro. Somos ao todo 11 escaladores, 6 sherpas, um cozinheiro, um assistente de cozinha e 2 guias.

     
     

Acampamento Base

Na escalada de alta montanha, passamos muito tempo no acampamento base. Isso porque, no geral, para cada dia que passamos na montanha temos que voltar e descansar pelo menos o mesmo número de dias no base.

O campo base acaba sendo nossa “casa” na montanha. É lá onde conseguimos dormir melhor, comer “comida de verdade” (e não só snacks e comida liofilizada), onde conseguimos tomar um banho, lavar roupas e outras coisas cotidianas.

Lá, os dias seguem mais preguiçosos. Apesar de sempre acordarmos cedo, em geral o dia segue relax. Sempre arrumamos algo pra fazer... alguns preferem ficar na barraca lendo ou assistindo um filme (no computador, ipad, iphone...), outros vão fazer visitas às outras expedições que também estão no campo base, outros jogam baralho. Cada um tem a sua barraca, o que é um luxo!

A escalada

A escalada começa com o Puja, a cerimônia de oferenda aos deuses das montanhas. Ninguém sobe a montanha antes do Puja, principalmente os sherpas. Nosso Puja foi num dia de muito frio e neve e demorou aproximadamente 3 horas. Eram 15 divindades e por isso demorou tanto. No fim, todos recebem um punhado de tsampa, um tipo de farinha, que jogamos uns nos outros... ficamos com os cabelos e rostos brancos, o que simboliza a chegada da idade... e desejamos “long life – vida longa” uns aos outros. Todos ficam de certa forma emocionados. Para mim, que sempre ouvira falar no Puja, fazer parte dessa cerimônia foi bastante especial.

A escalada é feita em ciclos. Para o Cho Oyu, tivemos 2 ciclos de aclimatação e depois o ciclo do cume.

No primeiro ciclo, o objetivo é chegar no campo 1, a 6.400m. O caminho é pela moraina, um misto de pedra e gelo. Depois de algumas horas, chegamos na parte final com uma inclinação bem forte para chegar no campo 1.

Eu já estava andando devagar pois senti que minha energia não estava 100%. Mas estava num ritmo razoável. Fiz a besteira de não comer nem beber o suficiente durante a caminhada pelas pedras... mesmo com experiência em montanha e sabendo que eu não podia fazer isso. A falta de oxigênio tira muito o apetite e a vontade de beber água. Assim, era preciso lembrar de comer e beber, e forçar um tanto a barra para isso. Mas acabei não fazendo, já que não recebi os “sinais” do corpo (sede e fome) e acabei deixando passar. Quando comecei a andar nessa parte mais inclinada, comecei a me sentir extremamente cansada. Meu ritmo diminuiu muito e um dos guias, Peter, acabou ficando comigo para trás. Da metade da subida para cima, já tinha neve e acabamos colocando botas, crampons e usando o ice axe. Me lembro de estar concentrada totalmente nos movimentos e na minha respiração – e para cada passo precisava respirar umas 4 vezes. Só pensava que estava perto e que tinha que chegar no campo 1. Não pensava em mais nada. Apenas sabia que esse, até então, esse estava sendo o dia mais duro em minha vida de escaladora.

     
     

Quando finalmente cheguei, sentei na neve sem nem tirar a mochila. Minha companheira de barraca, a alemã Heidi (muito forte e experiente, já havia escalado o Everest em 2012) percebeu meu estado e agilizou várias coisas para mim: pegou minha mochila e jogou dentro da barraca, me ajudou a desempacotar várias coisas, me deu algo para comer e encheu meu thermarest (colchonete inflável). Assim, pude entrar na barraca e finalmente descansar. Comecei a me hidratar e a comer o máximo que eu podia, para tentar repor minhas energias.

Durante a noite tive uma dor de cabeça muito forte, um dos sintomas do Mal de Altitude. Isso pode acontecer e não é um grande problema, desde que o quadro permaneça dessa forma. Apenas o desconforto é muito grande... Mas no dia seguinte já estava me sentindo bem e fizemos uma caminhada de aclimatação. Fomos até a base do ice cliff, uma parede vertical de neve e gelo que fica já na subida para o campo 2. Fomos até onde as cordas já haviam sido colocadas pelos sherpas. Ficamos lá por um tempo e voltamos ao campo 1 para a segunda noite nessa altitude. Dormi bem e no dia seguinte voltamos mais uma vez ao nosso acampamento base.

Chegamos lá, felizes (afinal para nós era como se fosse um hotel 5 estrelas...) e de repente percebi uma movimentação estranha, principalmente entre os sherpas que estavam lá e Mike, o guia principal. Havia acontecido uma avalanche, no trecho do ice cliff, onde os sherpas estavam trabalhando na fixação da cordas. As informações não chegavam com precisão, o que deixava todos bastante apreensivos... não havia resposta pelo rádio. Depois de uns 30 minutos, conseguimos finalmente ter alguma notícia concreta: um dos sherpas da Adventure Consultants estava guiando a cordada e uma placa de neve se descolou, vindo para cima dele. O nosso sherpa, Karma Rita, estava dando segurança. O primeiro levou uma pancada mais séria na cabeça e Karma Rita teve um corte feio no dedo, e machucou o joelho e a cabeça – apenas superficialmente. Foi um corre-corre dos sherpas para subir ao campo 1 naquela tarde, para trazer os dois machucados. Esses seres humanos fora do comum conseguem subir em 1h20min o que nós, meros mortais, fazemos em 4 ou 5 horas. Assim, no começo da noite vimos Karma Rita chegar no acampamento. Ele estava com uma expressão de medo no rosto, com a mão toda enfaixada e muitos ajudando ele a andar. Todos entraram na barraca depósito com Mike e Peter e lá ficaram. Peter, como é enfermeiro, cuidou dos ferimentos e assim o sherpa não precisou voltar a Katmandu. Depois recebemos a notícia de que o sherpa da Adventure Consultants, que seguiu para Katmandu para os devidos cuidados médicos, estava bem. Respiramos aliviados por saber que, no fim, tudo havia acabado bem.

Passamos três dias no acampamento base, para recarregar nossas energias de novo. O cozinheiro da expedição , Kaji, era ótimo! Conseguia preparar desde pizza a dal bhat (prato típico nepalês: arroz, lentilhas e legumes no curry) maravilhosamente bem. Assim, sempre que voltamos ao base, aproveitamos para comer bem. Nos campos altos, é praticamente impossível repor toda a energia gasta durante a escalada. Primeiro porque o gasto calórico é muito alto, e depois porque realmente não temos apetite. Comer é sempre uma preocupação lá em cima, mas conseguir comer é que é o problema... No base também dormimos bem melhor, o que é fundamental para o corpo. Nesses dias no base, uma das atividades foi fazer um teste com as máscaras de oxigênio e aprendemos a lidar com os cilindros e reguladores.

O tempo estava bom, o que nos permitiu entrar na montanha para o segundo ciclo de aclimatação. O objetivo era passar uma noite no campo 1, uma noite do campo 2 (7.200m), voltar a dormir no 1 e descer ao campo base. Desta forma, estaríamos aclimatados a essa altitude e preparados para o ciclo do cume.

Havia, nas previsões de tempo, uma tempestade forte se aproximando. Sabíamos que não chegaria enquanto durasse este segundo ciclo de aclimatação, mas a previsão era que viria logo depois desse ciclo. Por essa razão, algumas expedições optaram por fazer o ataque ao cume já neste segundo ciclo. Já nossos guias decidiram fazer como o planejado – segundo ciclo e só depois o ciclo de cume.

     
     

Assim, no dia 24 de setembro seguimos novamente rumo à montanha. A caminhada ao campo 1, pela moraina, era sempre o pior trecho, o mais chato de passar. Mas fomos bem mais rápidos que no ciclo anterior e em aproximadamente 4 horas estávamos no campo 1. Me sentia super bem e tive uma boa noite de sono. No outro dia, seguimos ao campo 2. Esse trecho da escalada era um dos mais aguardados, pois sabíamos que havia uma parte mais difícil devido à inclinação quase vertical, o chamado ice cliff. Foi ai que havia acontecido a avalanche, alguns dias antes, quando os sherpas fixavam as cordas. Mas, no fim, eles abriram a rota de subida contornando pelo outro lado e evitando assim o trecho mais suscetível aos deslizamentos.

Toda a subida ao campo 2 teve uma inclinação mais pesada do que esperávamos. Saindo do campo 1 a subida já ficava mais forte, até finalmente chegarmos no ice cliff. Para mim, apesar da dificuldade e do cansaço (a falta de oxigênio nessa altitude é grande!), foi uma das partes mais divertidas da escalada. Passar pelo ice cliff exigiu mais técnica, além de mais energia. Mas não era um trecho tão longo, e logo depois havia uma parte mais plana onde paramos para descansar. Na sequência, havia uma longa subida, com uma inclinação razoável, que para mim foi mais extenuante que o próprio ice cliff. Fui devagar e finalmente cheguei no campo 2, que alívio! Havia batido meu record de altitude, que era 6.800m (escalando o Aconcagua)! Estava a 7.200! Era o record do Agnaldo também... nos demos os parabéns e já entramos nas barracas, para começar as funções “domésticas”. O primeiro passo é pegar neve, em grandes sacos. Depois, acender o fogareiro e começar a derreter a neve para termos água. Essa função demora praticamente o tempo todo, até a hora de dormir. Isso porque, enquanto derretemos a neve, também estamos consumindo a água que acabamos de conseguir (uma das grandes preocupações é a hidratação). Além disso, usamos essa água para preparar nosso jantar e também já deixamos as garrafas cheias para que, na manhã seguinte, não seja preciso gastar tanto tempo nessa atividade.

Nessa subida ao campo 2, praticamente metade de nosso grupo não conseguiu chegar. Como estavam mais lentos, foram até o ice cliff e acabaram voltando ao campo 1 para dormir. No dia seguinte, quando estávamos voltando ao campo 1, encontramos alguns no caminho e acabamos descendo juntos para mais uma noite no campo 1. Segundo nossos guias, essas pessoas tinham ainda condições de fazer o cume, sem problemas. Claro, o ideal era ter chegado no campo 2 para dormir, mas não chegar lá não era um impedimento para tentar o cume. Fiquei mais tranquila com essa notícia... numa expedição tão longa, acabamos criando laços com todos do grupo e torcemos para que todos consigam chegar no cume. Apesar de saber que isso é difícil de acontecer...

 
Lisete escalando o Icecliff 6900m. Foto: Mark Bellamy
 

Na descida ao campo 1, me senti extremamente cansada. As pernas não obedeciam muito as ordens do cérebro e dobravam de cansaço, o que acabava me fazendo cair sentada várias vezes... Encontrei o Agnaldo, que também estava mais lento que de costume e comentei isso com ele. E ele estava na mesma situação... muito cansaço! Cheguei no campo 1 aliviada, mas ao mesmo tempo preocupada: se estava me sentindo cansada aqui, será que teria condições de chegar no cume? Conversei com Mike e com um de nossos sherpas sobre esse cansaço, e os dois me disseram a mesma coisa: muitas vezes a noite no campo 2, por ser muito alta, não permite que nosso corpo descanse o suficiente. Assim, o resultado é esse cansaço acumulado no dia seguinte. Já a noite no campo 1 foi tranquila e no dia seguinte já me sentia bem melhor. Descemos novamente para o base. Eu estava novamente feliz por poder comer e dormir bem, mais uma vez.

Ficamos 4 dias no base, para descanso. Nos dois primeiros dias eu não tinha vontade de fazer nada, apenas comer e dormir. Acho que todos estavam assim, pois o acampamento estava mais silencioso e tranquilo que o normal. A partir do terceiro dia já estava na rotina de sempre: café da manhã, bate papo no sol, almoço, jogar cartas, descansar na barraca antes do jantar, jantar e dormir. A previsão do tempo ainda falava sobre a tempestade, mas o tempo continuava firme na montanha. Os guias e sherpas decidiram o dia de nossa subida para o ciclo do cume: dia 28 de setembro. Confesso que tive aquele frio na barriga... finalmente chegava esse momento que eu havia esperado tanto! É um misto de apreensão, ansiedade e um certo medo, misturado com a vontade de ir e fazer uma boa escalada. Me lembro que, numa noite após o jantar, o céu estava completamente limpo e dava para ver milhões de estrelas. Fiquei lá olhando o céu, num daqueles momentos mágicos em que se consegue simplesmente estar presente, no momento presente. E me veio à cabeça tudo o que me havia trazido para essa escalada. O meu treinamento, todas as escaladas anteriores, tudo... tive uma certa “certeza” de que tudo estava bem, que tudo daria certo, independentemente dos resultados. E fui dormir tranquila...

No dia 28, seguimos finalmente para o ciclo de cume. O cronograma era: dormir no campo 1, dormir no campo 2, seguir para o campo 3 e chegar lá em torno das 16h00 , descansar já usando oxigênio, levantar às 22h30 para começar o ataque ao cume à meia-noite.

Durante a caminhada ao campo 1, numa das paradas de descanso, o Lui nos disse que iria desistir. Eu e Agnaldo levamos um susto e tentamos conversar, para que ele continuasse na escalada. Mas vimos que ele estava decidido, não tinha muito o que falar. Eu estava super emocionada e triste, vi que os dois também estavam... eu já havia imaginado o trio brasileiro no cume, e agora isso não iria mais acontecer! Eu sabia, também, que esta escalada era importante para ele... fiquei muito, muito chateada. O Lui foi conversar com os guias e avisar de sua desistência. Não tinha nada que eu pudesse fazer, apenas desejar a ele um bom retorno. Assim, fomos em direções opostas... ele voltou dali mesmo ao campo base e nós começamos a subir a parte final, para chegar ao campo 1. Foi um grande esforço me focar novamente na montanha e na escalada...

     
     

No campo 1, nessa noite, tive uma forte dor de cabeça. Foi um tanto surpreendente, já que teoricamente eu já estava aclimatada a essa altitude. Mas enfim, a lógica não funciona bem na montanha. Acabei acordando cansada mas segui ao campo 2. Me senti muito mais cansada que no segundo ciclo e comecei a ficar realmente preocupada. É inevitável surgir a dúvida: será que vou dar conta??? Mas cheguei bem no campo 2. Começamos as funções de sempre, derreter a neve, jantar, descansar. Durante a noite, novamente fortes dores de cabeça. Eu não estava acreditando... meu estoque de analgésicos já estava quase acabando! Claro, no dia seguinte eu estava me sentindo super fraca, cansada. Estava triste, pois achei que eu não iria conseguir chegar no campo 3 e muito menos no cume. O Agnaldo apareceu na minha barraca, conversamos. Depois o Mike veio conversar, e me perguntou: você acha que consegue ir para o campo 3? Fiquei com medo de que ele pudesse me cortar do ataque ao cume, que ele me dissesse que eu teria que descer. Respondi com a maior firmeza que pude naquela hora, que sim. Ele respondeu que, caso eu não me sentisse bem e precisasse voltar, não haveria problema. Isso eu sabia... o que eu não sabia era se teria condições de fazer o ataque ao cume ou não... Pedi ao Mike para sair um pouco depois que o grupo, ele concordou. O Phunuru, nosso sardar (chefe dos sherpas), iria seguir comigo.

Terminei de montar a mochila e finalmente começamos a caminhar. Eu estava com a energia super baixa e segui bem devagar. Podia ver o grupo andando na frente, mas não estava preocupada em alcançá-lo. Só me concentrava nos passos e na respiração: um passo, 3 respiradas. Apesar de ser uma distância curta e pouco ganho de altitude do campo 2 ao 3, a inclinação é pesada. Além disso, estar a mais de 7.000m já é um esforço enorme para o corpo. Eu ia devagar para poupar minha energia... não queria chegar exausta no campo 3, pois isso definitivamente poderia me custar o cume.

Mais ou menos no meio do caminho, perguntei ao Phunuru quanto tempo faltava para chegarmos. Ele pensou e disse: 3 horas e meia. Já era 2 da tarde, o que significada chegar no campo 3 quase as 18h!!! Isso seria tarde demais, já que eu teria muito pouco tempo para descanso... Comecei a avaliar friamente minhas condições, que não eram nada boas. Percebi que não iria valer a pena e o esforço de fazer o ataque ao cume, pois eu não teria a menor condição de conseguir. Quando eu ia falar ao Phunuru que iria desistir, me deu um “click” difícil de explicar... uma mistura de raiva comigo mesma e da situação, e aquela sensação do “não vou desistir agora”. Pensei comigo “vou chegar no campo 3 nem que seja arrastada, e não vou demorar 3 horas e meia. Posso não chegar no cume, mas vou chegar no campo 3”. Com isso na cabeça, comecei a andar bem mais rápido do que estava andando até então. Claro, fiquei mais ofegante, mas consegui colocar um ritmo na subida e fui. Finalmente, às 16h30 cheguei no campo 3! Eu não conseguia acreditar, nem pensar direito... Vi o Mike andando na minha direção e me dando os parabéns por ter conseguido. O Agnaldo começou a gritar da sua barraca: “cara, você conseguiu, que animal!!!!”. Fiquei feliz comigo mesma... Entrei na minha barraca (que iria dividir com Matt e Marc) e já coloquei a máscara de oxigênio. Deitei, me agasalhei melhor e tentei descansar. O Marc estava na função de derreter neve, o Matt estava organizando melhor a barraca (com 3 pessoas fica bem apertado, principalmente porque as roupas – macacão de pluma – e os sacos de dormir são muito volumosos). Preparamos algo para o jantar (um tipo de comida liofilizada) e fomos dormir. Consegui dormir bem, dentro das possibilidades.

     
     

Às 22h30 o despertador tocou e começamos toda a função de nos prepararmos para a saída. Macacão de pena de ganso, vestir a cadeirinha, derreter neve, pegar alguma comida para levar, lanterna extra, preparar o cilindro de oxigênio (pesa 7kg)... muitas e muitas funções, que naquela altitude, dentro de uma barraca apertada, levou muito tempo para serem resolvidas. Finalmente depois de comer algo, saí da barraca e comecei a andar. Era em torno de meia-noite. Estava frio, mas com o macacão de pena de ganso eu estava até com um pouco de calor (devia estar em torno de -25 graus, sem nenhum vento). Comecei a andar devagar, pois ainda não sabia como meu corpo iria responder. Nisso, Matt e Marc passaram por mim, com dois sherpas. Algumas pessoas de nosso grupo já estavam caminhando. Eu ainda estava me ajeitando com tudo, principalmente com minha máscara, que ficava escorregando um pouco. Passei por vários escaladores chineses que estavam mais lentos, outros me passaram... finalmente consegui colocar um ritmo na minha caminhada. Quando vi, estava numa longa fila, na corda fixa. Devia ter umas 30 pessoas na minha frente. O engarrafamento era devido ao trecho mais técnico de toda a escalada, a Yellow Band – um trecho vertical de rocha, com mais ou menos 7 metros de altura. Na sequência havia uma pequena travessia e logo uma outra parte vertical de neve e algumas rochas. Tudo isso fazia com que os escaladores fossem mais devagar, formando esse gargalo. Fiquei pacientemente na fila, olhando tudo ao meu redor. Caiu a ficha que estava escalando um 8.000m, que tudo aquilo que um dia eu havia lido, estava acontecendo! Até essa espera me pareceu mágica... eu estava vivenciando um sonho! O céu estava estrelado mas com alguma névoa, a fila de “luzinhas” subindo a montanha - para mim tudo aquilo era muito bonito. Chegou finalmente minha vez de passar a Yellow Band. Tentei alguns movimentos usando a piqueta e o jumar na corda fixa, e vi que não daria certo. Acabei deixando ela de lado e subi como se estivesse escalando em rocha mesmo (mas com botas triplas e crampons, não é muito “confortável”). A rocha erá sólida, o que me deu confiança de subir assim. Nem me pendurei na corda fixa para subir, como a maioria fez. Minha opção foi boa, pois terminei esse trecho sem estar muito ofegante. Entrei na travessia e logo estava no segundo trecho vertical, de neve. Escalei usando a piqueta e rapidamente havia vencido a parte mais difícil da escalada. E para mim, a mais bonita de todas... eu estava super focada, já não pensava em quase nada. Comecei a andar num ritmo muito bom, me distanciei das pessoas que estavam atrás de mim. De repente percebi que eu estava sozinha, sem sherpa, guia, amigos da expedição. Foi uma sensação indescritível! Senti que estava conectada à montanhas, estava lá de corpo e alma... tudo era lindo, eu estava presente no momento presente. Naquele momento, eu não me lembrava mais da existência de um cume. Eu ia subindo, sem me preocupar com nada... me sentia super bem e forte. Via as outras pessoas subindo, muitos sem oxigênio, com admiração... via nos rostos o tremendo esforço que estavam fazendo. Encontrei a Heidi, minha companheira de barraca que estava escalando sem oxigênio. Conversamos, ela disse que estava com muito frio e muito cansada. Dei para ela uma bala (eu andava com um estoque nos bolsos! – Irivan, valeu pela dica!!!) e continuei seguindo.

     
     

A noção de tempo é muito diferente nessa altitude. Eu não tenho na memória essa idéia do “quanto tempo passou”. Me lembro apenas de, num certo ponto, o céu estar mais claro. Parei para olhar e finalmente vi onde eu estava... uma rampa mais ou menos inclinada, e atrás de mim o vale com inúmeras montanhas, todas abaixo de mim. Pensei “nossa, estou muito alto!”. Os picos começaram a ficar iluminados, cada vez mais... parei para olhar, era maravilhoso! Comecei novamente a andar, com a neve azul e o céu rosado pela luz do amanhecer. Tudo era mágico, eu estava totalmente encantada com tudo o que via... não me lembro de ver algo tão bonito na vida!

De repente, como se tivesse saído desse mundo de encantamento, vi algumas pessoas descendo e se aproximando de mim. Era o Mike, nosso guia. Ele me viu, me deu um abraço e disse: “Você está aqui! Tive medo que não fosse conseguir... Parabéns, você está há 15 minutos do cume! Você consesguiu!”. Cumprimentei os escaladores que estavam com ele, e comecei a andar novamente. O conceito “cume” havia ressurgido em minha mente e agora era lá que eu queria chegar. Mas eu estava feliz, muito feliz e não sentia cansaço nenhum. Vi então o Agnaldo descendo. Que alegria, ele havia chegado no cume e estava bem! Nos cumprimentamos, ele disse que estava muito frio em cima. Continuou sua descida e eu, minha subida. Encontrei logo mais o Peter, nosso segundo guia, ainda subindo. Seguimos juntos e finalmente, às 6h, chegamos no cume do Cho Oyu! De lá é possível ver o Everest, que estava no meio de uma névoa fina e dourado pelo sol nascendo. Não fiquei tão emocionada como achei que ficaria... eu estava ainda nesse estado de magia, conectada a montanha. Tudo era divino...

 
A sombra do Cho Oyu.
 

Realmente no cume o frio estava bem mais intenso, o que fez com que a bateria de minha câmera descarregasse (apesar de todos os cuidados que tomei). Peter tirou as fotos com sua câmera e ficamos lá talvez uns 15 ou 20 minutos (tirei a mochila e a máscara, queria sentir os 8.201m!). O frio nos fez andar novamente. Mochila nas costas, máscara no rosto e começamos a descida. Eu estava andando rápido e tinha que esperar por ele, as vezes. Mas fomos bem até o campo 3. Lá chegando, esperei o Matt e Marc empacotarem suas coisas para que eu pudesse entrar na barraca. Estava já com muito calor por causa do macacão de pena, queria me trocar. Coloquei uma roupa mais leve, consegui finalmente comer alguma coisa e me hidratar. Os sherpas já estava desmontando o acampamento e assim seguimos ao campo 2. Como ainda tinha oxigênio em meu cilindro, desci com a máscara. No campo 2 tivemos mais tempo para descansar e comer. Estávamos todos cansados e o corpo pedia uma parada. Alguns colocaram o isolante na neve e deitaram ali mesmo, outros entraram na barraca para o descanso. A Heidi, que conseguiu fazer o cume sem O2, estava na barraca – muito cansada pelo esforço todo, e só dormia. Eu também deitei e consegui dormir um pouco. Acordamos e depois de comer alguns snacks, continuamos a descer. Apesar da distância, iríamos dormir no campo 1. Não era boa idéia permanecer no campo 2, pois a essa altitude (7.200m) nosso corpo não iria conseguir se recuperar do esforço do dia de cume. Nossos guias nos disseram que, se ficássemos no 2, provavelmente no dia seguinte estaríamos nos sentindo pior que antes. Assim, juntamos nossas coisas e descemos. Agora eu sentia muito cansaço, as pernas de vez em quando “falhavam” – dobravam sem querer e bum! caía sentada na neve. O Agnaldo disse estar também cansado, e assim fomos juntos. Foi uma loooonga descida, o campo 1 não chegava nunca!!! Mas, finalmente em torno das 17h30 chegamos... que alívio! Depois de um dia de praticamente 18 horas de escalada, só queria entrar na barraca e dormir... os guias derreteram neve para todos e, depois de comer meu jantar, dormi profundamente.

No dia seguinte, continuamos a descida, finalmente para o campo base. Os sherpas já haviam descido no dia anterior com mochilas gigantes (barracas do campo 2 e 3, cilindros de oxigênio e outras coisas mais). Mas, para irmos mais leves, deixamos várias coisas nas barracas do campo 1, para que os sherpas carregassem para nós no dia seguinte.

Chegamos no campo base em torno de 13h. A neve começava a cair, o céu estava bem fechado. Era a tal tempestade, que havia chegado. Tivemos o tempo exato para o ciclo do cume, que maravilha! Depois do almoço, eu só podia pensar em dormir. Creio que, neste dia, foi basicamente o que fiz... comer e dormir! À noite, tivemos um bolo preparado por nosso grande cozinheiro, além de refrigerantes e cerveja. Comemoramos com todos da equipe... sherpas, cozinheiro e guias, pessoas que foram fundamentais para nossa escalada.

Ficamos dois dias no campo base, para que a logística do retorno fosse esquematizada. Foi ótimo, esses dias de descanso valeram a pena. Finalmente os yaks começaram a chegar, e senti uma certa tristeza... a expedição tinha terminado. Apesar de querer voltar para os luxos da civilização, me senti triste. No dia 5 iniciamos o retorno. Seriam 2 dias até chegar em Katmandu. Mas eu já sabia que meu coração havia ficado, definitivamente, nas montanhas.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a todos que acompanharam nossa expedição, e que torceram para nosso sucesso! Foram muitas as mensagens que recebi... não pude responder a todos, mas saibam que adorei ler e saber da torcida, de coração!

Agradeço as pessoas que, de forma mais direta, fizeram com que esse sonho fosse possível: Ricardo Lima (graaaande personal!), Viviane (querida profa de Pilates), equipe da Academia Iron, Dr. Masseo (fundamental para os cuidados com meus joelhos!).

Many many thanks ao Manoel Morgado, pelo incentivo e pelos equipos, e ao Irivan Burda, por todas as dicas (as balas foram fundamentais!) e empréstimo dos equipos.

Many many thanks aos guias Mike e Peter, a todos os nossos sherpas, Kaji e seu assistente. A todos os amigos da expedição, que dividiram essa experiência comigo.

Obrigada, de coração, ao grande parceiro Agnaldo. Valeu amigo, conseguimos!!!!
Que venham as próximas...

Bons ventos a todos!
Lisete Florenzano

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