Extremos
 
COLUNISTA GUILHERME CAVALLARI
 
Movimento Circular
 
Texto: Guilherme Cavallari
31 de dezembro de 2016 - 17:25
 

Guilherme Cavallari nas Highlands escocesas.
 
  Guilherme Cavallari

Dia 31 de dezembro de 2016. Lavando a louça enquanto minha mulher cozinhava o prato principal da ceia de Ano Novo — bacalhau espirituoso —, voltei a pensar num conceito que chamei de “movimento circular” e que, não coincidentemente, circula em minha vida há muitos anos. Não sei como definir, mas acho que trata-se de um jeito de olhar o mundo e que, de um modo irregular, porém cíclico, venho tentando incorporar à minha vida desde muito jovem. Todo fim de ano a ideia parece ganhar força e dessa vez decidi tentar descreve-la.

Se consigo enxergar a vida como um movimento circular e não uma trajetória retilínea tudo fica mais suave, menos angustiante e faz mais sentido. Nascemos numa explosão de luz e sons e descobrimos o mundo. Tudo é fascinante. Um bebê é capaz de passar muito tempo absolutamente entretido com uma simples colher. E por que não ficar pasmo diante desse objeto tão simples e ao mesmo tempo tão complexo e tecnológico? A humanidade pisou na lua, rompeu o átomo, quebrou a barreira do som, mas ainda não descobriu substituto melhor para a colher.

Ainda na primeira infância, assim que conseguimos discernir a diferente importância relativa nos objetos à nossa volta — a colher transporta algo significantemente mais interessante que ela própria, a colher é transportada até nós por outro objeto, animado, que determina o que a colher vai carregar e portanto ainda mais pleno de significado —, começa um longo treinamento de concentração, de foco, de estreitamento da nossa atenção, de direcionamento da nossa curiosidade. “Toma esses bloquinhos coloridos para brincar. Mas não ponha eles na boca. Eles não são para isso. Empilhe-os para formar colunas como prédios. Enfileire-os como se fossem vagões num trem. Use a colher apenas para comer. E não arranque os bloquinhos do seu coleguinha. Você tem os seus, ele tem os dele.”

Numa brincadeira aparentemente inofensiva como essa, didática, somos guiados a acreditar em noções de individualismo, propósito, propriedade e progresso. Conceitos inegavelmente lineares de condução da vida. Não circulares.

Nas fases seguintes da infância e da juventude, recebemos doses maciças de ensinamentos teóricos e práticos vinculados a avaliações e resultados. É preciso cumprir calendários, seguir agendas, marcar pontos, passar em provas, competir para vencer. E pouco importa, de verdade, a escola onde estudamos ou o método educacional escolhido, no final a gente recebe um diploma. Ou não.

Aprendemos também, nesse período, a competir com nossos irmãos, se temos a sorte de tê-los. Competir por afeto, por atenção, por aprovação, por prêmios. Filhos únicos reinam incontestes, senhores absolutos de seus impérios. Por muito tempo nossa vida é marcada por pequenos e grandes presentes, prêmios por excelência, recompensas pelo trabalho executado. Brinquedos nos aniversários e no Natal, chocolate na Páscoa, um computador novo para o novo ano escolar, um celular indicando mais liberdade, um carro ao entrarmos na faculdade. Cenouras penduradas diante do nariz do cavalo.

Por trás de toda essa sequência de tempo investido em aprender a se concentrar e a realizar, pontuada por premiações e as ameaças de sua ausência, está a lição maior de que existe algo a ser conquistado. Existe um objetivo, uma meta. A vida como uma trajetória retilínea e ascendente.

Mas se a definição mais básica da vida é apenas: nascimento, crescimento, envelhecimento, doença e morte — na melhor das hipóteses —, e a consciência da morte certa nos faria questionar o tempo mal-investido em tarefas sem importância final real como aprender uma profissão, ganhar dinheiro e acumular bens. Se a vida se resume a um espaço limitado de tempo, melhor aproveitarmos esse tempo sem contratempos, certo? Ninguém ia querer passar oito horas por dia trabalhando em fábricas, escritórios, lojas e afins.

Em algum momento na vida, aparentemente todo mundo chega a essa conclusão de que “perdemos tempo” e que “a vida não faz sentido”. E não faz mesmo, porque por “sentido” entendemos uma progressão retilínea. Nesse caso, só mesmo o paraíso depois da morte ou uma reencarnação melhor conseguiria justificar as privações essenciais que passamos durante a vida terrena. E a ideia de paraíso de repente fica muito conveniente.

Na longa fase adulta de nossas vidas, se tudo der certo segundo o conceito de progresso retilíneo, vemos casais se formarem e se dissolverem, vemos crianças nascerem, vemos idosos morrerem e, de forma geral, enxergamos um sentido de prosperidade. Olhamos para trás e contamos nossos diplomas, nossos amigos, nossos carros e residências, móveis, roupas, livros e infinitos objetos e acreditamos que acumulamos algo. Sucesso. Consideramos nosso caráter, nossa personalidade, a religião que escolhemos, o partido político que apoiamos, nossa honestidade, retidão moral, sinceridade, discernimento e bom senso também como patrimônio. Mais sucessos. Troféus em nossas estantes.

Vivemos o auge da força física, o apogeu da capacidade intelectual, o ápice da força realizadora e, inevitavelmente, não havendo acidentes de percurso, entramos então na fase de declínio físico, mental e de força de vontade. Antes do que esperávamos, somos cartas fora do baralho no jogo da produção e da realização. Passamos a marcar passo no compasso de espera para o fim inevitável que sabíamos que chegaria, mas que agimos como se fosse ficção ou como que fosse aparecer uma alternativa ao longo do caminho.

Quando consigo desligar minha mente da incessante programação de afazeres, da conexão entre quem eu quero ser — como quando lavo louça para a ceia de Ano Novo —, vislumbro a possibilidade talvez de viver a vida como um Movimento Circular. Nesses momentos de reflexão meditativa, areando panelas e ensaboando talheres ou pedalando minha bicicleta por aí, enxergo claramente o equívoco de viver a vida como uma trajetória retilínea. Vejo os resultados obrigatórios de egoísmo, egocentrismo, individualismo exacerbado, sociopatia, desconexão e depressão. O mundo vira um shopping center e cada um de nós um número de cartão de crédito.

Vejo também que no universo não faltam exemplos de movimentos circulares: o desenho das galáxias, as órbitas das estrelas e dos planetas, a trajetória dos cometas, as estações do ano, o vai-e-vem das marés, dia e noite, o próprio ciclo da vida. Porque nossos olhos são como pequenas luas?

Nesse Movimento Circular que vislumbro, o tempo de uma vida é uma nota de um instrumento no transcurso de uma infinita sinfonia tocada por uma orquestra infinita. Mas isso só faz sentido se formos capazes de ouvir a sinfonia ou se pelo menos estivermos atentos a ela. No Movimento Circular, não existe meta, objetivo, vitórias ou derrotas porque não existe competição. O antílope abatido pelo leão não se vê como presa, nem o leão se diz predador, ambos são gestos na coreografia da vida. No Movimento Circular ninguém aplaude alguém pela roupa, carro ou casa que essa pessoa tenha ou pela opção de alguém não ter roupa, carro ou casa. Títulos não fazem sentido. Ideologias não fazem sentido. Cada pessoa tem sua própria religião, ;unica e pessoal como um número de identidade. A fraternidade humana é apenas óbvia e parte da fraternidade maior da vida. Todos conseguem seguir maravilhados a vida toda pela colher e conseguem ovacionar em praça pública o primo distante que come com dois pauzinhos.

A vida toda somos apresentados ao mundo e o mundo se apresenta a nós. Nunca teremos a capacidade ou o tempo de aprendermos todo o mundo, mas podemos e devemos aprender tudo sobre nós mesmos. Mas como, de fato, não existe separação entre nós e o mundo, se realizarmos aquilo que somos capazes de realizar, ao final teremos também aprendido todo o mundo pela via do autoconhecimento. A iluminação de voltar a enxergar o mundo com os olhos do recém-nascido.

No ano que começa, com todos seus almoços e jantares previstos, espero ter muitas chances ainda de lavar louça e entender melhor como seria viver a vida num Movimento Circular. Desejo o mesmo a todos em 2017.

Obrigado por fazerem parte dessa viagem comigo.

Guilherme Cavallari,
autor de 18 livros sobre esportes e turismo de aventura, entre eles o recém-lançado “Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas”, tenta levar uma vida simples nas montanhas da Mantiqueira. Também colabora como colunista do Extremos desde 2010.

 
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